INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS
PROVIMENTOS VINCULANTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A PARTIR DO PARADIGMA
DO PÓS-POSITIVISMO
Interpretation and application of binding provisionses of the New
Code of Civil Procedure from the post positivism paradigm
Revista de Processo | vol. 245/2015 | p. 351 - 377 | Jul / 2015
DTR\2015\11015
_____________________________________________________________________________________
Georges
Abboud
Doutor e
Mestre em direitos difusos e coletivos pela PUC-SP. Professor do programa de
Mestrado e Doutorado da Fadisp. Advogado.
Marcos
de Araújo Cavalcanti
Mestre e
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Doutorando em Direitos
Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Membro do Centro de Estudos Avançados de
Processo - Ceapro e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo -
Annep. Procurador do Distrito Federal. Advogado.
Área
do Direito: Processual
Resumo:
O presente texto procura analisar a
forma como devem ocorrer a interpretação e a aplicação dos precedentes conforme
a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico.
Palavras-chave:
Pós-positivismo - Precedentes - Interpretação - Aplicação.
Abstract:
This paper analyzes the way it should
occur the interpretation and application of the precedents as the post
positivism understanding of the judicial phenomenon.
Keywords:
Post positivism - Precedents - Interpretation - Application.
Sumário:
-
1.Introdução: conceito de norma jurídica - 2.Fundamentos do paradigma
pós-positivista - 3.Consequências da interpretação e aplicação dos precedentes
conforme o paradigma pós-positivista - 4.Conclusões
Recebido
em: 08.05.2015
Aprovado
em: 18.06.2015
1.
Introdução: conceito de norma jurídica
A partir da
primeira metade século 20, o conceito de norma jurídica, desenvolvida
inicialmente na Europa continental, passa a ser conceito central para teoria do
direito. Foi nesse século que foram criadas as teorias da norma jurídica.
Antes, não havia uma teoria propriamente dita.1
Atribui-se à Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen uma das primeiras e mais importantes
construções teóricas sobre o conceito de norma jurídica. Para a teoria kelseniana,
o conceito de direito confunde-se com o próprio conceito de norma jurídica.
Todavia, isso não quer dizer que o conceito de norma se equipara ao de lei.
Segundo Kelsen, a lei, na verdade, é apenas uma espécie de norma que faz parte
de toda a estrutura da dinâmica jurídica.2
De acordo com
a teoria kelseniana, a norma jurídica é conceituada como um esquema
de interpretação (conceito semântico de norma) que determina o sentido
objetivo dos atos humanos, conferindo a eles um significado de direito. Assim,
a norma jurídica confere sentido jurídico aos atos da conduta humana. Todavia,
a própria norma é produzida por um ato jurídico que também recebe a sua
significação jurídica de uma outra norma, na estrutura dinâmica da ordem
jurídica.3
Nas palavras
de Kelsen: “A norma funciona como esquema de interpretação. O juízo em que se
enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou
antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma
interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um
acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da
interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o
significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um
ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma
outra norma”.4
Para a
finalidade do presente artigo, importa destacar que na teoria kelseniana
a norma jurídica possui caráter semântico. Ou seja, ela preexiste abstratamente
antes mesmo da problematização jurídica. Assim, de acordo com Kelsen, o
conceito de norma pode ser construído em abstrato, sem qualquer aplicação
pragmática a um determinado caso concreto.5
A teoria da
norma jurídica de Kelsen influenciou outros juristas. Por exemplo, Robert
Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, apesar de ter tentado
superar alguns aspectos do conceito formulado pela teoria kelseniana,
também estabeleceu um conceito semântico de norma jurídica, uma vez que,
ela é um ente abstrato que se subdivide em duas espécies: regras e princípios.
Pode-se dizer, portanto, que Alexy, assim como Kelsen, mantém o conceito de
norma como um esquema de interpretação que dispensa a problematização para a
sua existência, confirmando, com isso, o seu caráter semântico.
De acordo com
Alexy, “o conceito semântico de norma certamente não é igualmente adequado a
todas as finalidades, mas quando se trata de problemas de dogmática jurídica e
da aplicação do direito é sempre mais adequado que qualquer outro conceito de
norma. Esses âmbitos dizem respeito a questões como a de saber se duas normas
são logicamente compatíveis, quais são as consequências de uma norma, como
interpretá-la e aplicá-la, se ela é válida e, algumas vezes, se a norma, quando
invalidada, deveria ser válida. O conceito semântico de norma é adequado
exatamente para lidar com essas questões”.6
Como se
verifica, Robert Alexy também atribui à norma um caráter semântico.
