INCONSTITUCIONALIDADES DO INCIDENTE
DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR) E OS RISCOS AO SISTEMA DECISÓRIO
Revista de Processo | vol. 240/2015 | p. 221 - 242 | Fev / 2015
DTR\2015\808
_____________________________________________________________________________________
Georges
Abboud
Doutor e
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Professor do Programa de
Mestrado e Doutorado em Direito da Fadisp. Advogado.
Marcos
de Araújo Cavalcanti
Mestre e
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Doutorando em Direitos
Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Procurador do Distrito Federal. Advogado.
Área
do Direito: Processual
Resumo:
O artigo procura demonstrar algumas
inconstitucionalidades que afetam o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas previsto no Novo Código de Processo Civil, assim como os riscos que
o instituto projetado traz ao sistema decisório.
Palavras-chave:
Novo CPC - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) -
Inconstitucionalidade - Representatividade adequada - Direito de autoexclusão -
Efeito vinculante - Efeito suspensivo - Ações coletivas norte-americanas -
Procedimento-modelo alemão (Musterverfahren).
Abstract:
This article seeks to demonstrate
some unconstitutional questions that affect the Incident Resolution of
Repetitive Actions predicted in the New Civil Procedure Code, as well as the
risks of the institute designed brings to the decision-making system.
Keywords:
New CPC - Incident Resolution of Repetitive Actions -
Unconstitutional - Adequate representation - Right to opt-out - Binding effect
- Suspensive effect - Class actions - German procedure model (Musterverfahren)
Sumário:
- 1.Introdução
- 2.Inconstitucionalidades que afetam o IRDR - 3.Conclusões: riscos ao sistema
decisório
Recebido
em: 20.10.2014
Aprovado
em: 27.11.2014
1.
Introdução
Em 30.09.2009,
o presidente do Senado Federal, José Sarney, editou o Ato do Presidente
379/2009, instituindo uma comissão de juristas incumbida de elaborar o
anteprojeto do novo CPC. Concluída a fase de estudos, discussões e elaboração
do texto, o anteprojeto foi encaminhado ao Senado Federal, onde passou a
tramitar como PL 166/2010.
Aprovado no
Senado Federal, o texto projetado foi recebido na Câmara dos Deputados, casa
revisora, como PL 8.046/2010. Após a aprovação do texto base e
apreciação dos destaques apresentados, a Câmara dos Deputados, em
26.03.2014, concluiu a votação da redação final do projeto de
lei, dando por encerrada a etapa revisora. Em seguida, o Presidente da Câmara
dos Deputados remeteu, conforme estabelece o parágrafo único do art. 65 da
Constituição da República, o projeto de lei ao Senado Federal.
No dia
27.11.2014, a Comissão Temporária instituída no Senado para examinar o
substitutivo da Câmara dos Deputados aprovou o relatório elaborado pelo Senador
Vital do Rêgo. Até o fechamento do presente artigo, aguarda-se a decisão dos
senadores a respeito das diversas emendas aprovadas na forma de substitutivo
junto à Câmara dos Deputados.
Com inspiração
no procedimento-modelo (Musterverfahren) do direito alemão, o
anteprojeto elaborado pela comissão de juristas trouxe importante novidade: a
sugestão de criar-se um incidente de resolução de demandas repetitivas
(IRDR). Tal instituto foi mantido, com algumas modificações, tanto pelo
Senado Federal, em seu primeiro exame, como pela Câmara dos Deputados, na
emenda substitutiva aprovada recentemente.
O incidente de
resolução de demandas repetitivas (IRDR) está previsto no art. 973 e ss. do
NCPC,1 com a seguinte redação “É cabível a instauração do incidente
de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I –
efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão
unicamente de direito; II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.
O objetivo
desse incidente processual é conferir um julgamento coletivo e abstrato sobre
as questões unicamente de direito abordadas nas demandas repetitivas,
viabilizando a aplicação vinculada da tese jurídica aos respectivos
casos concretos. Com isso, procura-se, de uma só vez, atender aos princípios da
segurança jurídica, da isonomia e da economia processual.
Trata-se,
portanto, de mecanismo processual coletivo proposto para uniformização e
fixação de tese jurídica repetitiva. Uma vez instaurado o incidente, a questão
jurídica a ser julgada passará a vincular todos os outros casos por ele
afetados.
O IRDR somente
pode ser suscitado perante Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional
Federal. Não há, por exemplo, a possibilidade de instaurá-lo diretamente no
STJ. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos
individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que
tramitem na área de competência do respectivo tribunal.
Por exemplo, a
decisão proferida no julgamento de mérito de IRDR instaurado no TRF da
1.ª-Reg. terá eficácia vinculante sobre todas as causas repetitivas que
tramitam na justiça federal dos entes federativos englobados pela referida
região, quais sejam: o Distrito Federal e os Estados do Acre, Amapá, Amazonas,
Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia,
Roraima e Tocantins.
Do mesmo modo,
o efeito vinculante de decisão de mérito proferida por um Tribunal de
Justiça ficará restrito à sua área de competência. Exemplificando: os
efeitos da decisão vinculativa proferida pelo TJDFT alcançam apenas as demandas
repetitivas em tramitação na justiça do Distrito Federal. Por outro lado, as
decisões do TJSP abrangerão somente as causas pendentes na justiça do Estado de
São Paulo. E assim por diante.
Não será o
escopo deste texto examinar com afinco as questões processuais concernentes ao
NCPC. Para a análise mais completa e qualificada sobre o incidente de demandas
repetitivas, consultar a dissertação de um dos autores.2 Nosso
objetivo é restrito à demonstração das inconstitucionalidades que
inquinam esse instituto. Ou seja, evidenciar as razões que nos permitem afirmar
que ele é mais do mesmo que tem sido apresentado como solução para os
problemas do Judiciário brasileiro. Mais precisamente é a aposta que a melhora
do sistema judicial nacional opera-se mediante a atribuição de maiores poderes
aos Tribunais e o recrudescimento de efeito vinculante às diversas modalidades
de decisões desses órgãos julgadores.
Deixe-se
claro, todavia, que entendemos que o IRDR pode ser um eficaz mecanismo de
resolução de litígios de massa. Apesar disso, não podemos fechar os olhos e
ignorar algumas inconstitucionalidades constantes do texto projetado que
violam diversos princípios constitucionais do processo decorrentes da
cláusula do devido processo geral. O artigo tratará de algumas delas.
São elas:
(a)
violação à independência funcional dos magistrados e à separação funcional dos
Poderes: a vinculação da tese jurídica aos juízes de hierarquia inferior ao
órgão prolator da decisão não está prevista na Constituição da República;
(b)
violação ao contraditório: ausência do controle judicial da adequação da
representatividade como pressuposto fundamental para a eficácia vinculante da
decisão de mérito desfavorável aos processos dos litigantes ausentes do
incidente processual coletivo;
(c)
violação ao direito de ação: ausência de previsão do direito de o litigante
requerer sua autoexclusão (opt-out) do julgamento coletivo; e
(d)
violação ao sistema de competências da Constituição: a tese jurídica fixada
no IRDR pelo TJ ou TRF será aplicada aos processos que tramitem nos juizados
especiais do respectivo Estado ou região (art. 982, I, do NCPC).
Vale ressaltar
que o objetivo do presente tópico não é defender a completa
inconstitucionalidade do IRDR, mas, dentro do possível, conferir uma leitura
que assegure ao instituto uma aplicação constitucionalmente adequada,
que pode ser obtida mediante utilização das sentenças interpretativas.3
A ideia,
também, é convencer o legislador de que a regulamentação do IRDR pode melhorar.
