RECURSO ESPECIAL Nº 1.866.230 - SP (2019/0248311-0)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E
APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
SÚMULA 282/STF. VENDA EXTRAJUDICIAL DO BEM. PRESTAÇÃO DE CONTAS.
AÇÃO AUTÔNOMA.
1. Ação de busca e apreensão de veículo alienado fiduciariamente.
2. Ação ajuizada em 25/06/2018. Recurso especial concluso ao gabinete em
04/03/2020. Julgamento: CPC/2015.
3. O propósito recursal é definir se o devedor fiduciante pode pleitear a
prestação de contas relativa à venda extrajudicial do bem alienado
fiduciariamente no bojo da própria ação de busca e apreensão ou se, ao
revés, há a necessidade de ajuizamento de ação autônoma para tal
desiderato.
4. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pela recorrente
em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial.
5. No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais
garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor
poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta
pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial,
salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar
o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e
entregar ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de
contas.
6. As questões concernentes à venda extrajudicial do bem, imputação do
valor alcançado no pagamento do débito e apuração acerca de eventual
saldo remanescente em favor do devedor não podem ser discutidas,
incidentalmente, no bojo da ação de busca e apreensão que, como se sabe,
visa tão somente à consolidação da propriedade do bem no patrimônio do
credor fiduciário.
7. Assiste ao devedor fiduciário o direito à prestação de contas, dada a
venda extrajudicial do bem, porém tal pretensão deve ser perquirida pela via adequada, qual seja, a ação de exigir/prestar contas.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido,
com majoração de honorários.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso
especial e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra
Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco
Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 22 de setembro de 2020(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI:
Cuida-se de recurso especial interposto por MARINA COLANERI BONI - ESPÓLIO, contra acórdão proferido pelo TJ/SP.
Recurso especial interposto em: 19/03/2019.
Concluso ao gabinete em: 04/03/2020.
Ação: de busca e apreensão de veículo alienado fiduciariamente,
ajuizada por BANCO ITAUCARD S.A., em desfavor da recorrente (e-STJ fls. 1-7).
Sentença: julgou procedente o pedido, para declarar rescindido o
contrato e para consolidar nas mãos do recorrido o domínio e a posse plenos e
exclusivos do bem (e-STJ fls. 89-90).
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram acolhidos
para fazer constar da sentença que “(...) poderá o réu oportunamente, se o caso,
forte no art. 2º, caput, in fine, do Decreto Lei 911/69, propor ação de prestação de
contas autônoma em desfavor do autor (...)” (e-STJ fl. 103).
Acórdão: negou provimento à apelação interposta pela recorrente,
nos termos da seguinte ementa:
Ação de busca e apreensão – alienação fiduciária – venda
extrajudicial do bem – pretensão da devedora em exigir as contas na fase de cumprimento de sentença – impossibilidade diante do pedido e procedimento
específicos para tal finalidade – necessidade de ação autônoma – apelação não
provida, com observação (art. 85 § 11 do CPC) (e-STJ fl. 132).
Recurso especial: alega violação dos arts. 2º do Decreto-Lei
911/69; 3º, 4º, 141 e 492 do CPC/2015. Sustenta que:
a) é possível a efetivação da prestação de contas nos próprios autos
da ação de busca e apreensão, não havendo necessidade de ajuizamento de ação
autônoma para tal mister;
b) a exigência de ajuizamento de ação autônoma de prestação de
contas viola os princípios da legalidade, da economia processual e da razoável
duração do processo;
c) a prestação de contas é direito expresso do devedor fiduciante, que
deve ter ciência do valor apurado com a venda do bem apreendido, sendo um
dever do credor fiduciário; e
d) a majoração de honorários recursais, quando não houve
requerimento da parte adversa, representa julgamento ultra petita (e-STJ fls.
131-133).
Prévio juízo de admissibilidade: o TJ/SP inadmitiu o recurso
especial interposto por MARINA COLANERI BONI - ESPÓLIO (e-STJ fls. 171-172),
ensejando a interposição de agravo em recurso especial (e-STJ fls. 175-188).
Decisão monocrática da Presidência: não conheceu do agravo
em recurso especial interposto pela recorrente (e-STJ fls. 198-199).
