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9 de maio de 2021

REsp 1.721.716-PR: Da superação prospectiva da jurisprudência

Da superação prospectiva da jurisprudência 


Como descrito acima, discute-se, em suma, se a nova orientação jurisprudencial seria aplicável retroativamente, isto é, aos litígios surgidos anteriormente à definição da jurisprudência. 

Para essa discussão, o recorrente se utiliza da doutrina da superação prospectiva da jurisprudência (em inglês, denominada de doutrina da prospective overruling) ou, ainda, chamada simplesmente de modulação dos efeitos.

Essa teoria é invocada nas hipóteses em que há alteração da jurisprudência consolidada dos Tribunais e afirma que, quando essa superação é motivada pela mudança social, seria recomendável que os efeitos sejam para o futuro apenas, isto é, prospectivos, a fim de resguardar expectativas legítimas daqueles que confiaram no direito então reconhecido como obsoleto. 

Também nos EUA, a eficácia temporal na superação dos precedentes é tradicionalmente retroativa. Por exemplo, no ano de 1910, afirmou Oliver Wendell Holmes, então membro da Suprema Corte norte-americana, que “as decisões judiciais tem tido efeitos retroativos por aproximadamente mil anos”, mencionando que a superação de precedentes anteriores, tradicionalmente, sempre teve efeitos retroativos. (Suprema Corte dos Estados Unidos, Kuhn v. Fairmont Coal Co., 215 U.S. 349, 1910, p. 372, dissenting opinion). 

Foi essa preocupação que fundamentou a formulação da chamada superação prospectiva (ou prospective overruling) nos EUA, iniciada por Benjamin Cardozo, em 1932, em um importante julgamento da Suprema Corte daquele país (Great Northern Railway v. Sunburst Oil and Refining Company, 288 U.S. 350, 1932). 

Em sede doutrinária, Cardozo já havia defendido essa possibilidade por ocasião de conferências que havia proferido na Universidade de Yale, em 1921, as quais posteriormente foram reunidas em livro intitulado “A natureza do processo” (The Nature of Judicial Process). 

Assim, quando nos EUA, essa doutrina é aplicada, embora julgando um litígio de acordo com um precedente aplicável, a Corte proclama que nas hipóteses futuras modificará seu entendimento e não mais observará o precedente até então vinculante, com o objetivo de não desiludir a confiança de pelo menos uma das partes que confiou na manutenção dos precedentes até então observados. 

No primeiro precedente mencionado acima, a Suprema Corte Americana fixou os seguintes critérios para a modulação de efeitos: (i) se a aplicação retroativa serve ou não ao objetivo que deverá ser alcançado com o novo entendimento; (ii) a existência de confiança dos jurisdicionados no antigo entendimento, e (iii) os efeitos na administração da justiça pela aplicação retroativa do novo entendimento. 

Ressalte-se que o instituto da superação prospectiva não teve grande aceitação nas outras jurisdições de common law, tendo sido rejeitada na Austrália e na Inglaterra (PEIXOTO, Ravi. A superação prospectiva de precedentes: da origem norte-americana ao novo CPC. In: RBDPro. Belo Horizonte, ano 27, n. 105, p. 271-308, jan./mar. 2019). 

Assim, pode-se resumir que a teoria da superação prospectiva tem a finalidade de proteger a confiança dos jurisdicionados nas orientações exaradas por esta Corte. 

3. Da segurança jurídica sob a ótica jurisdicional 

No Brasil, por muito tempo, aplicou-se de forma praticamente absoluta a eficácia retroativa das decisões de inconstitucionalidade. O tema da retroatividade ou não da superação de precedentes simplesmente não era discutido. 

Contudo, os problemas com esse entendimento clássico começaram a surgir principalmente na seara da jurisdição constitucional, pois, em alguns julgados, a produção de efeitos retroativos seria simplesmente impossível. 

Assim, começaram a surgir situações concretas que passaram a gerar dúvidas quanto ao dogma da eficácia ex tunc do reconhecimento da inconstitucionalidade em decisões judiciais. 

No direito positivo, os primeiros textos normativos a tratarem da questão foram o art. 27 da Lei nº 9.868, de 1999, e o art. 12 da Lei nº 9.882, de 1999, voltados exclusivamente para o controle concentrado. Algum tempo depois, com a introdução da súmula vinculante, o art. 4º da Lei nº 11.417, de 2006, também tratou dessa possibilidade nesse novo instituto. 

No direito processual civil, o CPC/2015 tem como uma de suas grandes novidades a previsão de precedentes obrigatórios. A partir da valorização dos precedentes, uma série de técnicas precisam ser aprimoradas por todos os operadores do direito e uma delas, fortemente relacionada com a segurança jurídica, foi prevista no art. 927, §3º, que é a superação prospectiva de precedentes. 

De fato, o novo CPC se funda em princípios de equilíbrio, instituindo parâmetros à atividade dos juízes e Tribunais, pautados pela previsibilidade de suas manifestações. Trata-se de aproximação ao sistema da common law, ou direito costumeiro, regido pelo princípio do stare decisis, no qual o precedente, por ser a mais importante fonte do Direito, deve ser respeitado nos casos supervenientes. 

Nossa ordem jurídica – que é fundada no sistema da civil law, baseado no direito escrito e no qual os Tribunais seriam, grosso modo, aplicadores do direito objetivo legislado – se flexibilizou, portanto, para se adaptar às exigências de um sistema também baseado em precedentes de observância obrigatória, regido sobretudo, pela estabilidade. 

O propósito maior é garantir a isonomia de ordem material – a partir da qual questões semelhantes devem receber respostas equivalentes, na medida de suas desigualdades – e a proteção da confiança e da expectativa legítima do jurisdicionado, fornecendo-lhe um modelo seguro de conduta de modo a tornar previsíveis as consequências de seus atos. 