Sugere-se, desde já, a apresentação de propostas legislativas que assegurem o
contraditório aos litigantes ausentes do incidente processual coletivo (controle
judicial da adequação da representatividade), assim como o direito de prosseguirem
com suas ações repetitivas fora do regime jurídico do IRDR (direito de
autoexclusão). Além disso, sugere-se a exclusão da parte final do inc. I do
art. 982 do NCPC, que permite a aplicação vinculante da tese jurídica fixada
pelo TJ ou TRF aos processos repetitivos em tramitação nos respectivos juizados
especiais.
A seguir serão
apresentados, com mais detalhes, os fundamentos que nos levaram a apontar tais
inconstitucionalidades.
2.
Inconstitucionalidades que afetam o IRDR
2.1
Violação à independência funcional dos magistrados e à separação funcional dos
Poderes
De início, o
efeito vinculante previsto para o IRDR é inconstitucional porque tal mecanismo
não pode ser instituído mediante legislação ordinária. A vinculação de uma
decisão aos juízes de hierarquia inferior ao órgão prolator da decisão deve
estar sempre prevista expressamente na Constituição da República, sob pena de
violação à garantia constitucional da independência funcional dos
magistrados e à separação funcional de poderes.
Vale lembrar
que até mesmo os enunciados editados ou as decisões proferidas em sede de
controle de constitucionalidade abstrato pela mais alta corte do país (o STF)
precisaram de previsão constitucional expressa que lhes atribuísse efeito
vinculante. Dessa forma, mais necessário ainda é o permissivo constitucional
que confira efeito vinculante às decisões proferidas no julgamento do IRDR.4
Questão
semelhante foi tratada pelo TSE no julgamento do REsp 9.936/RJ sobre o
instituto do prejulgado previsto no art. 263 do Código Eleitoral. Nesse
caso, o TSE, incidentalmente, declarou a inconstitucionalidade do instituto.
Para o relator do recurso, ministro Sepúlveda Pertence, o prejulgado
eleitoral conflita com a Constituição porque “dá ao precedente judicial
força de lei, o que viola o princípio de separação funcional de poderes. (…) É
tão violenta a força vinculante que o prejulgado pretende, que ele é maior do
que a força obrigatória da lei”.5 Em sentido semelhante, o STF, no
exame da Representação 946/DF, entendeu que o art. 902, § 1.º, da CLT, o qual
dava força normativa geral às decisões do TST, não havia sido recepcionado pela
Constituição de 1946.6
Portanto, o
efeito vinculante da decisão do IRDR é matéria que deve estar expressamente
prevista na Constituição da República. Júlio César Rossi defende a
inconstitucionalidade do IRDR com os seguintes argumentos:
“Com efeito, a
decisão firmada no IRDR possui a mesma carga de eficácia das súmulas
vinculantes, com um agravante: não há amparo constitucional, o que nos leva a
arriscar a afirmação que o art. 988 do PLC 8.046/2010 é inconstitucional. (…)
Salienta-se que, nem mesmo em processos incidentais de constitucionalidade, há
objetividade automática dos efeitos das decisões judiciais para outros
processos, sendo necessário o reconhecimento da repercussão geral pelo órgão de
cúpula do Poder Judiciário e aplicação do disposto no art. 52, X, da CF/1988,
em ato privativo do Senado Federal (somente assim seria atribuído efeito
erga omnes à decisão)”.7
Circulou
entendimento de que seria desnecessária a inclusão via emenda constitucional do
incidente tal qual feito para a súmula vinculante, porque a segunda precisou de
previsão constitucional para impedir violação à separação de poderes, uma vez
que ela também atingiria a Administração Pública. Esse entendimento é
absolutamente inconsistente. Tanto a súmula vinculante quanto o incidente irão
atingir a Administração Pública se ela for destinatária do comando normativo.
Se a questão
jurídica a ser dirimida no incidente for referente a um tributo federal ou
municipal, o julgamento não atingirá respectivamente a União e os Municípios?
Obviamente que sim. Do contrário, teríamos que sustentar que nas lides em que
figurar o Poder Público, a decisão paradigma do incidente vinculará pela metade,
tão somente o particular. Nessa perspectiva, não faz o menor sentido a
afirmação de que seria desnecessário introduzir o incidente mediante EC porque
ele não vincularia a Administração Pública.8
2.2
Violação ao contraditório
O NCPC não
prevê o controle judicial da adequação da representatividade como pressuposto
fundamental para a eficácia vinculante da decisão de mérito desfavorável aos
processos dos litigantes ausentes do incidente processual coletivo.9
A exposição de
motivos do anteprojeto que deu origem ao projeto de lei do NCPC assume que a
ideia de criação do IRDR teve inspiração no direito alemão, onde o instituto é
chamado de Musterverfahren.10
Apesar disso,
o IRDR não guarda nenhuma semelhança com o referido instrumento tedesco.11
Talvez nem mesmo a inspiração. No que se refere ao objeto do
procedimento-modelo alemão, ele é muito restrito, aplicando-se apenas às
controvérsias oriundas do mercado mobiliário. No Brasil, a aplicação será
ampla, abarcando qualquer matéria jurídica, inclusive para dirimir questões
processuais. O que interessa é que a questão seja jurídica. Em contrapartida, o
Musterverfahren aplica-se também às questões de fato.12
O instituto
alemão proporciona maior segurança jurídica na medida em que há uma espécie de
controle da representatividade do autor-principal no procedimento-modelo,
através de uma eleição/escolha dos representantes. No Brasil, não há qualquer
controle (infelizmente essa falta de controle tem sido a regra, estamos nos
acostumando a apostar na discricionariedade dos Tribunais Superiores). Para a
instauração do IRDR, basta que uma ação esteja pendente no tribunal e que haja
uma repetição de processos na primeira instância. Esse mesmo problema já é
enfrentando para a seleção do recurso especial ou extraordinário paradigma para
o qual irá ser submetido ao regime do CPC, arts. 543-B e 543-C. Referido
problema irá se agravar com o IRDR porque ele pode ser suscitado perante os
tribunais locais e regionais.
O NCPC, além
de não prever a possibilidade de o tribunal competente controlar a
representação adequada, expressamente estabelece que a decisão de mérito
proferida no incidente processual deve alcançar vinculativamente todos os
processos repetitivos (individuais e coletivos; pendentes e futuros),
qualquer que seja o resultado do julgamento (eficácia vinculante pro et
contra).
Não somente a
decisão favorável, mas também a desfavorável, alcançará com força
vinculante todos os processos repetitivos. Essa determinação do NCPC viola
flagrantemente a cláusula do devido processo legal e o princípio do
contraditório.
Conforme
estabelece o inc. LIV do art. 5.º da Constituição da República, “ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Ademais, o
inc. LV do mesmo dispositivo constitucional dispõe que “aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Para que a
decisão de mérito desfavorável proveniente do IRDR seja aplicada
vinculativamente aos processos repetitivos, é preciso que o sistema processual
brasileiro assegure o devido processo legal e, por consequência, o
princípio do contraditório aos litigantes abrangidos pelo incidente processual
coletivo. E a única forma de garantir a observância desses princípios
constitucionais é permitir o controle judicial da adequação da
representatividade dos interesses do grupo. A adoção dessa técnica processual
nada mais é do que um método de adaptação do princípio constitucional do
contraditório ao devido processo legal social ou coletivo.
