RECURSO ESPECIAL Nº 1.843.846 - MG (2019/0312949-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
3ª TURMA; UNÂNIME
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE
TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA.
PENHORA DE IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL.
IMPENHORABILIDADE. ÔNUS DA PROVA DO EXECUTADO DE QUE O BEM
CONSTRITO É TRABALHADO PELA FAMÍLIA. DESNECESSIDADE DE O IMÓVEL
PENHORADO SER O ÚNICO IMÓVEL RURAL DE PROPRIEDADE DO
EXECUTADO. MULTA POR EMBARGOS MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIOS.
MANUTENÇÃO. JULGAMENTO: CPC/2015.
1. Ação de execução de título extrajudicial ajuizada em 04/05/2017, da qual
foi extraído o presente recurso especial interposto em 14/10/2019 e
atribuído ao gabinete em 25/10/2019.
2. O propósito recursal consiste em dizer: a) se houve cerceamento de
defesa; b) sobre qual das partes, exequente ou executado, recai o ônus da
prova de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família e c) se
o fato de os recorrentes serem proprietários de outros imóveis constitui
óbice ao reconhecimento da impenhorabilidade.
3. A prova testemunhal postulada era incapaz de alterar o resultado da
demanda, razão pela qual inexiste cerceamento de defesa.
4. Conquanto em alguns momentos da história a impenhorabilidade da
pequena propriedade rural também tenha tutelado direitos outros que não a
preservação do trabalho, este sempre foi seu objetivo primordial. Para
reconhecer a impenhorabilidade, nos termos do art. 833, VIII, do CPC/2015,
é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber: (i) que o imóvel se
qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (iii) que
seja explorado pela família. Até o momento, não há uma lei definindo o que
seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da
lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito
estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas
constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu artigo 4ª, II, alínea “a”,
atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais,
respeitada a fração mínima de parcelamento”.
5. Na vigência do CPC/73, esta Terceira Turma já se orientava no sentido de
que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus
de comprovar que além de pequena, a propriedade destinava-se à
exploração familiar (REsp 492.934/PR; REsp 177.641/RS). Ademais, como
regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse
fato (art. 373 do CPC/2015) e, sob a ótica da aptidão para produzir essa
prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor
demonstrar a veracidade do fato alegado. Demais disso, art. 833, VIII, do
CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da
impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar.
Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e
transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o
propósito que orientou a criação dessa norma, o qual, repise-se, consiste em
assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de
sua família.
6. Ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o
reconhecimento da impenhorabilidade com base na previsão do art. 833,
VIII, do CPC/2015. A imposição dessa condição, enquanto não prevista em
lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia o art. 5º, XXVI, da CF/88
e art. 833, VIII, do CPC/2015. Há que se atentar, então, para duas situações
possíveis: (i) se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não
ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será
impenhorável. Caso o somatório resulte em numerário superior, a proteção
se limitará a quatro módulos fiscais (REsp 819.322/RS); (ii) se o devedor for
titular de mais de um imóvel rural, não contínuos, todos explorados pela
família e de até quatro módulos fiscais, como forma de viabilizar a
continuidade do trabalho pelo pequeno produtor rural e, simultaneamente,
não embaraçar a efetividade da tutela jurisdicional, a solução mais
adequada é proteger uma das propriedades e autorizar que as demais
sirvam à satisfação do crédito exequendo.
7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo
analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas.
8. Segundo a jurisprudência desta Corte, é correta a aplicação da penalidade
prevista no art. 1.026, § 2º, do CPC/2015, quando as questões tratadas
foram devidamente fundamentadas na decisão embargada e ficou
evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos embargos de
declaração.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso
especial e, nesta parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio
Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2021(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por JOSÉ ANTÔNIO TOLEDO e
SILVANA AMÂNCIO TOLEDO, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo
constitucional, contra acórdão do TJ/MG.
Ação: de execução, ajuizada pelo recorrido em face dos recorrentes,
por meio da qual almeja a satisfação de crédito, no valor de R$ 73.976,77,
decorrente de contrato de confissão de dívida.
Decisão interlocutória: rejeitou a impugnação à penhora
apresentada pelos recorrentes, sob o fundamento da ausência de prova de que a
propriedade rural é trabalhada pela família ou serve de moradia. Em acréscimo,
entendeu-se ser inviável o acolhimento da tese de impenhorabilidade, haja vista
que os recorrentes são proprietários de outros bens imóveis.
Acórdão recorrido: negou provimento ao agravo de instrumento
interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA
–IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA – IMÓVEL RURAL – BEM DE FAMÍLIA – NÃO
DEMONSTRAÇÃO – PENHORA MANTIDA. Verificando-se que os réus não
comprovaram os requisitos da impenhorabilidade, previstos na Lei nº. 8.009/90,
tampouco demonstraram que residem no imóvel rural descrito nos autos, que nele
exploram atividade rural em regime de economia familiar e que a dívida contraída
decorreu de infortúnios dos negócios ligados à atividade produtiva, não há como reconhecer a alegada impenhorabilidade absoluta.
Embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram
rejeitados.
Recurso especial: alegam violação aos arts. 833, VIII e 805 do CPC,
bem como ao art. 4, II, da Lei 4.504/64; art. 3º, V, da Lei 12.651/12; art. 3º, da Lei
11.326/06; art. 4ª, alínea “a” da Lei 8.629/93; art. 4º do Decreto 84.685/1980 e
art. 5º, XXVI, da CF/88. Além do mais, suscitam divergência jurisprudencial com
acórdãos desta Corte (REsp 1408152/PR e REsp 1591298/RJ).
