RECURSO ESPECIAL Nº 1.735.668 - MT (2018/0086544-0)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE LEVANTAMENTO DE CURATELA. QUESTÕES
SUSCITADAS NO RECURSO ESPECIAL QUE NÃO FORAM OBJETO DE
ENFRENTAMENTO PELO ACÓRDÃO RECORRIDO. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. LEGITIMADOS PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE
LEVANTAMENTO DA CURATELA. AMPLIAÇÃO DO ROL PELO CPC/15. TENDÊNCIA
DOUTRINÁRIA CONFIRMADA PELO LEGISLADOR. ROL DE NATUREZA NÃO
EXAUSTIVA. PROPOSITURA DA AÇÃO POR TERCEIROS JURIDICAMENTE
INTERESSADOS. POSSIBILIDADE. PARTE QUE FOI CONDENADA A PENSÃO VITALÍCIA
EM VIRTUDE DE ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO CAUSADOR DA INTERDIÇÃO.
ALEGADA FRAUDE OU MODIFICAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE FATO.
LEGITIMIDADE EXISTENTE.
1- Ação proposta em 26/10/2016. Recurso especial interposto em 19/07/2017 e
atribuído à Relatora em 25/04/2018.
2- O propósito recursal é definir se o rol de legitimados para o ajuizamento da ação
de levantamento da curatela é taxativo ou se é admissível a propositura da referida
ação por outras pessoas não elencadas no art. 756, §1º, do CPC/15.
3- As questões relacionadas às violações à cláusula geral de tutela que visa a
proteção da autodeterminação do sujeito e às regras que disciplinam a convocação
de segurados do INSS para a realização de perícia médica para manutenção de
benefícios por incapacidade não foram objeto de exame pelo acórdão recorrido e,
portanto, carecem de prequestionamento, atraindo a incidência da Súmula
211/STJ.
4- O art. 756, §1º, do CPC/15, ampliou o rol de legitimados para o ajuizamento da
ação de levantamento da curatela previsto no art. 1.186, §1º, do CPC/73, a fim de
expressamente permitir que, além do próprio interdito, também o curador e o
Ministério Público sejam legitimados para o ajuizamento dessa ação,
acompanhando a tendência doutrinária que se estabeleceu ao tempo do código
revogado.
5- Além daqueles expressamente legitimados em lei, é admissível a propositura da
ação por pessoas qualificáveis como terceiros juridicamente interessados em
levantar ou modificar a curatela, especialmente àqueles que possuam relação
jurídica com o interdito, devendo o art. 756, §1º, do CPC/15, ser interpretado como
uma indicação do legislador, de natureza não exaustiva, acerca dos possíveis
legitimados.
6- Hipótese em que a parte foi condenada a reparar danos morais e pensionar
vitaliciamente o interdito em virtude de acidente automobilístico do qual resultou a interdição e que informa que teria obtido provas supervenientes à condenação de
que o interdito não possuiria a doença psíquica geradora da incapacidade – transtorno de estresse pós-traumático – ou, ao menos, que o seu quadro clínico
teria evoluído significativamente de modo a não mais se justificar a interdição,
legitimando-a a ajuizar a ação de levantamento da curatela.
7- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido, a fim de
que seja dado regular prosseguimento ao processo em 1º grau.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso
especial e, nesta parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio
Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 11 de dezembro de 2018(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por AÇOFER INDÚSTRIA E
COMÉRCIO EIRELI, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face
de acórdão do TJ/MT que, por unanimidade, negou provimento ao recurso de
apelação por ela interposto.
Recurso especial interposto e m: 19/07/2017.
Atribuído ao gabinete e m: 25/04/2018.
Ação: de levantamento de curatela em face de I G DE P.
Sentença: julgou extinto o processo sem resolução do mérito por
ilegitimidade ativa da recorrente (art. 485, VI, do CPC/15), ao fundamento de que o
rol do art. 756, §1º, do CPC/15, confere apenas ao próprio interdito, ao curador e
ao Ministério Público a legitimidade ativa para pleitear o levantamento da curatela.
