Fonte: Dizer o Direito
Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/05/info-692-stj.pdf
RECUPERAÇÃO JUDICIAL - Os valores pertencentes a terceiros que estão na posse da recuperanda por força de contrato inadimplido não se submetem aos efeitos da recuperação judicial
Caso concreto: determinado supermercado queria fazer um cartão de crédito para seus clientes. Para isso, ele contratou uma empresa que ficou responsável por administrar esse serviço. Quando o cliente pagasse a fatura do cartão, os valores iam para a conta da empresa que conferia tudo e depois repassava ao supermercado. Algum tempo depois, a empresa ingressou com pedido de recuperação judicial. Os clientes quitaram a fatura do cartão de crédito, mas a empresa não repassou ao supermercado. Esses valores, que ainda estão na conta bancária da empresa, podem ser entregues ao supermercado, não estando sujeitos à recuperação judicial. STJ. 3ª Turma. REsp 1.736.887/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 13/04/2021 (Info 692).
Recuperação judicial
A recuperação judicial consiste em um processo judicial, no qual será construído e executado um plano com o objetivo de recuperar a empresa que está em vias de efetivamente ir à falência. Logo, em vez de a empresa ir à falência (o que é nocivo para a economia, para os donos da empresa, para os funcionários etc.), tenta-se dar um novo fôlego para a sociedade empresária, renegociando as dívidas com os credores. Na antiga Lei de Falências, esse processo era chamado de “concordata” (DL 7.661/45). A Lei nº 11.101/2005 acabou com a “concordata” e criou um novo instituto, com finalidade semelhante, chamado de recuperação judicial. Assim, a recuperação judicial surgiu para substituir a antiga “concordata” e tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise do devedor, a fim de permitir que a atividade empresária se mantenha e, com isso, sejam preservados os empregos dos trabalhadores e os interesses dos credores.
Créditos que estão sujeitos à recuperação judicial
Na recuperação judicial, a empresa devedora, que está “sufocada” por dívidas, irá pagar os seus credores de uma forma mais “suave”, a fim de que consiga quitar todos os débitos e se manter funcionando. Assim, os credores da empresa em recuperação judicial são inscritos no “quadro geral de credores”, e cada um receberá seu crédito de acordo com o que for definido no plano de recuperação. Um dos temas importantes sobre esse assunto é saber quais créditos estão sujeitos à recuperação judicial, ou seja, quais credores irão ter que receber seus créditos conforme o plano de recuperação.
Regra
Em regra, estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial, ainda que não vencidos (art. 49, caput, da Lei nº 11.101/2005). Ex: a empresa tem que pagar uma dívida com um fornecedor daqui a 9 meses; se o pedido de recuperação foi feito hoje, esse crédito já será incluído nas regras da recuperação judicial, mesmo que ainda não tenha chegado a data do vencimento.
Consequência dessa regra:
Como vimos acima, tendo sido decretada a recuperação judicial, os credores irão receber conforme o plano. Como consequência disso, em regra, as ações e execuções que tramitam contra a empresa em recuperação são suspensas para poder não atrapalhar a execução do plano. Veja:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. (...)
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal. (com redação dada pela Lei nº 14.112/2020)
Esse prazo em que haverá a pausa momentânea das ações e execuções é chamado de stay period e tem por objetivo permitir que o devedor em crise consiga negociar, de forma conjunta com todos os credores (plano de recuperação) e, ao mesmo tempo, preservar o patrimônio do empreendimento, que ficará livre, por um determinado período de respiro, de eventuais constrições (ex: penhora) de bens necessários à continuidade da atividade empresarial. Com isso, minimiza-se o risco de haver uma falência.
Exceções à regra:
A regra acima exposta (caput do art. 49) possui exceções que estão elencadas nos §§ 3º e 4º. Dessa feita, nesses parágrafos estão previstos determinados créditos que NÃO se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. Veja o § 3º, que interessa para explicar o julgado:
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º (chamado de “stay period”) desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Também se pode mencionar o art. 85 da Lei:
Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição.
A despeito de o art. 85 falar em “processo de falência”, pode-se estender o mesmo raciocínio para a recuperação judicial.
Feita essa breve revisão, imagine a seguinte situação hipotética:
Determinado supermercado queria fazer uma espécie de cartão de crédito para seus clientes. Para isso, esse supermercado contratou a Mixcred Ltda que ficou responsável por administrar esse serviço. Assim, se um cliente do supermercado pagasse as compras com esse cartão de crédito, isso ia sendo registrado pela Mixcred. Posteriormente, quando o cliente pagasse a fatura, esses valores iam para a Mixcred que conferia tudo e repassava ao supermercado os valores. Assim, a Mixcred foi contratada para fazer serviços de administração financeira.
Recuperação judicial da Mixcred
Algum tempo depois, a empresa Mixcred ingressou com pedido de recuperação judicial. Logo em seguida, a Mixcred deixou de repassar ao supermercado os valores que os clientes pagavam. Assim, os clientes quitaram a fatura do cartão de crédito, mas a empresa não repassou ao supermercado. A Mixcred deixou de repassar R$ 500 mil. Diante disso, o supermercado ingressou com ação contra a Mixcred pedindo o pagamento desse valor decorrente do contrato que a ré não cumpriu.
Surgiu, no entanto, uma dúvida: essa quantia pode ser entregue diretamente ao supermercado ou esses valores devem se submeter aos efeitos da recuperação judicial e, neste caso, terão que pagos segundo o plano, dividido com os demais credores?
Esses valores NÃO se submetem aos efeitos da recuperação judicial. De acordo com o disposto no art. 49, caput, da Lei nº 11.101/2005, estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido. Porém, no caso, a empresa recuperanda está na posse de valores que pertencem a terceiro (supermercado) em decorrência do descumprimento do contrato de prestação de serviços firmado entre as partes, que previa o repasse dessas quantias. A questão mais se assemelha a uma hipótese de restituição, prevista no art. 85 da Lei nº 11.101/2005, em que o proprietário de bem que se encontra em poder do devedor na data da falência pode pedir a sua restituição. Ainda que o pedido de restituição não se amolde perfeitamente à recuperação judicial já que o art. 85 fala em “processo de falência”, é útil para demonstrar que na hipótese de a devedora se encontrar na posse de bens de terceiros, esses não são considerados seus credores, não se podendo falar em habilitação, mas no exercício do direito de sequela. Observa-se, ademais, que a lei de regência prevê que os titulares de propriedade resolúvel não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, estabelecendo o § 3º do art. 49 que “prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais”. Se é assim com a propriedade resolúvel, com muito mais razão quanto à propriedade plena, cabendo a busca dos valores retidos indevidamente.
Em suma: Os valores pertencentes a terceiros que estão na posse da recuperanda por força de contrato inadimplido não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. STJ. 3ª Turma. REsp 1.736.887/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 13/04/2021 (Info 692)
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