Sustentam a nulidade do processo por cerceamento de defesa, pois
não lhes foi oportunizada a demonstração de que retiram o sustento do imóvel
penhorado, tampouco de que não são proprietários de outros imóveis.
Asseveram residir no imóvel, bem como utilizá-lo para cultivo de café
e plantação de eucaliptos, cuja madeira é utilizada pelo primeiro recorrente na
produção de carvão. Pontuam que a dívida guarda relação com a atividade
desenvolvida no local e que o recorrido não impugnou a alegação de que o imóvel
é explorado pela família, tendo apenas arguido que são proprietários de outros
imóveis com matrículas distintas.
Argumentam, ademais, que o imóvel penhorado tem área inferior a
quatro módulos fiscais, razão pela qual se enquadra no conceito de pequena
propriedade rural. Acrescentam que a soma das áreas com matrículas distintas
também está compreendida nesse limite legal.
Com assento nesses argumentos, postulam o provimento do recurso,
a fim de que seja declarada a impenhorabilidade do imóvel constrito.
Subsidiariamente, requerem a desconstituição da sentença, oportunizando-se a
produção de provas, ou a substituição da penhora. Por fim, propugnam pelo afastamento da multa por embargos de declaração protelatórios.
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ/MG admitiu o recurso
especial, determinando a remessa dos autos a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal consiste em dizer: a) se houve cerceamento de
defesa; b) sobre qual das partes, exequente ou executado, recai o ônus da prova
de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família e c) se o fato de os
recorrentes serem proprietários de outros imóveis constitui óbice ao
reconhecimento da impenhorabilidade.
I. Do cerceamento de defesa
1. Os recorrentes sustentam que tiveram seu direito de defesa
tolhido, porque o Juízo de primeiro grau não viabilizou a demonstração de que
retiram o sustento do imóvel penhorado, nem mesmo de que não têm outros
imóveis.
2. Consabidamente, o art. 369 do CPC/2015 confere às partes o
direito de produzir quaisquer provas capazes de influenciar na formação da
convicção do julgador. Reconhece-se, então, um direito fundamental à prova, de
modo que “o afastamento de tal direito somente se pode dar em decisão
devidamente fundamentada” (AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às
Alterações do Novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 488).
3. Tomando por base essas considerações, constata-se que, na hipótese, os ora recorrentes propugnaram pela produção de prova testemunhal “para provar em juízo que não é proprietário de outros imóveis, mas sim apenas da
propriedade rural já penhorada” (e-STJ, fl. 97).
4. O juiz, todavia, analisou a impugnação à penhora sem antes
autorizar a dilação probatória pelas razões assim explicitadas:
(...) a impenhorabilidade fora afastada exatamente porque este
Juízo entendeu que os executados possuem outros imóveis, conforme consta
expressamente da decisão embargada. Vale dizer, mesmo que pequena a
propriedade rural e seja trabalhada pela família, o fato de existirem outros
imóveis em nome do executado afasta a impenhorabilidade, sob pena de
frustrar os interesses do credor. (e-STJ, fl. 44)
5. Ou seja, a produção de prova foi obstada porque se entendeu que
ela não seria capaz de alterar o resultado da demanda. Além do mais, consoante
esclareceu-se na decisão que rejeitou os aclaratórios, “a propriedade, como direito
real, prova-se por meio documental, através do seu registro no Cartório
competente” (e-STJ, fl. 44).
6. Sendo assim, o fato de o Juízo de primeiro grau não ter reputado
necessário submeter a questão discutida na espécie à prova testemunhal não
representa violação ao conteúdo normativo dos dispositivos legais precitados.
II. Origem e finalidade da proteção conferida à pequena
propriedade rural
7. A regra da impenhorabilidade tem suas raízes na República do
Texas. A sua origem está relacionada à norma prevista na Constituição de 1836
daquela nação, que consagrava o direito do cidadão de receber determinada
porção de terra para torná-la produtiva (VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa. A
impenhorabilidade do bem de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
42).
8. Como forma de evitar que esses imóveis fossem penhorados para
satisfazer as dívidas daqueles que deles extraíam sua sobrevivência, foi editada,
em 1839, a Lei do Texas, a qual tornou impenhorável as áreas de terra de até
cinquenta acres, desde que fossem destinadas ao plantio e à moradia do devedor
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I. 18ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 286).
9. Passados alguns anos, precisamente em 1862, os Estados Unidos da
América publicaram o homestead act. Esse diploma estabelecia que qualquer
pessoa, chefe de família, ou com 21 anos e cidadão dos Estados Unidos, ou que
tivesse declarado sua intenção de se tornar tal, e quem nunca tivesse se voltado
contra o Governo dos Estados Unidos ou auxiliado seus inimigos, teria direito a um
quarto ou menos de terras públicas não apropriadas. Essa porção de terra deveria
ser utilizada pelo donatário para cultivo e moradia durante cinco anos, período no
qual a propriedade ficava imune aos débitos por ele contraídos
(https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=true&doc=31&page=transcript).