Agravo interno: foi interposto pela recorrente, pugnando pela
reforma da decisão monocrática (e-STJ fls. 202-232).
Decisão monocrática: ensejou a reconsideração da decisão
proferida às fls. 198-199 (e-STJ), tendo sido determinada a reautuação do agravo
em recurso especial (e-STJ fl. 245)
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (RELATOR):
O propósito recursal é definir se o devedor fiduciante pode pleitear a
prestação de contas relativa à venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente
no bojo da própria ação de busca e apreensão ou se, ao revés, há a necessidade de
ajuizamento de ação autônoma para tal desiderato.
Aplicação do Código de Processo Civil de 2015, pelo
Enunciado administrativo n. 3/STJ.
1. DA AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO
1. O acórdão recorrido não decidiu acerca dos argumentos invocados
pela recorrente em seu recurso especial quanto aos arts. 141 e 492 do CPC/2015,
o que inviabiliza o seu julgamento. Aplica-se, neste caso, a Súmula 282/STF.
2. DA NECESSIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO AUTÔNOMA
DE PRESTAÇÃO DE CONTAS RELATIVA À VENDA EXTRAJUDICIAL DO BEM
OBJETO DE BUSCA E APREENSÃO
2. Inicialmente, convém salientar que, pelo Decreto-Lei 911/69, nas hipóteses de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas
mediante alienação fiduciária, duas são as ações asseguradas ao credor fiduciário
para a satisfação do crédito a que faz jus: i) a ação de busca e apreensão do bem
(art. 3º, DL 911/69); e ii) a ação de execução, objetivando o pagamento da
integralidade da dívida (arts. 4º e 5º, DL 911/69).
3. Vale lembrar que as ações de busca e apreensão e de execução não
podem ser ajuizadas concomitantemente, como mesmo já decidiu este STJ (REsp
576.081/SP, 4ª Turma, DJe 08/06/2010; REsp 210.622/SC, 4ª Turma, DJ
16/02/2004; e REsp 450.990/PR, 3ª Turma, DJe 01/09/2003). Caberá, portanto,
ao credor fiduciário optar pelo ajuizamento de apenas uma delas.
4. Na hipótese de optar pelo ajuizamento da ação de busca e
apreensão – situação dos autos –, tem-se que, uma vez apreendido o bem,
promover-se-á a sua venda extrajudicial, nos moldes do que dispõe o art. 2º do DL
911/69:
Art. 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações
contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou
credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta
pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo
disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço
da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao
devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas
(grifos acrescentados).
5. Efetivada a venda, apura-se o saldo entre o produto da venda e o
montante da dívida e encargos, procedendo-se a prestação de contas ao devedor;
havendo sobra, o credor deverá entregá-la ao devedor ou, ao contrário,
remanescendo saldo devedor, o devedor continua responsável pelo pagamento
(CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: Negócio fiduciário. 5 ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 212).
6. Vale lembrar que a obrigatoriedade da prestação de contas foi
inovação trazida pela Lei 13.043/2014 que, não obstante não fosse expressa
anteriormente à sua edição, já era reconhecida como de interesse do devedor
fiduciante quando da venda extrajudicial do bem.
7. A propósito, citam-se precedentes deste STJ nesse sentido:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS.
INTERESSE PROCESSUAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÃO.
LEILÃO EXTRAJUDICIAL. VEICULO AUTOMOTOR. ADMINISTRAÇÃO DE
INTERESSE DE TERCEIRO. CABIMENTO.
1. A violação do art. 844 do CPC/1973 não foi debatida no
Tribunal de origem, o que implica ausência de prequestionamento. Incidência
da Súmula n. 282/STF.
2. No caso de alienação extrajudicial de veículo
automotor regida pelo art. 2º do Decreto-Lei n. 911/1969 - redação
anterior à Lei n. 13.043/2014 -, tem o devedor interesse
processual na ação de prestação de contas, quanto aos valores
decorrentes da venda e à correta imputação no débito (saldo
remanescente). 3. A administração de interesse de terceiro decorre
do comando normativo que exige destinação específica do quantum
e a entrega de eventual saldo ao devedor.