Segundo essa concepção, a norma jurídica preexiste abstratamente antes
mesmo da problematização jurídica. Por essa razão, o conceito semântico
de norma influencia diretamente os conceitos de regras e princípios
na obra de Alexy, para quem a norma constitui o gênero do qual
são espécies os princípios e as regras.
Ao conceituar princípios
afirma que estes “são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são
caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que
a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades
fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”.7
Por outro
lado, ao tratar das regras, o autor explica que estas “são normas que
são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se
fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contém,
portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma
distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra
ou um princípio”.8
A teoria da
norma de Alexy fundamenta-se principalmente nessa distinção entre regras e
princípios em mandados de definição e mandados de otimização,
respectivamente. As regras e princípios, portanto, seriam espécies do
gênero norma jurídica. Norma esta ante casum.9
De acordo com
Alexy, “a distinção entre regras e princípios constitui, além disso, a
estrutura de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, com
isso, um ponto de partida para a resposta à pergunta acerca da possibilidade e
dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. Nesse
sentido, a distinção entre regras e princípios é uma das colunas-mestras do
edifício da teoria dos direitos fundamentais”.10
Acontece que
essa distinção somente é possível tendo em vista que o conceito de norma, na
teoria alexyana, é operada no plano semântico, abstrato,
desconsiderando a problematização jurídica. Segundo entende a doutrina, “por
mais clara que esta distinção possa parecer, desde o ponto de vista lógico, ela
sempre levará a mal entendidos por se tratar de uma artificialidade que não
problematiza a questão no âmbito pragmático”.11
Assim,
surgiram autores, como Ronald Dworkin, que não aceitam o caráter semântico da
norma jurídica. Para o autor, não há conceito prévio e abstrato de norma
jurídica. Isto é, a normatividade somente surge concretamente na própria
atividade interpretativa e não em um sistema lógico previamente
determinado.12
Conforme a
teoria de Ronald Dworkin, o direito surge de um processo interpretativo de
construção e justificação. Essa ideia contrapõe-se às teorias semânticas da
norma jurídica, que aceitam que as decisões judiciais sejam firmadas com base
em processo de subsunção de fatos à norma jurídica.13 De acordo com
essas teorias, a norma jurídica preexiste, devendo apenas ao intérprete
verificar o correto enquadramento dos fatos à norma jurídica.
Dworkin
critica veementemente as teorias semânticas, sustentando a necessidade de uma
interpretação construtiva e pragmática acerca da aplicação do direito.14
Segundo explica: “Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão
de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor
exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí
não se segue, mesmo depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer
de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem;
que um membro da comunidade hipotética fascinado pela igualdade, por exemplo,
possa de boa-fé afirmar que, na verdade, a cortesia exige que as riquezas sejam
compartilhadas. Pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma
coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos, ainda que, como
veremos, a natureza dessa coerção deva ser examinada com cuidado. Do ponto de
vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre
propósito e objeto”.15
O conceito de
norma, desse modo, é colocado em plano pragmático (concreto) e não mais
meramente semântico (abstrato) como entendem Kelsen e Alexy. A norma deixa de
ser um mero esquema de interpretação de caráter semântico e passa a ser
compreendida como a própria interpretação, que é inerente à atividade
jurisdicional. A norma, assim, não possui significado ou normatividade em
abstrato, mas apenas concretamente após a atividade interpretativa e
construtiva.16
Pode-se dizer
que essa virada no conceito de norma jurídica, decorrente da distinção entre
texto normativo e norma jurídica, atribuindo-lhe um caráter pragmático ou
estruturante e não mais semântico, foi o principal fundamento teórico para o
surgimento do paradigma pós-positivista da norma jurídica e, por consequência,
da decisão judicial, contribuindo, assim, para a superação do positivismo
normativo de Kelsen, seguido, em certa medida, por Alexy.
Portanto, para
a finalidade do presente artigo, faz-se imprescindível o estudo dos fundamentos
do paradigma pós-positivista da norma jurídica e da decisão judicial, o que se
faz a seguir.
2.