10. Em âmbito nacional, após longos debates, foi inserido o art. 70 no
CC/16, o qual possibilitava “aos chefes de família destinar um prédio para domicilio
desta, com a clausula de ficar isento de execução por dividas, salvo as que
provierem de impostos relativos ao mesmo prédio”. No entanto, essa norma
apenas se voltava à proteção da moradia.
11. A propriedade rural somente foi resguardada com a edição do
CPC/39, que, em seu art. 942, X, passou a prever:
Art. 942. Não poderão absolutamente ser penhorados:
(...)
X – o prédio rural lançado para efeitos fiscais por valor inferior ou
igual a dois contos de réis (2:000$0), desde quo o devedor nele tenha a sua
morada e o cultive com o trabalho próprio ou da família; (grifou-se).
12. Essa norma visava a obstar que o devedor ficasse privado do
exercício da atividade que propiciava a sua subsistência e de sua família. Embora a
proteção também se estendesse à residência, já que o imóvel também deveria
servir de moradia para que o devedor pudesse suscitar a impenhorabilidade, “a
finalidade precípua da regra não era só garantir o direito de moradia, mas sim, e
principalmente, garantir a continuidade da atividade que servia para subsistência”
(CANAN, Ricardo. Impenhorabilidade da Pequena Propriedade Rural. Revista dos
Tribunais. Vol. 221/2013, pp. 117 – 151, jul./2013, p. 121).
13. Nos anos seguintes, principalmente nas décadas de 60 e 80, o
intenso êxodo rural reclamou a adoção de outras medidas para estimular a
permanência dos cidadãos no campo. Entre elas, está a edição da Lei 7.513/86, a
qual inseriu o inciso X ao art. 649 do CPC/73, para estabelecer a
impenhorabilidade “[d]o imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único
de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento
agropecuário”.
14. A CF/88, ao depois, conferiu proteção mais ampla, ao erigir a
pequena propriedade rural ao patamar de direito fundamental e afastar a exceção
antes prevista na legislação infraconstitucional, nos seguintes termos:
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde
que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de
débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios
de financiar o seu desenvolvimento;
15. Em comentário a esse dispositivo legal, Paulo Bonavides
esclarece que a sua finalidade é “proteger famílias menos favorecidas que vivem
do que produzem em suas pequenas propriedades rurais” (BONAVIDES, Paulo.
Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 151).
16. Já no ano de 2006, a Lei 11.382/2006 adequou a redação do art.
649, VIII, do CPC/1973 à CF/88 e ao entendimento jurisprudencial consolidado à
época, o qual passou a ter a seguinte redação:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
(...)
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde
que trabalhada pela família;
17. Ou seja, extirpou-se a parte final do antigo art. 649, X, CPC/73,
que trazia um requisito adicional àqueles já exigidos pela Carta Magna. Aliás, essa
redação foi integralmente reproduzida no art. 833, VIII, do atual CPC.
18. A linha do tempo delineada evidencia que, desde os primórdios, a
proteção conferida à pequena propriedade rural esteve calcada na garantia da
subsistência. Conquanto em alguns momentos da história a impenhorabilidade da
pequena propriedade rural também tenha tutelado direitos outros que não a
preservação do trabalho, este sempre foi seu objetivo primordial.
III. Dos requisitos para o reconhecimento da
impenhorabilidade e do ônus de comprovar o seu preenchimento
III.I. Da extensão da propriedade e da exploração familiar
19. Para reconhecer a impenhorabilidade nos termos do art. 833, VIII,
do CPC/2015, é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber: (i) que o imóvel
se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (iii) que seja
explorado pela família.
20. Destaque-se, por relevante, que conjugando as normas
constitucional e infraconstitucional, as Turmas da Seção de Direito Privado desta
Corte firmaram as seguintes orientações: para o reconhecimento da impenhorabilidade, não é necessário que o débito exequendo seja oriundo da
atividade produtiva, tampouco que o imóvel sirva de moradia do executado e de
sua família (REsp 1591298/RJ, DJe 21/11/2017; AgInt no REsp 1177643/PR, DJe
19/12/2019) e, a proteção remanesce, ainda que a propriedade rural seja
oferecida em garantia hipotecária pelos respectivos proprietários (AgInt no AREsp
1361954/PR, DJe 30/05/2019; AgInt no AREsp 1428588/PR, DJe 16/05/2019).
21. Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena
propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a
jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei
8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma
agrária. Em seu artigo 4ª, II, alínea “a”, atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que
se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro
módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento” (grifou-se). Nesse
sentido:
RECURSO ESPECIAL - ARTIGO 333, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - PROPRIEDADE RURAL - CONCEITO - MÓDULO RURAL - IDENTIFICAÇÃO - NECESSIDADE - PEQUENA PROPRIEDADE RURAL UTILIZADA POR ENTIDADE
FAMILIAR - IMPENHORABILIDADE - RECONHECIMENTO - RECURSO ESPECIAL
IMPROVIDO.
I - A questão relativa ao artigo 333, I, do Código de Processo Civil, relativo ao ônus
da prova, não foi objeto de debate ou deliberação pelo Tribunal de origem,
restando ausente, assim, o requisito do prequestionamento da matéria, o que atrai
a incidência do enunciado 211 da Súmula desta Corte.
II - Para se saber se o imóvel possui as características para
enquadramento na legislação protecionista é necessário ponderar as
regras estabelecidas pela Lei n.º 8629/93 que, em seu artigo 4º,
estabelece que a pequena propriedade rural é aquela cuja área tenha
entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais. Identificação, na espécie.