4. Da força obrigatória e vinculante dos julgados 

Ainda que se tenha estabelecido o primado da segurança jurídica e o da estabilidade, não é qualquer julgado – assim como no sistema da common law e na teoria do stare decisis – que ostenta caráter vinculante para o julgador sucessivo (precedente), devendo ser averiguada sua força (autorithy), que pode ser obrigatória ou meramente persuasiva (RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 66-67). 

De fato, mesmo que uma determinada decisão seja repetida, de forma uniforme e constante – qualificando-se, assim, como jurisprudência, em sentido formal – seu efeito, em regra, será meramente persuasivo em relação aos demais órgãos julgadores, uma vez não ostentarem a característica da imperatividade e consistirem somente em indícios de uma solução razoável e socialmente adequada. 

A prevalência da segurança jurídica e da estabilidade da jurisprudência impõe certos limites à superação de orientação jurisprudencial consolidada – isto é, a fixação de uma nova tese vinculante acerca de determinada questão, em substituição a anterior. Isso porque o dever imposto aos Tribunais pelo art. 926 do CPC/15 relaciona-se a elementos estruturantes do sistema de precedentes, devendo a modificação de sentido interpretativo preservar a confiança que emana desse sistema sobre os jurisdicionados e o interesse social a ela imanente. 

É com fundamento na confiança legítima e no interesse social que os arts. 927, § 3º, do CPC/15 prevê a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão ou a previsão de regime de transição para o cumprimento da nova tese jurídica. 

5. Da modulação de efeitos 

A jurisprudência da Segunda Seção pontua, em relação à modulação de efeitos, que “existindo interesse social e sendo a segurança jurídica necessária, as Cortes Superiores [...] podem fazer uso de tal técnica tanto quando houver a superação de precedente" (REsp 1312736/RS, Segunda Seção, DJe 16/08/2018). 

A fim de se aferir a necessidade de modulação de efeitos, a doutrina destaca que não é qualquer confiança que merece tutela na superação de um entendimento jurisprudencial, mas sim somente a confiança “'justificada', ou seja, confiança qualificada por critérios que façam ver que o precedente racionalmente merecia a credibilidade à época em que os fatos se passaram” (MARINONI, Luis Guilherme. In: WANBIER, Tereza Arruda Alvim (et. al.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 2.171-2.172). 

Se for verificada a existência de jurisprudência qualificada pela confiança criada nos jurisdicionados, a modulação dos efeitos da alteração de entendimento somente deve ser permitida se atender ao interesse social, o que é averiguado pela ponderação entre os princípios fundamentais afetados e aos efeitos que podem decorrer da adoção imediata da orientação mais recente. 

A modulação de efeitos deve, portanto, ser utilizada com parcimônia, de forma excepcional e em hipóteses específicas, em que o entendimento superado tiver sido efetivamente capaz de gerar uma expectativa legítima de atuação nos jurisdicionados e, ainda, o exigir o interesse social envolvido.

MUDANÇA DE JURISPRUDÊNCIA. APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO ANTIGO. TEORIA DA PROSPECTIVE OVERRULING. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO PROSPECTIVA. PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO

RECURSO ESPECIAL Nº 1.721.716 - PR (2017/0243200-5) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA. MUDANÇA DE JURISPRUDÊNCIA. APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO ANTIGO. TEORIA DA PROSPECTIVE OVERRULING. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO PROSPECTIVA. PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO. PRECEDENTES QUALIFICADOS. NÃO INCIDÊNCIA NA HIPÓTESE. 

1. Ação ajuizada em 09/01/2012, recurso interposto em 28/03/2016 e atribuído a este gabinete em 13/10/2017. 

2. O propósito recursal consiste em determinar se, na hipótese de mudança de jurisprudência, a nova orientação poderia ser aplicada indiscriminadamente sobre os litígios surgidos durante a vigência do entendimento jurisprudencial anterior, ainda mais sobre aqueles já submetidos ao Poder Judiciário. 

3. A teoria da superação prospectiva (prospective overruling), de origem norte-americana, é invocada nas hipóteses em que há alteração da jurisprudência consolidada dos Tribunais e afirma que, quando essa superação é motivada pela mudança social, seria recomendável que os efeitos sejam para o futuro apenas, isto é, prospectivos, a fim de resguardar expectativas legítimas daqueles que confiaram no direito então reconhecido como obsoleto. 

4. A força vinculante do precedente, em sentido estrito, bem como da jurisprudência, em sentido substancial, decorre de sua capacidade de servir de diretriz para o julgamento posterior em casos análogos e de, assim, criar nos jurisdicionados a legítima expectativa de que serão seguidos pelo próprio órgão julgador e órgãos hierarquicamente inferiores e, como consequência, sugerir para o cidadão um padrão de conduta a ser seguido com estabilidade. 

5. A modulação de efeitos do art. 927, § 3º, do CPC/15 deve ser utilizada com parcimônia, de forma excepcional e em hipóteses específicas, em que o entendimento superado tiver sido efetivamente capaz de gerar uma expectativa legítima de atuação nos jurisdicionados e, ainda, o exigir o interesse social envolvido. 

6. Na hipótese, é inegável a ocorrência de traumática alteração de entendimento desta Corte Superior, o que não pode ocasionar prejuízos para a recorrente, cuja demanda já havia sido julgada procedente em 1º grau de jurisdição de acordo com a jurisprudência anterior do STJ. 

7. Recurso especial conhecido e provido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, divergindo do voto da Sra. Ministra Nancy Andrighi, por maioria, conhecer e dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Fará declaração de voto o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Vencido o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. 

Brasília (DF), 10 de dezembro de 2019(Data do Julgamento)