(fls. 107/109, e-STJ).
Acórdão: por unanimidade, negou-se provimento ao recurso de
apelação, nos termos da seguinte ementa:
RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE LEVANTAMENTO DE
INTERDIÇÃO – ILEGITIMIDADE ATIVA – CONFIGURAÇÃO – INTELIGÊNCIA DO ART.
756 DO CPC – REQUERIMENTO DE CONCESSÃO DO EFEITO ATIVO AO RECURSO
COM FULCRO NO ART. 300 DO CPC – INAPLICABILIDADE – PREQUESTIONAMENTO – DESNECESSIDADE – CONSONÂNCIA COM O PARECER
MINISTERIAL – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Segundo o disposto no art. 756 do CPC, o pedido de
levantamento da interdição somente poderá ser feito pelo interdito, pelo
curador ou pelo Ministério Público.
O art. 300 do CPC versa sobre a possibilidade de concessão da
tutela de urgência, no entanto, tal hipótese não é aplicável ao recurso de
apelação.
Para fins de prequestionamento, o julgador não é obrigado a
analisar exaustivamente todos os dispositivos legais apontados pela parte
recorrente, basta que a fundamentação da decisão seja clara e precisa,
solucionando o objeto da lide. (fls. 156/162, e-STJ).
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram rejeitados
por unanimidade, com aplicação de multa (fls. 182/190, e-STJ).
Recurso especial: alega-se violação aos art. 756, §1º, do CPC/15,
aos arts. 11 a 21 do CC/2002, bem como negativa de vigência à Portaria
Interministerial nº 127, à Lei nº 8.742/93 e ao Decreto nº 6.214/2007 (fls.
198/213, e-STJ).
Ministério Público Federal: opinou pelo não conhecimento do
recurso especial (fls. 249/256, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal é definir se o rol de legitimados para o
ajuizamento da ação de levantamento da curatela é taxativo ou se é admissível a
propositura da referida ação por outras pessoas não elencadas no art. 756, §1º, do
CPC/15.
1. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 11 A 21 DO CC/2002, À
PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 127, À LEI Nº 8.742/93 E AO DECRETO
Nº 6.214/2007. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ.
FUNDAMENTAÇÃO RECURSAL DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF.
De início, anote-se que o acórdão recorrido é absolutamente silente
no que se refere a alegada violação à cláusula geral que visa a proteção da
autodeterminação do sujeito (art. 11 a 21 do CC/2002) e no que tange à
convocação de segurados do INSS para realização de perícia médica para
manutenção de benefício por incapacidade (Portaria Interministerial nº 127, Lei nº
8.742/93 e Decreto 6.243/2007), de modo que se revela inviável o exame das
referidas questões no recurso especial pela falta de prequestionamento, atraindo a
incidência da Súmula 211/STJ.
Acrescente-se, ainda, que “O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que as espécies normativas “Portaria” e “Instrução Normativa”,
quando completamente isoladas na fundamentação do acórdão recorrido, não se
enquadram no conceito de lei federal, razão pela qual o Recurso Especial não se
revela a via adequada para sua análise” (REsp 1.351.419/PR, 2ª Turma, DJe
28/10/2016). No mesmo sentido: REsp 1.350.769/CE, 2ª Turma, DJe 22/08/2013;
REsp 842.563/RS, 5ª Turma, DJ 23/10/2006; REsp 863.746/RS, 4ª Turma, DJ
09/10/2016 e REsp 110.335/SP, 3ª Turma, DJ 29/11/1999.
Finalmente, tendo em vista que o acórdão recorrido se limitou a
interpretar o art. 756, §1º, do CPC/15, revela-se deficiente a fundamentação da
recorrente que se distancia sobremaneira da questão efetivamente decidida pelo
TJ/MT, atraindo a incidência da Súmula 284/STF.