O NCPC, ao
admitir que uma decisão desfavorável tenha eficácia vinculante sobre
todos os processos repetitivos, sem qualquer controle acerca da adequação da
representatividade, viola o direito ao contraditório de todos os litigantes
abrangidos pelo IRDR.
O novo texto
sequer exige, para as associações, a pré-constituição pelo prazo mínimo de um
ano. O sistema processual projetado está totalmente vulnerável à criação
oportunista de associações com objetivos poucos ligados aos interesses do grupo
afetado pela admissibilidade do IRDR.
Ademais,
quando a repetitividade de processos chegar ao tribunal, as partes de qualquer
demanda repetitiva poderão suscitar e participar do IRDR. Acontece que tais
requerentes nem sempre terão condições de realizar a defesa adequada dos
interesses em jogo. Portanto, o tribunal, dentro do possível, precisa assegurar
se o representante é suficientemente qualificado para levar ao IRDR todas as
questões e teses jurídicas discutidas nos processos repetitivos.
Além de não
haver qualquer controle sobre a qualidade dos representantes do grupo, o NCPC
também não assegura que a causa-piloto pendente no tribunal seja a mais representativa
da controvérsia, o que por si só pode deixar de fora da discussão diversas
teses jurídicas importantes para o correto deslinde da demanda.
De acordo com
o NCPC, qualquer causa repetitiva, desde que pendente no tribunal, poderá dar
ensejo à instauração do IRDR. Não se exige uma análise cuidadosa acerca da
existência de homogeneidade entre as questões envolvidas no processo pendente
no tribunal e nos demais processos repetitivos.13 Logo, chegando ao
tribunal a primeira causa repetitiva, qualquer legitimado pode, de imediato,
requerer a instauração do incidente processual, mesmo que essa demanda não seja
a que melhor representa a controvérsia.
Pior: a ideia
de julgamento abstrato do IRDR permite aplicar a tese jurídica às causas
futuras, referentes a litigantes que não tiveram qualquer possibilidade de
participação e influência no julgamento coletivo.14 Ademais, como
destaca Leonardo Greco, até “mesmo quanto aos casos pretéritos, os tribunais
superiores em nosso país têm manifestado uma nefasta má vontade em examinar a
correção da aplicação dos seus julgamentos-piloto aos casos concretos pelos
tribunais inferiores, como se, a partir dessas decisões de caráter geral, não
mais lhes coubesse a responsabilidade de velar pela correta aplicação da
Constituição de das leis”.15
Prosseguindo
com a comparação com o instituto alemão, vale salientar que o
Musterverfahren exige requisitos mais rígidos e objetivos para admitir sua
instauração, isso porque, após o primeiro requerimento de instauração do
procedimento-modelo, exige-se a formulação de, pelo menos, outros nove
requerimentos, durante um período de seis meses. Aqui, bastará um requerimento,
desde que já exista uma demanda pendente no tribunal.
Na realidade,
o IRDR coloca no Brasil a possibilidade de se concretizarem os efeitos da ação
coletiva passiva dos EUA sem o correspondente controle de representatividade
que deve ser ínsito a esse modelo. Afinal, se o cidadão será representado e
poderá ser atingido por uma decisão desfavorável, o mínimo que se poderia
pleitear é que a representatividade fosse controlada para assegurar uma boa
representação.16
Conclui-se,
então, como faz Antonio Gidi17 para as ações coletivas, que o
magistrado brasileiro, de lege lata, tem o dever de realizar o
controle judicial da representação adequada no âmbito do IRDR, em observância à
cláusula do devido processo legal. Cabe a ele verificar se os advogados
e as partes representativas têm condições técnicas, morais, financeiras etc. de
agir em juízo na defesa das posições jurídicas relacionadas às questões
jurídicas discutidas nas demandas repetitivas. Deve verificar, também, se a
causa pendente no tribunal abrange adequadamente a controvérsia repetitiva.
Na verdade,
melhor seria se o legislador introduzisse no texto projetado uma regulamentação
que assegurasse o controle judicial da representação, seguindo critérios a
serem atendidos pelos legitimados e seus advogados, em formato semelhante
àquele sugerido pelos anteprojetos de Código Brasileiro de Processo Civil
Coletivo.
2.3
Violação ao direito de ação
A completa
vinculação do IRDR não permite ao particular optar por prosseguir com sua ação
individual o que privilegiaria e asseguraria seu direito de ação.18
Em terrenos
processuais mais democráticos, a KapMuG permite que os litigantes individuais
peçam desistência da demanda (uma forma de opt-out), para não serem
atingidos pela decisão. No NCPC, não consta essa possibilidade. A vinculação é
absoluta, cega ao fato e cronofóbica.
O NCPC prevê
que a decisão de mérito pro et contra deve alcançar de forma vinculada
todos os processos repetitivos em tramitação. Essa vinculação é praticamente
absoluta. O novo sistema processual não adota o sistema de opt-in,
de modo que todos os processos repetitivos serão alcançados pela decisão de
mérito, independentemente de requerimento nesse sentido.
Do mesmo modo,
o NCPC não segue o sistema de opt-out, uma vez que não aceita o
exercício do direito de autoexclusão, com a possibilidade de o litigante
prosseguir com sua demanda isoladamente. Quando muito, o NCPC somente autoriza
que a parte interessada comprove que seu caso é distinto da situação jurídica
comum sob análise no IRDR. Para tanto, deve demonstrar, fundamentadamente, que
seu processo versa sobre situação particularizada por hipótese fática distinta
ou questão jurídica não abarcada pelo objeto do IRDR.
Essa forma de
vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5.º, XXXV, da
CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua
demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR.19 O
sistema processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa
possibilidade de escolha decorre do direito fundamental de ação, de sorte que o
legislador não pode criar uma forma de vinculação absoluta pro et contra sem
estabelecer mecanismos processuais que assegurem seu pleno exercício.
Importante
registrar que não ignoramos a sobrecarga vivenciada pelo Judiciário e o grande
número de ações ajuizadas no Brasil. Todavia, esse problema estrutural que
acompanha desde sempre o Judiciário brasileiro não pode ser solucionado às
custas do texto constitucional, mais precisamente sobre o direito de ação do
cidadão.
Em uma
democracia, a Constituição obrigatoriamente deve valer, ou seja, ter força
normativa. Essa normatividade não pode ser afastada por razões pragmáticas por
mais graves que elas sejam.
Da mesma forma
que uma lei não pode esvaziar o direito à educação, saúde, creche previstos na
Constituição pela alegação de que o Poder Público brasileiro não tem condições
para fornecê-los adequadamente para toda a população, o NCPC não pode esvaziar
o direito de ação do cidadão sob o argumento de que o Judiciário não consegue
absorver a quantidade de ações apresentadas. A lei inconstitucional não deixa
de conter a inconstitucionalidade porque a realidade infelizmente é
inconstitucional.
A forma de
opção pela participação no julgamento coletivo pode ser presumida (sistema
de opt-out: como acontece com a class action for damages e com o
Musterverfahren) ou expressa (sistema de opt-in: como ocorre
com as GLO do direito inglês). O que não se pode aceitar é simplesmente
o NCPC não adotar qualquer desses sistemas, silenciando a respeito do assunto e
impedindo, de forma absoluta, a possibilidade de os litigantes prosseguirem com
suas demandas isoladamente.