III - Assim, o imóvel rural, identificado como pequena propriedade, utilizado para
subsistência da família, é impenhorável. Precedentes desta eg. Terceira Turma.
IV - Recurso especial improvido. (REsp 1284708/PR, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 09/12/2011 – grifou-se)
CONSTITUCIONAL. DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL NÃO PRODUTIVO: FATOS CONTROVERSOS. PEQUENA E MÉDIA PROPRIEDADE RURAL:
NÃO SUJEIÇÃO À DESAPROPRIAÇÃO PARA REFORMA AGRÁRIA. C.F., art. 185, I; Lei
8.629, de 25.02.93, artigo 4º, III, a. Lei 4.504, de 1964, art. 50, § 3º, com a redação
da Lei 6.476, de 1979; Decreto 84.685, de 1980, art. 5º.
I. - A pequena e a média propriedades rurais são imunes à desapropriação para fins
de reforma agrária, desde que seu proprietário não possua outra. C.F., art. 185, I. A
pequena propriedade rural é o imóvel de área compreendida entre um e
quatro módulos fiscais e a média propriedade rural é o imóvel de área superior a
quatro e até quinze módulos fiscais. Lei 8.629, de 25.02.93, art. 4º, II, a, III, a.
II. - O número de módulos fiscais será obtido dividindo-se a área aproveitável do
imóvel rural pelo módulo fiscal do Município (Lei 4.504/64, art. 50, § 3º, com a
redação da Lei 6.746, de 1979; Decreto nº 84.685, de 1980, art. 5º).
III. - No caso, tem-se média propriedade rural, assim imune à desapropriação para
reforma agrária.
IV. - Mandado de segurança deferido. (STF, MS 22579, Relator(a): CARLOS
VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/1998, DJ 17-04-1998 – grifou-se)
22. O módulo fiscal, por sua vez, varia de município para município e é
determinado em hectares em conformidade aos critérios previamente estipulados
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
23. Não há dúvidas de que incumbe ao devedor comprovar que a
propriedade penhorada não ultrapassada quatro módulos fiscais (REsp
1.408.152/PR, DJe 02/02/2017). Entretanto, ainda há controvérsia sobre se cabe
ao exequente ou ao executado demonstrar que a pequena propriedade é
trabalhada pela família.
24. Em acórdão desta Corte proferido ao ensejo do julgamento do
REsp 1.408.152/PR, o primeiro sobre o tema após entrada em vigor do CPC/2015,
a Quarta Turma deste Tribunal Superior decidiu que “deve ser ônus do executado - agricultor - apenas a comprovação de que o seu imóvel se enquadra nas
dimensões da pequena propriedade rural. No entanto, no tocante à exigência da
prova de que a referida propriedade é trabalhada pela família, a melhor exegese
parece ser a de conferir uma presunção de que esta, enquadrando-se como
diminuta, nos termos da lei, será explorada pelo ente familiar, sendo decorrência natural do que normalmente se espera que aconteça no mundo real, inclusive, das
regras de experiência (NCPC, art. 375)”. Confira-se a ementa do referido
precedente:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. IMPENHORABILIDADE. PEQUENA PROPRIEDADE
RURAL. REQUISITOS E ÔNUS DA PROVA.
1. A proteção da pequena propriedade rural ganhou status Constitucional, tendo-se
estabelecido, no capítulo voltado aos direitos fundamentais, que a referida
propriedade, "assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será
objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade
produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento" (art.
5°, XXVI). Recebeu, ainda, albergue de diversos normativos infraconstitucionais, tais
como: Lei n° 8.009/90, CPC/1973 e CPC/2015.
2. O bem de família agrário é direito fundamental da família rurícola, sendo núcleo
intangível - cláusula pétrea -, que restringe, justamente em razão da sua finalidade
de preservação da identidade constitucional, uma garantia mínima de proteção à
pequena propriedade rural, de um patrimônio mínimo necessário à manutenção e à
sobrevivência da família.
3. Para fins de proteção, a norma exige dois requisitos para negar constrição à
pequena propriedade rural: i) que a área seja qualificada como pequena, nos
termos legais; e ii) que a propriedade seja trabalhada pela família.
4. É ônus do pequeno proprietário, executado, a comprovação de que o seu imóvel
se enquadra nas dimensões da pequena propriedade rural.
5. No entanto, no tocante à exigência da prova de que a referida
propriedade é trabalhada pela família, há uma presunção de que esta,
enquadrando-se como diminuta, nos termos da lei, será explorada pelo
ente familiar, sendo decorrência natural do que normalmente se espera
que aconteça no mundo real, inclusive, das regras de experiência
(NCPC, art. 375).
6. O próprio microssistema de direito agrário (Estatuto da Terra; Lei 8.629/1993,
entre outros diplomas) entrelaça os conceitos de pequena propriedade, módulo
rural e propriedade familiar, havendo uma espécie de presunção de que o pequeno
imóvel rural se destinará à exploração direta pelo agricultor e sua família, haja vista
que será voltado para garantir sua subsistência.
7. Em razão da presunção juris tantum em favor do pequeno proprietário rural,
transfere-se ao exequente o encargo de demonstrar que não há exploração familiar
da terra, para afastar a hiperproteção da pequena propriedade rural.