4. Após a entrada em vigor da Lei n. 13.043/2014, que
alterou o art. 2º do Decreto-Lei n. 911/1969, a obrigação de prestar
contas ficou expressamente consignada.
5. Recurso especial conhecido em parte e não provido (REsp
1.678.525/SP, 4ª Turma, DJe 09/10/2017).
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.
EFETUADA A VENDA DO BEM PELO CREDOR, TEM O DEVEDOR O
DIREITO A PRESTAÇÃO DE CONTAS (REsp 67.295/RO, 3ª Turma, DJ
07/10/1996).
8. Com efeito, reconhece-se que o interesse do devedor fiduciante é
evidente nos casos de alienação extrajudicial do bem, uma vez que a solução dada
pelo credor fiduciário afeta o seu patrimônio. Como lembrou o Min. Antonio Carlos
Ferreira, relator do retrocitado REsp 1.678.525/SP:
(...) Ao credor cumpre zelar pela correta destinação da quantia, nos moldes estabelecidos pela norma. Essa incumbência também está ligada ao
patrimônio do devedor, o qual ficará vinculado pela dívida remanescente ou terá
saldo a receber.
Portanto, a administração de interesse de terceiro decorre do
comando normativo que exige destinação específica do quantum e a entrega de
eventual saldo ao devedor fiduciário.
9. Indiscutível o interesse do devedor fiduciante na prestação de
contas, cumpre definir se tal prestação pode ser pleiteada e, via de consequência,
prestada pelo credor fiduciário, no bojo dos próprios autos de ação de busca e
apreensão ou se deve haver o ajuizamento de ação autônoma para esta finalidade.
10. Com efeito, as questões concernentes à venda extrajudicial do
bem, imputação do valor alcançado no pagamento do débito e apuração acerca de
eventual saldo remanescente em favor do devedor não podem ser discutidas,
incidentalmente, no bojo da ação de busca e apreensão que, como se sabe, visa
tão somente à consolidação da propriedade do bem no patrimônio do credor
fiduciário.
11. Ademais, vale frisar que o próprio Decreto-Lei expressamente
define que a busca e apreensão constitui processo autônomo e
independente de qualquer procedimento posterior, senão veja-se:
Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que
comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o
inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do
bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser
apreciada em plantão judiciário.
(...)
§ 8º A busca e apreensão prevista no presente artigo
constitui processo autônomo e independente de qualquer
procedimento posterior.
12. Ainda quando do julgamento do já mencionado REsp 1.678.525/SP
(DJe 09/10/2017) – que, em verdade, discutiu sobre a existência de interesse do devedor fiduciante na prestação de contas quando há venda do bem objeto de
garantia fiduciária, anteriormente à edição da Lei 13.043/2014 –, ficou
expressamente consignado no voto que “(...) não há possibilidade de alcançar essa
prestação de contas no próprio âmbito da ação de busca e apreensão. Com efeito,
além do objeto da ação ser restrito ao aspecto possessório, visando à consolidação
da posse plena, porque não há título executivo a amparar eventual cumprimento
de sentença a respeito do saldo remanescente” (grifos acrescentados).
13. No mesmo sentido, decisão monocrática proferida pelo Min.
Marco Aurélio Bellizze, reconhecendo que assiste ao devedor fiduciário o direito à
prestação de contas, dada a venda extrajudicial do bem, porém tal pretensão deve
ser perquirida pela via adequada, qual seja, a ação de exigir/prestar contas (AREsp
1.550.376/SP, publicada em 30/10/2019).
14. O acórdão recorrido, portanto, deve ser mantido.
Forte nessas razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial
interposto por MARINA COLANERI BONI - ESPÓLIO e, nessa extensão, NEGO-LHE
PROVIMENTO para manter o acórdão recorrido, que reconheceu a impossibilidade
de a prestação de contas dar-se no bojo da ação de busca e apreensão.
Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, considerando o trabalho
adicional imposto ao advogado da parte recorrida em virtude da interposição deste
recurso, majoro os honorários fixados anteriormente em 12% (doze por cento) do
valor da causa (e-STJ fl. 133) para 15% (quinze por cento).