Se a ideia do
NCPC é vincular todos processos repetitivos à decisão do IRDR, mesmo sem
qualquer requerimento nesse sentido, deveria, ao menos, ter expressamente
permitido aos litigantes o exercício do direito de autoexclusão. Em outros
termos: como, aparentemente, a ideia do legislador não é adotar o sistema de
opt-in, o que se conclui com uma simples leitura do texto projetado,
deveria, ao menos, ter assegurado uma “válvula de escape” aos litigantes,
garantindo o direito de não participarem do julgamento coletivizado e de
prosseguirem com suas demandas isoladamente (opt-out).
Os incidentes
processuais coletivos estrangeiros adotam sistemas que permitem ao indivíduo o
direito de opção pelo julgamento coletivo ou individualizado. Por exemplo, no
procedimento-modelo (Musterverfahren) do direito alemão, a KapMuG autoriza
que o autor da demanda repetitiva exerça, sem consentimento do réu, no prazo de
um mês contado da comunicação da decisão que suspendeu seu processo, o direito
de pedir desistência da demanda individual, como forma de não ser
alcançado pelos efeitos da decisão-modelo (sistema de opt-out). Além
disso, a KapMuG permite que as partes representativas formalizem um acordo, de
forma que os termos ali decididos atinjam todos os processos. Nesse caso,
permite-se o direito de o indivíduo optar por não aderir ao acordo (Opt-out).
No Brasil, não há essa possibilidade, pelo menos expressamente.
No caso das
Group Litigation Orders (GLO) do direito inglês é exatamente o contrário.
Cada parte interessada deverá optar positivamente (opt-in) por
participar do julgamento coletivizado das demandas atingidas pela ordem de
litígio coletivo. Se já ultrapassado o prazo para opção (cut-off date),
não haverá prejuízo ao indivíduo, que pode ajuizar demanda individual fora do
sistema das GLO.20
Desse modo,
para que não exista violação ao direito fundamental de ação, é preciso que seja
assegurado aos litigantes dos processos repetitivos um dos sistemas acima
mencionados: opt-in ou opt-out. Isto é, o NCPC, de uma forma ou
de outra, deveria assegurar às partes o direito de optarem pela não
participação no julgamento do IRDR.
No direito
alemão, todos os indivíduos alcançados pela decisão do procedimento-modelo serão
responsáveis pelo pagamento proporcional das custas relativas a esse incidente
coletivo. Por outro lado, o NCPC isenta o pagamento de custas no IRDR.
Por fim,
entendemos que há uma profunda discordância no que se refere à teleologia posta
entre os dois institutos. O Musterverfahren, diferentemente do IRDR, não
objetiva se apresentar como uma panaceia para resolução das principais mazelas
do sistema judiciário tais como a alta quantidade de demandas e a
jurisprudência instável. Pelo contrário, o mecanismo alemão teve sua criação
destinada essencialmente a resolver questões pontuais geradas num determinado
espaço de tempo, prova disso é que a legislação do procedimento-modelo (KapMug)
tem vigência até 2020, o que demonstra o caráter temporário do instituto
estrangeiro.21
Essa diferença
de escopos entre os dois mecanismos permite elucidar as razões pelas quais o
IRDR contém uma pretensão de vinculação inexorável que conduz a diversas outras
inconstitucionalidades.22
O incidente
brasileiro da maneira que foi criado tem por finalidade criar a vinculação para
os casos afetados e suspensos pelo incidente bem como tornar essa vinculação
para causas futuras. Em contrapartida, a decisão proferida no
procedimento-modelo não se aplica às causas futuras. Esse ponto evidencia a
flagrante inconstitucionalidade.
A decisão no
procedimento-modelo tem efeito vinculante e faz coisa julgada. No Brasil, não
faz coisa julgada, os alemães diferenciam profundamente o efeito vinculante da
coisa julgada.
No Direito
Alemão, são basicamente três os efeitos identificados na sentença
constitucional: a coisa julgada (rechtskraft), força de lei (Gesetzeskraft)23
e efeito vinculante (Bindungswirkung).24 A força de lei é
instituto característico do direito alemão e está prevista no § 31 Abs. 2 da
BVerfGG. A força de lei atribui efeito erga omnes ao caso julgado. O
efeito vinculativo (Bindungswirkung) limita-se aos órgãos do Poder
Público, a força de lei impõe-se perante todos, inclusive perante aos particulares.25
O efeito vinculante, por sua vez, pode estender-se aos motivos determinantes,
não se restringe ao dispositivo, porém não vincula os particulares, apenas os
órgãos constitucionais e a Administração Pública.26
Ocorre que a
pretendida vinculação para casos futuros contém caráter anti-hermenêutico e é
inconstitucional na medida em que fecha as portas do direito para a
historicidade do mundo da vida. Novamente, se determinado entendimento é
vinculante para as causas presentes e futuras, qual a alternativa para que
ocorra uma modificação da jurisprudência que melhor se harmonize com a
Constituição Federal?
Essa
vinculação para o futuro evidencia o caráter cronofóbico e
anti-hermenêutico do IRDR. Quando se permite a vinculação para as causas que
ainda irão surgir é como se o Tribunal, por meio do IRDR, criasse uma decisão
onipresente que contivesse a antecipação de sentido de todas as demais causas a
tratarem daquela quaestio iuris.
Essa faceta é
a mais antidemocrática do IRDR porque ela pode engessar a revisão pelo
Judiciário de determinado incidente para causas futuras.
Basta
imaginarmos se a questão dos filhos havidos fora do casamento dito oficial
tivesse tido sua causa vinculada para o futuro, provavelmente, não teríamos
conseguido visualizar a correção do entendimento jurisprudencial do STF que se
modificou para afirmar que os filhos havidos fora do casamento oficial possuem
os mesmos direitos que os filhos oriundos de relações não oficiais.
A vinculação
pro futuro pode trazer riscos nefastos para o sistema jurídico. Isso porque
se as novas causas já nascem vinculadas, elas inadmitem a possibilidade de
modificação jurisprudencial, tornando, assim, necessária uma alteração
legislativa para atualizar a Jurisprudência.
Nesse
contexto, o Brasil adquiriria mais uma característica de originalidade, seria o
único pais em que a legislação atualizaria a jurisprudência e não o contrario.
Essa originalidade nem o common law e nem o civil law já
experimentaram.
Demais disso,
não se pode deixar de afirmar que o direito de ação,27 enquanto
acesso à justiça, previsto no inc. XXXV do art. 5.º da CF/198828 é
violado quando o jurisdicionado está desde já vinculado a entendimento jurídico
para processo que sequer foi instaurado.
Apesar de o
NCPC admitir a revisão da tese jurídica, não existe autorização que permita ao
legitimado apresentar o requerimento de reexame diretamente ao tribunal.
O pedido somente é possível, incidentalmente, em sede de causa
originária ou recurso repetitivo futuros.
Acontece que o
NCPC cria uma verdadeira barreira à possibilidade de revisão da tese jurídica
em causas futuras, por meio de diversos mecanismos processuais, tais como a
improcedência liminar do pedido, monocratização de decisões dos tribunais,
inexistência de reexame necessário quando sucumbente a fazenda pública, risco
de multa por litigância de má-fé etc. Há, dessa forma, um sério risco de
engessamento da jurisprudência.29
A atribuição
desmedida de efeitos vinculantes às decisões das Cortes Superiores impede a
formação da própria jurisprudência, que se torna engessada. Afinal, a
jurisprudência para se constituir como fonte do direito, – na legítima acepção
da palavra, tem que ser fruto de históricas e reiteradas decisões dos
tribunais, com as contradições e evoluções que são ínsitas a todo processo
histórico.30
Contudo, se
utilizarmos o efetivo efeito vinculante para os processos repetitivos, apesar
de se obter o aumento da velocidade dos processos, corre-se o risco de sepultar
a própria jurisprudência, que seria delimitada e fixada a partir de uma única
decisão dos tribunais superiores. Para se alterar um entendimento
jurisprudencial no Brasil, uma das poucas alternativas restantes seria por lei.