Fundamentos do paradigma pós-positivista
O positivismo
normativo de Kelsen tem como característica principal a exclusão de seu âmbito
de análise qualquer conteúdo que ultrapasse o direito positivo. Limita-se,
dessa forma, a descrever e organizar apenas o direito posto, ou seja, aquele
produzido pelo convívio humano, denominado de direito positivo.17
Assim, os
principais fundamentos do paradigma pós-positivista, a seguir demonstrados,
procuram superar o paradigma positivista normativo, no qual a norma jurídica
tem natureza semântica e o direito é aplicado por subsunção com o objetivo de
revelar a vontade da lei. Tratam-se, portanto, de fundamentos que procuram
ultrapassar as barreiras lançadas pelo positivismo, seja o primitivo, seja o
normativista.
Como explica
Lenio Streck: “O novo paradigma do direito instituído pelo Estado Democrático
de Direito é nitidamente incompatível com a velha teoria das fontes, a
plenipotenciariedade dos discursos da fundamentação, sustentada no predomínio
da regra e no desprezo pelos discursos de aplicação, e, finalmente, com o modo
de interpretação fundado (ainda) nos paradigmas aristotélicos-tomistas e da
filosofia da consciência. Assim, a teoria positivista das fontes vem a ser
superada pela Constituição; a velha teoria da norma dará lugar à superação da
regra pelo princípio, e o velho modus, interpretativo
subsuntivo-dedutivo – fundado na relação epistemológica sujeito-objeto – vem a
dar lugar ao giro linguístico-ontológico, fundado na intersubjetividade”.18
As bases
teóricas do pós-positivismo foram inicialmente formuladas por Friedrich Müller
em sua obra Juristische Methodic, que teve a sua primeira edição lançada
no ano de 1971.19 Aliás, deve-se ao próprio Friedrich Müller a
criação do termo “pós-positivismo”, que serviu para identificar um novo
paradigma do direito, instituído de acordo com metódica estruturante do
direito.20
Na verdade, ao
construir as bases teóricas do paradigma pós-positivista do direito, Friedrich
Müller não teve a intenção de romper definitivamente ou criar um paradigma antipositivista.
O que ele pretendeu foi identificar os equívocos do paradigma positivista e
superá-los, propondo a sua adequação aos avanços alcançados pela filosofia da
linguagem e da hermenêutica jurídica.21
Desse modo, a
obra de Friedrich Müller, em especial a Teoria Estruturante do Direito,
examina a norma jurídica mediante uma compreensão pós-positivista.22
O objetivo é corrigir as deficiências do positivismo normativista de postura kelseniana,
isto é, superar o caráter semântico da norma e, consequentemente, a aplicação
do direito pelo método subsuntivo.23 A norma deixa de ter caráter
semântico, abstrato, não se confundindo mais com o próprio texto legal. Na
verdade, a norma passa a ser o resultado concreto de um processo
interpretativo-criativo.24
A criação do
termo ‘pós-positivismo’ e a sistematização desse paradigma são oriundos da obra
de Friedrich Müller, que constrói uma teoria do direito que não almeja se opor
ao positivismo (daí ser pós e não anti positivista), mas
complementá-lo, corrigindo os equívocos. Assim, podemos afirmar que o
pós-positivismo tem dois grandes objetivos: (a) carrear as conquistas e as
inovações filosóficas advindas do giro-linguístico para o direito e (b)
sistematizar a teoria da norma atrelando a ao fenômeno decisório com o intuito
de se superar a concepção de que decisão judicial seria mero ato de vontade ou
uma operação mecânica de cariz silogístico.
De forma
resumida, a obra de Friedrich Müller25 é fundamental para expor que
a superação do positivismo (que nunca deve ser um fim em si mesmo) precisa
passar ao menos pelos seguintes enfrentamentos: (a) a norma não pode mais ser
reduzida ao seu texto; (b) o ordenamento jurídico positivo sem lacunas é uma
verdadeira ficção puramente artificial; (c) a solução dos casos jurídicos não
pode mais pretender ser realizada pelo silogismo, porquanto a decisão de cada
caso deve ser estruturada e construída a partir dos dados linguísticos
(programa da norma) e extralinguísticos (âmbito da norma), a fim de se alcançar
a norma decisória do caso concreto (não há norma em abstrato – sem problema a
se solucionar não há norma); (d) em suma, o pensamento pós-positivista não pode
mais partir de uma cisão ficcional entre o jurídico e a realidade, ou seja, o
pós-positivismo supera e transcende a clássica distinção entre questão de fato
e de direito.
Estando
compreendidas as bases do pós-positivismo, torna-se, no mínimo, ficção – ou até
mesmo ingenuidade –, imaginar que o recrudescimento de decisões com efeito
vinculante, ou mecanismos que almejam a solução, por meio do efeito cascata,
seriam a solução adequada para racionalizar a atividade do Judiciário.