8. Recurso especial não provido. (REsp 1408152/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE
SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2016, DJe 02/02/2017 – grifou-se)
25. Esse posicionamento restou reiterado no julgamento do AgInt no
REsp 1.826.806/RS, cuja ementa ora se transcreve:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PEQUENA
PROPRIEDADE RURAL. IMPENHORABILIDADE. EXPLORAÇÃO FAMILIAR. PRESUNÇÃO
JURIS TANTUM. ÔNUS DA PROVA DO EXEQUENTE. DECISÃO MANTIDA.
1. Segundo a jurisprudência desta Corte, "em razão da presunção juris
tantum em favor do pequeno proprietário rural, transfere-se ao
exequente o encargo de demonstrar que não há exploração familiar da
terra, para afastar a hiperproteção da pequena propriedade rural" (REsp
n. 1.408.152/PR, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 1º/12/2016, DJe 2/2/2017).
2. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1826806/RS, Rel.
Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 23/03/2020,
DJe 26/03/2020 – grifou-se)
26. Em contrapartida, esta Terceira Turma, quando instada a se
manifestar sobre a matéria, externou entendimento contrário ao adotado pela
colenda Quarta Turma. No REsp 1.716.425/RS (DJe 26/03/2020), de relatoria do e.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, sublinhou-se:
Com efeito, embora seja inegável a relevância social da proteção
estatal ao pequeno produtor rural, a garantia da impenhorabilidade rural guarda
uma particularidade que, a meu juízo, desaconselha a aplicação de
entendimento análogo àquele firmado para o caso da impenhorabilidade do
imóvel residencial qualificado como bem de família.
Refiro-me ao requisito específico da exploração da terra
diretamente pela entidade familiar (nos termos da Constituição: terra
"trabalhada pela família").
Esse requisito, a meu juízo, não poderia presumido com base nas
regras de experiência, como entendeu a egrégia QUARTA TURMA, pois a
experiência, ao contrário, infirma essa presunção, uma vez que, no universo das
propriedades rurais de pequena dimensão, uma quantidade expressiva é
utilizada para fins de lazer (sítios de recreio) ou para fins de exploração
empresarial/industrial, por exemplo.
Essa particularidade da pequena propriedade rural, a meu juízo,
afasta a possibilidade de analogia com a distribuição do ônus da prova na
hipótese de impenhorabilidade do bem de família. (fls. 17-19).
27. Aliás, e como destacado no aresto, na vigência do CPC/73, esta
Terceira Turma já se orientava no sentido de que, para o reconhecimento da
impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus de comprovar que além de pequena, a
propriedade destinava-se à exploração familiar. Sobre o tema, reporto-me aos seguintes julgados:
Processo civil. Impenhorabilidade de imóvel rural. - Para declarar a impenhorabilidade com fundamento no art. 649, X do
CPC, necessária a comprovação de exploração familiar com fim de
garantir a subsistência. Precedentes.
Recurso conhecido e provido. (REsp 492.934/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,
TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2004, DJ 18/10/2004, p. 266 – grifou-se)
PENHORA. PROPRIEDADE RURAL. POSSIBILIDADE. ÔNUS DA PROVA. VIOLAÇÃO.
ARTIGO 333, I E II, DO CPC. INEXISTÊNCIA - MATÉRIA DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.
I - O tribunal a quo deu correta interpretação ao artigo 333 e incisos do
Código de Processo Civil, pois, se os próprios recorrentes deduziram as
razões pelas quais seria de rigor a impenhorabilidade do imóvel rural
que possuem, deveriam ter apresentado as provas pertinentes, para
respaldar as suas alegações.
II - Se, com arrimo no conjunto fático-probatório, o tribunal de origem verificou a
ausência dos requisitos indispensáveis para conceder o benefício da
impenhorabilidade à propriedade rural dos recorrentes, esta questão não pode ser
revista em sede de especial, por incidência do enunciado n.º 7 da Súmula desta
Corte.
III - O dissídio jurisprudencial, por sua vez, não restou demonstrado, nos moldes
exigidos pelo artigo 255 e parágrafos do Regimento Interno desta Corte.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 177.641/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em
08/10/2002, DJ 02/12/2002, p. 303 – grifou-se)
28. Às razões já explicitadas no acórdão proferido recentemente por
esta Turma (REsp 1.716.425/RS), convém acrescer algumas considerações que
reforçam a ideia de que incumbe ao devedor demonstrar que o bem é explorado
em regime de economia familiar.
29. Como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a
veracidade desse fato. Trata-se da distribuição abstrata do ônus da prova feita pelo
legislador. Assim, cabe ao autor o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito
e, em contrapartida, incumbe ao réu demonstrar o fato extintivo, impeditivo ou
modificativo desse direito (art. 373 do CPC/2015). Nessa toada, sendo a
impenhorabilidade fato constitutivo do direito do executado, é sobre ele que recai
o encargo de comprovar os requisitos necessários ao seu reconhecimento. Vale dizer, é do executado o ônus de provar que a propriedade rural é trabalhada pela
família.
30. Sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos
abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade
do fato alegado. Isso pois, ele é o proprietário do imóvel e, então, pode acessá-lo a
qualquer tempo. Demais disso, ninguém melhor do que ele para saber quais
atividades rurícolas são desenvolvidas no local. Claro que, à luz das peculiaridades
do caso concreto, poderá o juiz proceder à redistribuição do ônus da prova (art.
373, § 1º, do CPC/2015).