Logo, o Brasil passaria a ser o único país em que a lei atualiza a
jurisprudência e não o contrário.
Recentemente,
nesse contexto, o jornal Valor Econômico, em sua versão on-line,
publicou interessante reportagem, intitulada “Tenho medo dos recursos
repetitivos”, na qual divulgou um debate ocorrido entre alguns ministros do
STJ. Durante o julgamento do REsp 1.217.710/RS na primeira turma do STJ,
os integrantes do referido colegiado demonstram grande preocupação com a
utilização desmedida de novas técnicas de resolução de demandas repetitivas.31
O que se
verifica, na verdade, é que o modo como o NCPC tenta importar o sistema do
stare decisis do common law é absolutamente inadequado.32
O precedente judicial nos países de tradição anglo-saxônica funciona
como ponto de partida para a discussão e resolução da lide, função que,
nos países do civil law, é desempenhada pela própria legislação. Sua
aplicação exige intensa interpretação e realização do contraditório entre as
partes.
No caso do
IRDR, a tese jurídica não serve de ponto de partida, mas de linha de chegada
para resolução dos casos repetitivos. Constitui verdadeira regra
decisória, dispensando as alegações das partes, a fundamentação e a
problematização decisional. Por isso, o NCPC tornou desnecessária a
interpretação da lei ou do texto constitucional, assim como o exame das
alegações das partes para a resolução dos processos repetitivos sobrestados.33
2.4
Violação à competência dos juizados especiais
Por último,
apontamos uma quarta inconstitucionalidade atinente ao incidente de resolução
de demandas repetitivas.34 A inconstitucionalidade seria a
determinação de que a tese jurídica posta no incidente incidisse em face nos
processos que tramitam nos juizados especiais, uma vez que o próprio STF já
deliberou, por diversas vezes, que os juizados não estão submetidos aos
Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais.35
A parte
final do inc. I do art. 982 do NCPC estabelece que a tese jurídica fixada
no julgamento do IRDR também será aplicada obrigatoriamente aos
processos em andamento nos juizados especiais do respectivo Estado ou região.
No mesmo sentido, o II Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC),
realizado em Salvador durante o mês de novembro de 2013, aprovou o enunciado
n. 93, cuja redação é a seguinte: “Admitido o incidente de resolução de
demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem
sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados
especiais no mesmo estado ou região”.
Assim, por
exemplo, as decisões de admissibilidade (eficácia suspensiva dos processos)
e de mérito (tese jurídica) proveniente de IRDR suscitado perante o
TJDFT também serão aplicadas aos processos em tramitação nos Juizados
Especiais Cíveis e da Fazenda Pública do Distrito Federal. Igualmente, as
decisões decorrentes de IRDR instaurado junto ao TRF da 1.ª-Reg. abrangerão
todos os processos em tramitação na justiça federal dos entes federativos da
respectiva região, alcançando, inclusive, aqueles em andamento nos juizados
especiais federais cíveis.
Com a devida
vênia, a interpretação sugerida pelo enunciado n. 93 do FPPC, assim como
a redação da parte final do inc. I do art. 982 do NCPC, ou seja, a
eficácia suspensiva e a aplicação vinculante da tese jurídica aos
processos em tramitação nos juizados especiais do respectivo Estado ou
região, são inconstitucionais.
A primeira
grande discussão travada nos tribunais acerca da vinculação jurisdicional dos
juízes integrantes dos juizados especiais ao tribunal do respectivo Estado ou
região surgiu em decorrência do ajuizamento de diversos mandados de seguranças
contra decisões judiciais irrecorríveis, proferidas no procedimento
sumaríssimo.
Como se sabe,
no âmbito dos juizados especiais, as decisões interlocutórias são, em regra,
irrecorríveis, dando ensejo à impetração do mandado de segurança, na forma
de sucedâneo recursal, como autoriza o inc. II do art. 5.º da Lei do Mandado de
Segurança.
A partir de
então surgiu a seguinte dúvida: qual o órgão jurisdicional competente para
processar e julgar o mandado de segurança impetrado contra ato de juiz dos
juizados especiais? Seriam as Turmas Recursais ou o Tribunal do Estado ou
Região em que a decisão foi proferida?
A dúvida
decorre do que estabelece o art. 108, I, c, da CF/1988. De acordo com o referido
dispositivo “compete aos Tribunais Regionais Federais processar e
julgar, originariamente, os mandados de segurança e os ‘habeas data’ contra ato
do próprio Tribunal ou de juiz federal”.
Em reforço à
dúvida, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), LC 35/1979, em seu
art. 101, §§ 2.º e 3.º, d, estabelece que: “Os Tribunais compor-se-ão
de Câmaras ou Turmas, especializadas ou agrupadas em Seções especializadas. A
composição e competência das Câmaras ou Turmas serão fixadas na lei e no
Regimento Interno. (…) § 2.º As seções especializadas serão integradas,
conforme disposto no Regimento Interno, pelas Turmas ou Câmaras da respectiva
área de especialização. § 3.º A cada uma das Seções caberá processar e julgar:
(…) d) os mandados de segurança contra ato de Juiz de Direito; (…)”
(destaques do autor).
A
interpretação literal dos referidos dispositivos constitucionais e
legais permitia dizer que a competência para processar e julgar o mandado de
segurança contra ato de juiz dos juizados especiais seria do Tribunal e não das
Turmas Recursais.36
Todavia, o STF
decidiu, diversas vezes, que os juizados especiais não estão sujeitos à
jurisdição dos Tribunais de Justiça dos Estados e dos Tribunais Regionais
Federais.37 Isto é, os juízes que integram os juizados especiais não
estão subordinados (para efeitos jurisdicionais) às decisões dos Tribunais de
Justiça dos Estados ou dos Tribunais Regionais Federais. A suspensão e a
imposição vinculativa da tese jurídica aos processos repetitivos em tramitação
nos juizados especiais violam o texto constitucional.