2. NATUREZA DO ROL DE LEGITIMADOS PARA A
PROPOSITURA DA AÇÃO DE LEVANTAMENTO DE CURATELA. ALEGADA
VIOLAÇÃO AO ART. 756, §1º, DO CPC/15.
Em primeiro lugar, verifica-se, a partir do exame das causas de pedir
deduzidas na petição inicial, que a recorrente ajuizou a ação de levantamento da
curatela em face do recorrido ao fundamento de que há prova, posterior à
sentença de interdição proferida em 26/04/2002, que atestaria que o recorrido
não possui a doença psíquica que justificou a sua interdição ou, ao menos, que o
seu quadro clínico teria evoluído significativamente a ponto de não mais se
justificar a medida extraordinária.
O liame existente entre as partes – explica a recorrente – decorre do
fato de que o recorrido ajuizou contra ela ação de reparação de danos em razão de
acidente automobilístico causado por veículo de propriedade da recorrente, tendo
sido julgados procedentes os pedidos ao fundamento principal de que havia uma decisão de mérito transitada em julgado que, ao decretar a interdição do recorrido,
reconheceu a sua inaptidão para o trabalho em virtude do diagnóstico de
transtorno de estresse pós-traumático – TEPT – cuja causa, justamente, foi o
acidente automobilístico com o veículo da recorrente.
Diante disso, a recorrente foi condenada a: (i) pagar uma pensão
mensal vitalícia equivalente a 01 (um) salário mínimo a título de indenização pela
perda da capacidade de trabalho, incluindo-se 13º salário; (ii) indenização por
danos morais, no valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), corrigida
monetariamente a partir da sentença e juros de mora a partir da citação.
Por entender que existem elementos probatórios suficientes para
demonstrar que o recorrido não possui a patologia que resultou em sua interdição
ou que teria havido melhora substancial no quadro clínico que implicaria na
cessação da interdição e, possivelmente, até mesmo na cessação do
pensionamento vitalício a que foi condenada, conclui a recorrente ser parte
legítima para o ajuizamento da ação de levantamento da curatela, a despeito de
não constar expressamente no rol do art. 756, §1º, do CPC/15.
O conceito de parte legítima deve ser aferido tendo como base a
relação jurídica de direito material que vincula a parte que pede com a parte
contra quem se pede. Como leciona Athos Gusmão Carneiro, “consiste a
legitimação para a causa na coincidência entre a pessoa do autor a quem, em
tese, a lei atribui a titularidade da pretensão deduzida em juízo, e a coincidência
entre a pessoa do réu e a pessoa contra quem, em tese, pode ser oposta tal
pretensão”.
Dito de outra maneira:
Assim, no exame da legitimação da causa, cumpre partir de uma
hipótese: se verdadeiros os fatos jurígenos afirmados na inicial, é o autor o titular
da pretensão? E figura como ré a pessoa sujeita à mesma pretensão? Se a
resposta a ambas as indagações for positiva, a demanda corre entre partes legítimas para a causa. (CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 10ª
ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 25/26).
É induvidoso que o art. 756, §1º, do CPC/15, enumera os legitimados
para o ajuizamento da ação de levantamento da curatela:
Art. 756. Levantar-se-á a curatela quando cessar a causa que a
determinou.
§1o O pedido de levantamento da curatela poderá ser feito pelo
interdito, pelo curador ou pelo Ministério Público e será apensado aos autos da
interdição.
A questão a ser examinada, contudo, é se esse rol é taxativo ou se é
admissível a propositura da referida ação por outras pessoas não elencadas no
referido dispositivo legal.
Nesse particular, sublinhe-se que o CPC/15 ampliou o rol de
legitimados para requerer o levantamento da curatela que era previsto no art.
1.186, §1º, do CPC/73 e que previa que “o pedido de levantamento poderá ser
feito pelo interditado”.