31. Ao concluir pela existência de uma presunção juris tantum de que
a propriedade diminuta é trabalhada pela família, transferindo ao credor o encargo
de afastar essa presunção, a egrégia Quarta Turma equiparou a impenhorabilidade
da pequena propriedade rural à impenhorabilidade do bem de família. No voto
condutor do acórdão, restou sublinhado que “não é razoável se exigir um minus do
proprietário urbano (que tem proteção legal) - na qual basta o início de prova de
que o imóvel é voltado para a residência -, em relação ao proprietário rural,
hipossuficiente e vulnerável (com proteção constitucional), que, além da prova da
pequena propriedade rural, teria um plus a demonstrar, ainda, que esta é
trabalhada pela família” (REsp 1408152/PR, DJe 02/02/2017, fl. 16).
32. Nada obstante, com o devido respeito ao entendimento exarado,
pelas razões a seguir expostas, considero não ser possível se valer da analogia
empregada.
33. É verdade que a jurisprudência desta Corte se orienta no sentido
de que quando o devedor sustenta a impenhorabilidade do bem constrito com
base na Lei 8.009/1990, ele apenas terá que provar que o imóvel serve de
residência da família, não sendo necessário demonstrar que aquele é o único imóvel. Assim, se o credor almejar a manutenção da constrição, sobre ele recairá o
ônus de demonstrar que o executado é proprietário de outros bens imóveis (REsp
574.050/RS, Primeira Turma, DJ 31/05/2004; AgRg nos EDcl no AREsp 794.318/RS,
Terceira Turma, DJe 7/3/2016; REsp 1.014.698/MT, Quarta Turma, DJe
17/10/2016; AgInt no REsp 1656079/RS, Terceira Turma, DJe 06/12/2018).
34. Não há dúvidas, inclusive, de que tanto a regra da
impenhorabilidade do bem de família quanto a da impenhorabilidade da pequena
propriedade rural são corolários do princípio da dignidade da pessoa humana. Essas
normas, no entanto, tutelam bem jurídicos diversos: enquanto a primeira volta-se
à proteção do direito à moradia (REsp 1.726.733/SP, DJe 16/10/2020; REsp
1.487.028/SC, DJe 18/11/2015), a segunda busca assegurar um patrimônio mínimo
necessário à sobrevivência da família. Essa distinção, inclusive, é realçada no REsp
1.591.298/RJ, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze (DJe 21/11/2017),
cujo trecho transcrevo:
Como já assentado, o fundamento que orienta a
impenhorabilidade do bem de família (rural) não se confunde com aquele que
norteia a da pequena propriedade rural, ainda que ambos sejam corolários do
princípio maior da dignidade da pessoa humana, sob a vertente da garantia do
patrimônio mínimo. O primeiro, destina-se a garantir o direito
fundamental à moradia; o segundo, visa assegurar o direito, também
fundamental, de acesso aos meios geradores de renda, no caso, o
imóvel rural, de onde a família do trabalhador rural, por meio do
labor agrícola, obtém seu sustento. (p. 11 – grifou-se)
35. Além disso, para o reconhecimento da impenhorabilidade do bem
de família, há uma razão para ser dispensada a demonstração de que o imóvel
constrito é o único destinado à residência familiar, qual seja: esse não é um
requisito exigido pela lei de regência, a qual, em seu art. 1º, apenas faz referência
ao “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”. A propósito, tal
circunstância foi realçada no julgamento do REsp 1.014.698/MT (Quarta Turma, DJe 17/10/2016), oportunidade em que se registrou:
(...) exigir da executada, como fez o v. aresto recorrido, mais do
que a lei especial determina, é ir de encontro ao seu espírito, pois a proteção
outorgada pela Lei 8.009/90 depende tão somente da produção de
prova de que o imóvel é utilizado como residência pela família, não
sendo necessária a demonstração de que os executados não são
proprietários de outros bens imóveis. Se isto se verificar, poderão ser
penhorados estes outros bens, mas nunca justamente aquele utilizado como
residência. (fl. 11 – grifou-se)
36. De forma diversa, o art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao
condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade
rural à sua exploração familiar. Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação
desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em
desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual, repise-se,
consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado
e de sua família.
37. Pelas razões elencadas, afirma-se ser ônus do executado
comprovar não só que a propriedade se enquadra no conceito legal de pequena
propriedade rural, como também que o imóvel penhorado é voltado à exploração
para subsistência familiar.
III.II. Da necessidade de ser o único imóvel rural
38. Relembre-se que, como visto anteriormente, a Lei 7.513/86,
responsável pela inclusão do inciso X ao art. 649 do CPC/73, exigia expressamente
que o imóvel rural constrito fosse o único bem do devedor.
39. Diversamente, a Lei 11.382/2006, a qual alterou o antigo diploma
processual, já não mais previa esse requisito. As legislações constitucional e
infraconstitucional que se seguiram nada referem, também, acerca da necessidade de o bem penhorado ser o único imóvel rural de propriedade do executado.
40. Disso se extrai que ser proprietário de um único imóvel rural não é
pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade com base na previsão
do art. 833, VIII, do CPC/2015. Sendo assim, a imposição dessa condição, enquanto
não prevista em lei, é incompatível com o viés protetivo que norteia tal preceito
legal e o art. 5º, XXVI, da CF/88.