Em doutrina,
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também defendem a não
vinculação dos magistrados integrantes dos juizados especiais às decisões dos
tribunais locais e regionais. Segundo explicam, “o TJ pode reformar decisão de
juiz de direito, mas não decisão do juizado especial. Esse é o sentido da
vinculação de que trata a CF 105 I d: o juiz de direito é ‘vinculado’ ao
TJ, mas o juiz do juizado especial não o é. Como não há subordinação das
decisões do juiz do juizado especial ao TJ, esse juiz é ‘não vinculado’ ao TJ
para efeitos jurisdicionais. Assim, o caso concreto trata de conflito entre
juízes vinculados a tribunais diversos (o juiz de direito é ‘vinculado’ ao TJ:
o juiz do juizado especial é ‘vinculado’ à turma recursal)”.38
Vale dizer que
o senador Vital do Rêgo, no relatório aprovado junto à Comissão Temporária
destinada a examinar o substitutivo da Câmara dos Deputados, sugeriu a exclusão
da eficácia vinculante das decisões do IRDR aos processos em tramitação nos
juizados especiais. Segundo a proposta do relator:
“O atual texto
sugerido ao caput do art. 995 do SCD contém, em sua parte final, uma
previsão que padece de vício de inconstitucionalidade. Prevê que o julgamento
do incidente de resolução de demandas repetitivas será aplicado não apenas aos
processos em trâmite no primeiro grau de jurisdição, mas também nos juizados
especiais. Acontece que os tribunais locais e regionais não possuem competência
recursal sobre os juizados especiais de seu território, por força do arranjo de
competências fixado na Constituição Federal. Assim, não pode uma norma
infraconstitucional desrespeitar o desenho de competências da Carta Magna,
estendendo os braços jurisdicionais das cortes locais e regionais sobre os
juizados especiais. Quanto aos juizados, apesar da omissão constante do SCD – a
qual não poderia ser suprida no presente átimo do processo legislativo por
questões regimentais –, eventual interpretação teleológica do novo Código poderá
encontrar alento na doutrina e na jurisprudência para admitir o incidente de
resolução de demandas repetitivas na seara recursal dos juizados especiais.
Suprima-se, portanto, o sintagma “inclusive àqueles que tramitem nos
juizados especiais do respectivo estado ou região”, constante do caput do art.
995 do SCD. A redação final desse dispositivo será lançada no capítulo que este
relatório dedicou aos arts. 988 ao 999 do SCD, tendo em vista várias outras
alterações na reorganização desses preceitos”.
Apesar dessa
proposta do relator, o substitutivo apresentado juntamente com o relatório
aprovado não excluiu a menção “inclusive àqueles que tramitem nos juizados
especiais do respectivo estado ou região”. Ou seja, o texto projetado que será
submetido à apreciação dos senadores continua a permitir a aplicação da tese
jurídica aos processos em trâmite nos juizados especiais.
Conforme a
redação do inciso I do art. 982 do CPC:
“Art. 982.
Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:
I – a todos os
processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito
e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive
àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região.”
Melhor saída
seria, por exemplo, o NCPC39 estabelecer, como faz no art. 1.059
para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no Livro
Complementar das Disposições Finais e Transitórias, que o IRDR aplica-se aos
processos dos juizados especiais, cabendo o julgamento do incidente às Turmas
de Uniformização. O que não se pode aceitar é que uma a tese jurídica fixada em
incidente processado e julgado em órgão jurisdicional estranho ao microssistema
dos juizados especiais (TJs e TRFs) alcance vinculativamente os processos ali
em tramitação.
3.
Conclusões: riscos ao sistema decisório
Além de todas
as inconstitucionalidades acima apontadas, importante também fazermos o
seguinte alerta: a sistemática prevista no NCPC para o IRDR não pode ser
confundida com o sistema do stare decisis do common law. De forma
simplificada podemos destacar que o stare decisis aposta no caso
concreto e na qualidade, o NCPC com o IRDR no julgamento em teses abstratas e
na quantidade. O primeiro é fruto do desenvolvimento histórico de um sistema
jurídico, o outro uma criação do nosso Legislativo. O stare decisis é um
aperfeiçoamento histórico, o IRDR, infelizmente, é uma originalidade
inconstitucional.
Na realidade,
a sistemática introduzida pelo IRDR caracteriza uma forma particular de nosso
ordenamento em forçar a uniformização da jurisprudência, ignorando a
conflituosidade que é ínsita à atividade jurisprudencial, característica de
todo atividade que contenha um devir histórico. Trata-se de uma aposta que crê
na possibilidade de instituir um sistema (stare decisis) que é
antiuniversalista, própria da historicidade dos países que o possuem. A nossa
qualidade decisional não é um problema somente porque os precedentes não são
respeitados, nosso sistema também tem diversos problemas porque a própria lei e
principalmente a Constituição não são respeitados, merecendo destaque o inc.
XXXV do art. 5.º e o IX do art. 93.
Na realidade,
as decisões vinculantes almejam constituir-se como a regras decisórias dos
casos concretos, ou seja, como se contivessem a norma pronta e acabada, que
pudesse substituir a toda especificidade fático-jurídica dos casos concretos.
Outrossim, é
totalmente cega para a dimensão qualitativa qualquer proposta de criação de
instrumentos vinculatórios para as decisões se não houver como pano de fundo teórico
uma séria discussão acerca de resposta correta (constitucionalmente adequada) e
teoria da decisão judicial.40
Enquanto não
houver uma discussão séria e uma crítica contundente à discricionariedade
judicial a partir de uma efetiva teoria da decisão judicial, a chamada
jurisprudência lotérica persistirá. Ocorrerá tão somente uma escolha
aleatória para a decisão que será vinculante. Vale dizer, dar-se-á efeito
vinculante para o julgado do TJ e do TRF, ainda que ele seja discricionário, e
possivelmente, possa vir a ser modificado na próxima sessão de julgamento.
Novamente, sob pena de sermos repetitivos, pouco ou quase nada se ganha em
termos de democracia, se uniformizarmos decisões a partir de julgados
discricionários, tão somente porque proveniente de nossos Tribunais.41
Desse modo, a
jurisprudência vinculante estabelecida no NCPC não pode ser confundida com o
sistema do stare decisis do common law. Em verdade, ela
caracteriza uma forma particular de nosso ordenamento em forçar a uniformização
da jurisprudência, ignorando a conflituosidade que é ínsita à atividade
jurisprudencial, característica de toda atividade que contenha um devir histórico
que é, aliás, elemento essencial da cultura humana, o que nos faz crer que o
pretendido sistema de vinculação jurisprudencial não foi inspirado no common
law, mas em tipos organizacionais de trabalho contínuo e estagnado, e.g.,
sociedade de formigas, abelhas etc.,42 supondo que a perfeição de
seu funcionamento se deve à tal imutabilidade, como se a facticidade estagnada
dessas sociedades pudesse ser equiparada à de nossa sociedade cada vez mais
complexa e dinâmica.
1 O texto
utilizado pelo presente estudo corresponde ao substitutivo constante do
relatório do senador Vital do Rêgo, aprovado, em 27.11.2014, pela Comissão
Temporária instituída no Senado para examinar o substitutivo da Câmara dos
Deputados.
2 Para a
análise mais completa e qualificada sobre o incidente de demandas repetitivas,
consultar a seguinte dissertação: Marcos de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de
resolução de litígios de massa: um estudo comparativo entre as ações coletivas
e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Dissertação de Mestrado
defendida no programa de direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, em 2014.Para uma leitura constitucionalmente adequada do IRDR, ver o
perspicaz ensaio de Dierle Coelho Nunes. Precedentes, padronização decisória
preventiva e coletivização – Paradoxos do sistema jurídico brasileiro: uma
abordagem Constitucional democrática. In: Teresa Arruda Alvim Wambier.
Direito jurisprudencial, São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 245 et seq.
3 Ver. Georges
Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, São Paulo:
Ed. RT, 2011, p. 185-212.
4 Para maiores
detalhes, ver Georges Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial:
o ato administrativo e a decisão judicial, São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 393
et seq.
5 TSE, Pleno,
REsp 9.936/RJ, rel. Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, Acórdão 12.501, de
14.09.1992.
6 STF, Pleno,
Representação 946/DF, rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. 12.05.1977, DJU 01.07.1977,
p. 44.
7 Júlio César
Rossi. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução
de demandas repetitivas. Revista de Processo. vol. 208, 2012, p. 234).