A despeito disso, a doutrina já posicionava, ainda na vigência do código
revogado, no sentido de ser admissível a ampliação do rol de legitimados, como
leciona Antonio Carlos Marcato:
O requerimento de levantamento da interdição poderá ser
formulado pelo próprio interdito, por seu curador ou pelo órgão do Ministério
Público, processando-se apensado aos autos da interdição. (MARCATO, Antonio
Carlos. Procedimentos especiais. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 289).
De outro lado, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, também na vigência do CPC/73, posicionaram-se no sentido de o rol ser ainda mais
abrangente:
Caberá a qualquer interessado (o próprio interditado, o seu
cônjuge ou companheiro, o seu parente...) através de advogado ou de Defensor
Público, ou ao Ministério Público promover o pedido de levantamento de
interdição, dirigido ao mesmo juiz que reconheceu a incapacidade
anteriormente, devendo ser apensado aos autos do processo originário.
(FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 903).
Mesmo após a entrada em vigor do CPC/15 que, repise-se, promoveu
a ampliação do rol de legitimados, tem-se defendido que a ação de levantamento
da curatela pode ser ajuizada por outras pessoas que não aquelas arroladas no art.
756, §1º. Nesse sentido, propõem Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz
Dellore, André Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr.:
3. Legitimidade (art. 756, §1º, CPC/2015). O pedido de
levantamento/modificação da curatela – ao menos de acordo com o texto legal – só poderá ser feito pelo interdito, pelo curador ou pelo Ministério Público. Não
se pode deixar de apontar, entretanto, que não faz o mínimo sentido que os
legitimados para levantamento/modificação da curatela figurem em um rol bem
menos amplo do que os legitimados para a requererem (art. 747, CPC/2015).
Por isso, perfeitamente admissível o reconhecimento de que, além das pessoas
enumeradas no art. 756 do CPC/2015, também possam requerer o
levantamento/modificação da curatela o cônjuge ou companheiro do
curatelado, parentes ou tutores, ou mesmo o representante da entidade em que
se encontra abrigado o interditando. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca;
DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de.
Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de
2015. São Paulo: Método, 2016. p. 1312).
É correto concluir, pois, que o rol do art. 756, §1º, do CPC/15, não
enuncia todos os legitimados a propor a ação de levantamento da curatela,
havendo a possibilidade de que outras pessoas, que se pode qualificar como
terceiros juridicamente interessados em levantá-la ou modificá-la, possam
propor a referida ação, como, na hipótese, a recorrente, que: (i) não participou do
processo que gerou o decreto de interdição; (ii) foi condenada ao pagamento de
pensão vitalícia em virtude, essencialmente, de ter sido constatada a necessidade de curatela do recorrido em razão de transtorno de estresse pós-traumático
decorrente de acidente por ela causado; (iii) alega possuir provas de que a doença
psíquica não existe ou, ao menos, evoluiu significativamente, o que
potencialmente impactaria em sua condenação.
Na realidade, é possível afirmar que a razão de existir do art. 756, §1º,
do CPC/15, até mesmo pelo uso pelo legislador do verbo “poderá”, é de, a um só
tempo, enunciar ao intérprete quais as pessoas têm a faculdade de ajuizar a ação
de levantamento da curatela, garantindo-se ao interdito a possibilidade de
recuperação de sua autonomia quando não mais houver causa que justifique a
interdição, sem, contudo, excluir a possibilidade de que essa ação venha a ser
ajuizada por pessoas que, a despeito de não mencionadas pelo legislador, possuem
relação jurídica com o interdito e, consequentemente, possuem legitimidade para
pleitear o levantamento da curatela.
3. CONCLUSÃO.
Forte nessas razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e,
nessa extensão, DOU-LHE PROVIMENTO, determinando-se que seja dado regular
prosseguimento ao processo em 1º grau de jurisdição.