41. Sobre o assunto, há um precedente desta Corte proferido quando
ainda estava em vigor o CPC/73, no qual se decidiu que o fato de a propriedade ter
mais de uma matrícula não lhe retira a proteção da impenhorabilidade. Veja-se a
ementa do referido julgado:
PROPRIEDADE RURAL. TAMANHO INFERIOR AO MÓDULO RURAL. EXISTÊNCIA DE
DUAS MÁTRICULAS. UTILIZAÇÃO PARA SUSTENTO FAMILIAR.
IMPENHORABILIDADE. POSSIBILIDADE. A propriedade rural, embora
constituída por frações com matrículas distintas, com tamanho inferior
ao módulo rural e utilizada como residência e para a subsistência da
família, está protegida pela impenhorabilidade. (L. 8.009/90, Art. 4º, § 2º)
(REsp 819.322/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA
TURMA, julgado em 16/11/2006, DJ 18/12/2006, p. 39 – grifou-se)
42. Portanto, se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas
não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será
impenhorável. Caso o somatório resulte em numerário superior, a proteção se
limitará a quatro módulos fiscais.
43. A seu turno, se o devedor for titular de mais de um imóvel rural,
não contínuos, todos explorados pela família e de até quatro módulos fiscais, há
que se refletir um pouco mais. Isso pois, nesse cenário, a coalisão de direitos
fundamentais torna-se mais evidente.
44. De um lado, há o direito fundamental do credor à tutela executiva,
o qual é uma das facetas do direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF/88). De outro lado, encontra-se o direito fundamental do devedor à manutenção do
patrimônio mínimo necessário à sua subsistência e de sua família.
45. Segundo explica a doutrina, justamente porque a
impenhorabilidade de certos bens restringe o direito fundamental do exequente à
tutela executiva, “é preciso que sua aplicação de submeta ao método da
ponderação” (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula
Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: execução.
8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 831).
46. Nesse contexto, como forma de viabilizar a continuidade do
trabalho pelo pequeno produtor rural e, simultaneamente, não embaraçar a
efetividade da tutela jurisdicional, a solução mais justa e adequada é proteger uma
das propriedades e autorizar que as demais sirvam à satisfação do crédito
exequendo.
47. Não custa lembrar que, a partir da análise das especificidades da
hipótese concreta, o julgador poderá autorizar a substituição do bem penhorado
por outro igualmente eficaz e menos oneroso ao executado, em observância ao
princípio da menor onerosidade da execução (art. 805 do CPC).
IV. Da hipótese em julgamento
IV. I. Da divergência jurisprudencial
48. Na alegação de divergência jurisprudencial, o art. 1.029, § 1º, do
CPC, impõe ao recorrente o ônus de “mencionar as circunstâncias que
identifiquem ou assemelhem os casos confrontados”. Significa dizer ser necessário
que “o recorrente transcreva trechos do relatório do acórdão paradigma e, depois,
transcreva trechos do relatório do acórdão recorrido, comparando-os, a fim de
demonstrar que ambos trataram de casos bem parecidos ou cuja base fática seja bem similar. Após isso, deve o recorrente prosseguir no cotejo analítico,
transcrevendo trechos do voto do acórdão paradigma e trechos do voto do
acórdão recorrido para, então, confrontá-los, demonstrando que foram adotadas
teses opostas” (DIDIER JR., Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito
Processual Civil. 13 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 348).
49. Na hipótese, entre os acórdãos trazidos à colação, não há o
necessário cotejo analítico nem a comprovação da similitude fática, elementos
indispensáveis à demonstração da divergência.
50. Logo, a análise da existência do dissídio é inviável ante a
inobservância aos arts. 1.029, § 1º, do CPC/15 e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ.
IV.II. Da análise do preenchimento dos requisitos legais
51. O Tribunal a quo rejeitou a impugnação à penhora e concluiu que,
embora o imóvel constrito se caracterize como pequena propriedade rural, os ora
recorrentes não comprovaram residir no local, tampouco que há exploração da
terra e que a dívida guarda relação com a atividade produtiva desenvolvida na
propriedade. No aresto, também restou sublinhado que o fato de os recorrentes
serem proprietários de outros bens imóveis constitui óbice ao acolhimento da
pretensão (e-STJ, fls. 263-271).
52. Percebe-se que o acórdão recorrido não distinguiu
adequadamente o bem de família rural (art. 4ª, § 2º, da Lei 8.009/1990) e a
pequena propriedade rural (art. 833, VIII, do CPC).
53. Nesse cenário, é imperioso ressaltar que embora as regras que
conferem proteção a esses imóveis estejam calcadas no princípio da dignidade da
pessoa humana, os fundamentos axiológicos que amparam uma e outra são
distintos, bem como os requisitos para sua aplicação não são os mesmos.
54. Enquanto o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de
família, seja urbano ou rural, pressupõe prova de que o imóvel serve de moradia à
entidade familiar (art. 1º da Lei 8.009/90), os requisitos para obstar a constrição
judicial sobre a pequena propriedade rural são aqueles dispostos no art. 5º, XXVI,
da CF/88, reproduzidos no art. 833, VIII, do CPC/2015, e já referidos.
55. Traçadas essas considerações, da leitura da impugnação à
penhora, depreende-se que os devedores sustentam a impenhorabilidade do
imóvel rural por se tratar de pequena propriedade rural. Para elucidar, confira-se
os seguintes trechos da petição:
“A propriedade penhorada é utilizada pelos Executados e seus
familiares para trabalhar. Fazem uso da terra penhorada para trabalhar e
cultivar, para prover o sustento familiar.