No mesmo sentido, ver, Marcelo Barbi Gonçalves. O incidente de resolução de
demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo, vol.
222, 2013, p. 231.
8 Georges
Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial… cit., p. 393.
9 Sobre a
necessidade do controle judicial da representatividade adequada para assegurar
o direito ao contraditório dos litigantes ausentes, ver Marcos de Araújo
Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit., n.
6.17.1, p. 477 et seq.
10 Vale
transcrever o referido trecho da exposição de motivos do anteprojeto de novo
CPC: “Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da
eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a
possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de
primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que
estejam tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento,
desatreladamente dos afetados. Com os mesmos objetivos, criou-se, com
inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma
questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para
decisão conjunta. O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível
quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar
multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de
decisões conflitantes”. Em nota de rodapé, a exposição de motivos esclarece
que: “No direito alemão a figura se chama Musterverfahren e gera
decisão que serve de modelo (= Muster) para a resolução de uma
quantidade expressiva de processos em que as partes estejam na mesma situação,
não se tratando necessariamente, do mesmo autor nem do mesmo réu” (FUX, Luiz.
[Presidente da Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado
Federal 379/2009] [et al]. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
Disponível em: [www.senado.gov.br]. Acesso em: 17.11.2014).
11 Sobre uma
análise completa e atual sobre o procedimento-modelo do direito alemão, ver
Marcos de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
cap. 4. Para uma diferenciação entre os dois incidentes, ver também: Julio
Cesar Rossi. O precedente à brasileira cit., p. 203 et seq.
12 Antonio do
Passo Cabral. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma
alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, vol. 147, p. 132,
2007.
13 Leonardo
Greco. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: Márcia
Cristina Xavier de Souza e Walter dos Santos Rodrigues (coords.). O novo
Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias
fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 26.
14 Idem,
ibidem.
15 Idem,
ibidem.
16 Sobre ação
coletiva passiva e controle de representatividade, ver: Angelo Ancheta.
Defendant Class Actions and Federal Civil Rights Litigation. Santa Clara Law
Digital Commons, 1985, p. 283 et seq; Francis Xen. The Overlooked Utility
Of The Defendant Class Action. Denver University Law Review, n. 88,
2011, p. 73 et seq; Barry Wolfson. Defendant Class Actions, In: Ohio State
Law Journal, n. 38, 1977, p. 459 et seq. Para exame aprofundado acerca da
questão da legitimidade, conferir: Eduardo Cândia. Legitimidade ativa na
ação civil pública, Salvador: JusPodivm, 2013, passim.
17 Antonio
Gidi. Rumo a um código de processo civil coletivo: a codificação das ações
coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 81.
18 Para
maiores detalhes sobre o direito de autoexclusão, ver Marcos de Araújo
Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit., n.
6.17.2., p. 488 et seq.
19 Em sentido
semelhante, mas tratando sobre as ações coletivas, Júlio César Rossi assevera:
“Não há como tolher o direito de ação de um indivíduo que não pretende aderir a
um processo coletivo. É uma opção do titular de um direito homogêneo ingressar
em uma ação coletiva, na qualidade de litisconsorte (vinculando-se ao resultado
da lide coletiva), como também suspender sua demanda individual para aproveitar
o resultado favorável estabelecido naquela, ou, ainda, não se vincular ao
pronunciamento exarado na ação coletiva. Essas posturas são conferidas pelo
direito fundamental de ação (art. 5.º, XXXV, da CF/1988) e pelo devido processo
legal (art. 5.º, LV, da CF/1988). (…) Não vemos como censurar de inoperante e
ineficaz o processo coletivo em vista da impossibilidade de se blindar o
cidadão de exercer uma faculdade constitucionalmente prevista: a de demandar
perante o Poder Judiciário” (Julio Cesar Rossi. O precedente à brasileira cit.,
p. 232).
20 Para estudo
dos mecanismos estrangeiros de resolução de demandas repetitivas, consultar
Marcos de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
cap. 4.
21 Ver Marcos
de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
p. 261.
22 Acerca do
tema, merece destaque o alerta de Dierle Nunes: “Como se percebe do modelo de
precedentes estrangeiros, os padrões decisórios cumprem em grande medida o
papel uniformizador em dissensos existentes e não, em regra, o de prevenir sua
ocorrência em situações complexas.No entanto, a atual sistemática do código
reformado e do Projeto de novo CPC viabilizam a utilização de julgados com a
finalidade preventiva toda vez que se perceber a possibilidade de profusão de
demandas. Nestes termos, ao receber uma das primeiras demandas ou recursos, o
Judiciário afetaria como repetitivo e o julgaria com parcos argumentos, antes
mesmo da ocorrência do salutar dissenso argumentativo.
Exemplo
evidente é a utilização corrente das técnicas de pinçamento para análise do
recurso extraordinário e do recurso especial repetitivo, na atualidade, e do
projetado incidente de resolução de demandas repetitivas, que clama por uma
urgente adequação na Câmara dos Deputados, em face de sua feição preventiva”.
de Dierle Coelho Nunes. Precedentes, padronização decisória preventiva e
coletivização, p. 267-268.
23 A força de
lei está prevista no § 31 (2) da Lei do Tribunal Constitucional Federal com a
seguinte redação: “nos casos do § 13, números 6, 6a, 11, 12 e 14, a decisão do
tribunal constitucional federal tem força de lei. Isso vale também nos casos do
§ 13, número 8a, quando o tribunal constitucional federal declara uma lei
compatível ou incompatível com a lei fundamental, ou nula. À medida que uma lei
é declarada compatível ou incompatível com a lei fundamental ou com outro
direito federal, ou nula, o dispositivo da decisão deve ser publicado no diário
oficial da federação pelo ministério federal da justiça”. Cf. a tradução da lei
realizada por Luís Afonso Heck. Jurisdição constitucional e legislação
pertinente no direito comparado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006,
p. 84-85.
24 O efeito
vinculante está previsto no § 31 (1) da Lei do Tribunal Constitucional Federal
com a seguinte redação: “As decisões do tribunal constitucional federal
vinculam os órgãos constitucionais da federação e dos estados, assim como todos
os tribunais e autoridades”. Cf. Luís Afonso Heck. Jurisdição constitucional
e legislação pertinente no direito comparado cit., p. 84.
25 Cf. Ri
Medeiros. A decisão de inconstitucionalidade cit., § 32, p. 774.
26 Cf. Pablo
Pérez Tremps. Tribunal constitucional e poder judicial. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1985, p. 262-263. José Ignácio Botelho de
Mesquita. O desmantelamento do sistema brasileiro de controle de
constitucionalidade cit., p. 90. Peter Häberle. La verfassungsbeschwerde
nel sistema della giustizia costituzionale tedesca cit., p. 70-72.
27 Outro ponto
que merece análise é a questão da independência da magistratura perante uma
vinculação inexorável, obviamente que o magistrado não pode ignorar a
jurisprudência do STF e do STJ, todavia essa vinculação não pode conduzir a uma
proibição de interpretar. Em perspectiva interessante, vale a análise de
Marcelo Barbi Gonçalves. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a
magistratura deitada. Revisa de Processo, vol. 222, p. 221 et seq, 2013.
28
Corroborando a inconstitucionalidade por violação ao direito de ação, ver
Marcos de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
n. 6.17.2, p. 488 et seq. Nesse sentido, merece destaque o entendimento de
Julio Rossi:“Os regimes jurídicos do IRDR e do processo coletivo, que tutela os
direitos individuais homogêneos, devem passar por uma reflexão.
Os direitos
individuais homogêneos (direitos divisíveis, cujos titulares são ou podem ser
determináveis e tenham experimentado lesões ou danos divisíveis em razão
derivados de origem comum) tutelados de forma coletiva podem, sem dúvida, gerar
demandas assemelhadas, mas nem por isso, o microssistema processual
estabelecido entre a Lei 7.347/1985 (LACP) e Lei 8.078/1990 (CDC) se mostra
inidôneo ou superado para a solução dos conflitos de massa.
Evidentemente
que a sistemática regrada no microssistema não impede que existam demandas
individuais repetitivas – mesmo pendente ação coletiva cujo objeto seja a
tutela de um direito individual homogêneo – até porque a Constituição Federal
confere, na qualidade de direito fundamental, o acesso à Justiça (art. 5.º,
XXXV, da CF/1988). O que o Código de Defesa do Consumidor, no entanto permite,
é uma integração entre o direito de ação e a possibilidade de aproveitamento da
coisa julgada favorável aos titulares de direitos tomada na ação coletiva.
Não há como
tolher o direito de ação de um indivíduo que não pretende aderir a um processo
coletivo. É uma opção do titular de um direito homogêneo ingressar em uma ação
coletiva, na qualidade de litisconsorte (vinculando-se ao resultado da lide
coletiva), como também suspender sua demanda individual para aproveitar o
resultado favorável estabelecido naquela, ou, ainda, não se vincular ao
pronunciamento exarado na ação coletiva. Essas posturas são conferidas pelo
direito fundamental de ação (art. 5.º, XXXV, da CF/1988) e pelo devido processo
legal (art. 5.º, LV, da CF/1988).
Assim, a
parcela da doutrina que sustenta que a sistemática coletiva adotada no Brasil
não exclui do indivíduo a possibilidade de, sozinho, postular em juízo na
defesa de direito que é seu, mas que, comumente, é também compartilhado por
muitas outras pessoas”, nada mais faz do que reconhecer um direito fundamental
do cidadão”.
Julio Cesar
Rossi. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de
resolução de demandas repetitivas, cit., item 5.
29 CF. Georges
Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial… cit., p. 402; e
Marcos de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
n. 6.18., p. 492.
30 Georges
Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial… cit., p. 402-403.
31 Em razão de
sua importância, vale transcrever trecho da notícia sobre a inusitada e sincera
discussão: “O primeiro Ministro a falar foi Ari Pargendler, que além de ter
mais de 18 anos de Casa, já a presidiu. A sua frase foi forte: ‘Eu tenho muito
medo dos recursos repetitivos!’. Ele continuou: ‘Nunca levei nenhum caso
repetitivo para à 1.ª Seção’. Finalizou registrando: ‘Acho que muitas vezes
eles perpetuam situações que não são boas para o direito’. As afirmações
abriram espaço para que o Ministro Napoleão Nunes Maia, presidente da 1.ª Turma
do STJ, as encorpasse: ‘A nossa paixão pelos recursos repetitivos está nos
tornando irracionais. Toda paixão tira a razão’, disse. Segundo o Ministro, ‘as
decisões tomadas pela sistemática dos recursos repetitivos não nos dá o
melhor’. Ele recordou que o julgamento nessa modalidade processual ‘gera um
efeito cascata. Não sobe mais nada’. Questionando a possibilidade de reverter o
leading case, afirmou que, ‘mudar o precedente é um tsunami’: ‘São
irreversíveis as decisões em recurso repetitivo. São mais veementes do que as
súmulas’, comentou. Para o Ministro, ‘não é possível saber como vamos para o
futuro com os repetitivos’. Napoleão Nunes Maia recordou a obra do sociólogo
Zygmunt Bauman, ‘Medo Líquido’, que fala sobre os medos contemporâneos que
assolam a sociedade: ‘Bauman, em seu livro, não falou dos recursos repetitivos,
mas poderia’ – disse, arrematando sua fala com a frase: ‘Eu também tenho medo
dos repetitivos!’” (TOURINHO, Saul. “Tenho medo dos recursos repetitivos!”, diz
Napoleão Maia, no STJ. Valor Econômico. Disponível em:
[www.valor.com.br]. Acesso em: 02.08.2014).
32 GRECO,
Leonardo. Op. cit., p. 14.
33 Cf. Georges
Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial… cit., p. 406.
34 Ver. Marcos
de Araújo Cavalcanti. Mecanismos de resolução de litígios de massa cit.,
n. 6.17, p. 476.
35 Cf. STF,
Pleno, RE 586789/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16.11.2011.
36 Aluísio
Gonçalves de Castro Mendes. Competência cível da justiça federal. 3. ed.
São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 220.
37 Nesse
sentido, as seguintes decisões: STF, Pleno, RE 586.789/PR, rel. Min. Ricardo
Lewandowski, j. 16.11.2011, Repercussão Geral – Mérito Acórdão Eletrônico,
DJe-039, Divulg. 24.02.2012, Public. 27.02.2012; STF, Pleno, CComp
7.081/MG, rel. Min. Sydney Sanches, j. 19.08.2002, DJ 27.09.2002, p.
00117.
38 Nelson Nery
Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil comentado e
legislação extravagante cit. p. 1866-1867.
39 NCPC, art.
1.059. “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao
processo de competência dos juizados especiais.”
40 A questão
da resposta correta foi introduzida e desenvolvida no Brasil por Lenio Streck.
A sua utilização como forma para leitura constitucionalmente adequada dos
instrumentos vinculatórios foi por nós desenvolvida na obra O que é isto – o
precedente judicial e as súmulas vinculantes?, passim.Merece destaque
recente análise de Teresa Arruda Alvim Wambier que apontou a importância de se
trabalhar com a ideia da resposta correta para o caso concreto. O trabalho
destaca a importância de se teorizar acerca da resposta correta para se
trabalhar corretamente com sistema de precedentes vinculantes: Cada caso
comporta uma única solução correta? Direito jurisprudencial II, São
Paulo: Ed. RT, 2014, passim.
41 Georges
Abboud e Nelson Nery Junior. Stare decisis vs. direito jurisprudencial,
Novas tendências do processo civil, Salvador: JusPodivm, 2013, p. 508-509.
42 Para esse
tipo de sociedade, basta uma única lei imutável no tempo, afinal elas são
estagnadas não há mudanças ou surgimento de complexidades o que tornaria
inclusive legítima a criação de jurisprudência vinculante a partir de uma única
decisão. A inspiração dessa comparação deve-se a Machado de Assis. Os deuses de
casaca. In: FARIA, João Roberto (org.). Teatro de Machado de Assis. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. “Sempre do mesmo modo, ó abelha, os teus favos /
Destilas. Sempre o mesmo, ó castor exemplar, / Sabes a casa erguer junto às
ribas do mar. / Ainda hoje, empregando as mesmas leis antigas, / Viveis no vosso
chão, ó providas formigas. / Andorinhas do céu, tendes ainda a missão / De
serdes, findo o inverno, as núncias do verão. / Só tu, homem incerto e altivo,
não procuras / Da vasta criação estas lições tão puras… / Corres hoje a Paris,
como a Atenas outrora; / A sombria Cartago é a Londres de agora. / Ah! Pudesses
tornar ao teu estado antigo!”Sobre tema, ver Georges Abboud e Nelson Nery
Junior. Stare decisis vs. direito jurisprudencial cit., p. 508-509.
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