O art. 5º, inciso XXVI, da CR/88, prevê que:
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde
que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de
débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios
de financiar o seu desenvolvimento;
Segundo o art. 4º, alínea “a” da Lei 8.629/1993, a pequena
propriedade rural é a área compreendida entre um e quatro módulos fiscais,
sendo que o cálculo do módulo fiscal é definido pelo Incra, em cada município,
tomando-se por base o art. 4º do Decreto 84.685/1980. Na oportunidade
junta-se a tabela disponibilizada pelo INCRA, que confirma que a propriedade do
embargante se enquadra no conceito de pequena propriedade rural.
O art. 4, inciso II, da Lei 4.504/64, prevê ser a “propriedade
familiar” o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e
sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência
e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e
tipo de exploração, e eventualmente trabalho com ajuda de terceiro.
De acordo com a tabela do INCRA, o módulo fiscal na Comarca de
Carangola e na cidade de Fervedouro é 28ha. Já a propriedade penhora é de área
de 11.51.81 ha.
(...)
Os Executados são casados e possuem filhos. A família toda
trabalha na propriedade objeto da penhora, sendo que o sustento da família é
retirado da exploração da propriedade rural ora penhorada por este juízo.
Inquestionável que a hipótese trazida à baila é atraída pela norma contida no art.
833, inc. VIII, do CPC, que diz que: Art. 833. São impenhoráveis:
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde
que trabalhada pela família; (e-STJ, fls. 215-218)
56. Era sob essa ótica, então, que o TJ/MG deveria ter apreciado a
questão. Isso significa que, diversamente do entendimento sublinhado no aresto
recorrido, para a aplicação da norma prevista no art. 833, VIII, do CPC/2015, é
prescindível que o executado resida no local e que o débito seja decorrente da
atividade agrícola. É suficiente a comprovação, pelo executado, de que a
propriedade é pequena e destinada à produção rural para subsistência da família.
57. O primeiro requisito está preenchido na hipótese em julgamento,
porquanto a decisão proferida pelo Juízo de primeiro grau e o acórdão referem que
a propriedade rural penhorada não corresponde a sequer um módulo fiscal do
Município de Carangola/MG (e-STJ, fls. 38-41 e fls. 263-270).
58. Já com relação ao segundo requisito legal, a Corte Estadual
entendeu inexistir comprovação de que a terra é explorada pela família (e-STJ, fl.
267). Desconsiderou-se, no entanto, que o ora recorrido, em sua manifestação
acerca da impugnação à penhora, não se insurgiu contra a alegação dos ora
recorrentes no sentido de que o bem constrito é responsável pela subsistência da
família.
59. Conforme realçado nas razões do especial, o exequente limitou-se
a aduzir não ser possível o cancelamento da penhora, porque os executados são
proprietários de outros bens imóveis. Veja-se o seguinte trecho da petição:
“O imóvel em questão só poderia ser alcançado pelo manto da
impenhorabilidade se fosse o único de posse e propriedade dos postulantes”
(e-STJ, fl. 127)
60. Isso significa que o exequente não se desincumbiu do seu ônus de impugnação específica. Consequentemente, a alegação de fato de que o imóvel é
explorado pela família tornou-se incontroversa, sendo dispensável a produção de
prova. Afinal, “a confissão [rectius: admissão] gera duas consequências: a dispensa
de prova e a presunção de veracidade da alegação de fato confessada”
(MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo
Código de Processo Civil Comentado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016,
p. 399).
61. Destarte, o segundo pressuposto também está satisfeito.
62. Ocorre que, como visto, o acórdão impugnado ainda apontou um
outro óbice ao reconhecimento da impenhorabilidade: o fato de os executados
serem proprietários de outros imóveis rurais. Mas, a Corte Estadual não averiguou
se os terrenos são contínuos e, não sendo, se também são explorados pela família.
63. Impõe-se, assim, o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que,
em novo julgamento do recurso de agravo de instrumento, reaprecie esse fato, seguindo a
orientação definida no item II. II, supra.
64. Como consequência, resta prejudicado o pleito subsidiário de
substituição do bem penhorado.
V. Da multa por embargos manifestamente protelatórios
65. Ao examinar os embargos declaratórios opostos pelos ora
recorrentes, o TJ/MG entendeu tratar-se de recurso meramente protelatório e,
por conseguinte, aplicou a multa prevista no art. 1.026, § 2º, do CPC/2015, à razão
de 1% sobre o valor da causa.
66. Segundo a jurisprudência desta Corte, é correta a aplicação da
penalidade prevista no art. 1.026, § 2º, do CPC/2015, quando as questões tratadas
foram devidamente fundamentadas na decisão embargada e ficou evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos embargos de declaração.
67. As questões suscitadas em sede de embargos declaratórios já
haviam sido examinadas pelo Tribunal Estadual, circunstância que evidencia seu
caráter meramente protelatório.
68. Assim, deve ser mantida a multa aplicada.
VI. Conclusão
69. Forte nessas razões, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e,
nessa extensão, DOU-LHE PARCIAL PROVIMENTO, para determinar o retorno dos
autos ao Tribunal de origem para que, em novo julgamento do recurso de agravo
de instrumento, verifique se os outros imóveis de propriedade dos recorrentes são
contínuos ou não à propriedade penhorada, à luz da orientação delineada neste
voto.