Hodiernamente,
apostar em decisões dos Tribunais com efeito vinculante consiste em realizar a
mesma forma de aposta ingênua que foi feita na Revolução Francesa. Contudo, no
passado, acreditava-se que a lei conteria a infinidade de solução dos casos.
Atualmente, essa mística tem sido depositada nas decisões dos tribunais
superiores, a aposta é de que o STJ e o STF poderia criar superdecisões que,
por si só, trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade
de casos.
Sobre o ponto,
já afirmamos: “Nesse novo paradigma, a norma deixa de ser um ente abstrato, ou
seja, ela passa a inexistir ante casum, uma vez que não se equipara mais
ao texto legal, consequentemente, a norma passa a ser coconstitutiva da
formulação do caso concreto. Essa nova concepção de norma jurídica demanda uma
visão do direito que abandone os dualismos irrealistas tais como norma/caso e
direito/realidade, bem como o silogismo como mecanismo de aplicação do direito.
Esses aspectos passarão a ser examinados nos itens subsequentes”.26
Assim, três elementos
são essenciais para a compreensão do paradigma pós-positivista: (a) diferença
entre texto e norma; (b) a interpretação do direito deixa de ser ato que
desvenda a vontade da lei (volunta legis) ou do legislador (volunta
legislatoris); e (c) a sentença deixa de ser processo silogístico (não se
aplica mais a subsunção).27
A adequada
compreensão das diferenças entre texto (enunciado) e norma e, consequentemente,
a aceitação da superação do silogismo e da interpretação como ato revelador da
vontade da lei ou do legislador permitem dizer, por exemplo, que as súmulas
vinculantes e a ratio decidendi (ou, como dizem os norte-americanos, a holding)
extraída dos precedentes judiciais são nada mais do que textos normativos,
que também precisam ser interpretados para o caso concreto no qual serão
aplicados.28
Em outras
palavras: a súmula vinculante e a ratio decidendi extraída dos
precedentes judiciais não se caracterizam per se como normas jurídicas
aplicáveis por subsunção a outros casos, mas sim textos ou enunciados
normativos que precisam ser interpretados e aplicados ao caso concreto,
levando em consideração os elementos não linguísticos, isto é, o âmbito
normativo constituído pelo recorte da realidade social, como a seguir será
melhor explicado.29
2.1
Diferenças entre texto e norma
A norma
jurídica não se confunde com o texto normativo. A superação do paradigma
positivista, decorrente de sua adequação aos avanços alcançados pela filosofia
da linguagem e da hermenêutica jurídica, permite dizer que há diferenças entre
o texto normativo e a norma jurídica. Ou seja, o texto normativo não traz nele
próprio o significado da norma jurídica.
Segundo
explica Müller: “o texto da norma não contém normatividade e a sua estrutura
material concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da
concretização materialmente determinada do direito no âmbito de seu quadro.
Conceitos jurídicos em textos de normas não possuem ‘significado’, enunciados
não possuem sentido segundo a concepção de um dado orientador acabado”.30
Conforme o
paradigma pós-positivista do direito, a norma jurídica não pode ser confundida
com o mero texto normativo. Existe, assim, um processo concretizador da norma
jurídica. Nos dizeres de Müller, “somente o positivismo científico-jurídico rigoroso
pode fiar-se em ‘aplicar’ a lei, na medida em que tratou o texto literal desta
como premissa maior e ‘subsumiu’ as circunstâncias reais a serem avaliadas
aparentemente de forma lógica ao caminho do silogismo na verdade vinculado ao
conceito e, assim, vinculado à língua”.31 Na verdade, o texto
normativo é apenas o ponto de partida na estruturação da norma jurídica. O
significado da norma jurídica apenas surge diante da problematização do caso
concreto, seja real ou fictício.32
A teoria
estruturante de Müller é, portanto, formada por duas entidades jurídicas:33o
programa normativo e o âmbito normativo. O primeiro, o programa
normativo, é composto pelos elementos linguísticos (texto normativo) do
processo interpretativo e concretizador da norma jurídica. Esse teor literal do
programa normativo é ante casum, isto é, preexiste abstratamente antes
da problematização. Já a norma é sempre concreto-decisória nunca prescindindo
da solução do caso concreto.
De outro lado,
o âmbito normativo é formado pelos elementos não linguísticos, ou seja,
pelos aspectos da realidade social que, no processo de interpretação prática e
na aplicação de normas jurídicas, são apontados como estruturas básicas
relevantes pelo programa normativo. O recorte da realidade é elemento
integrante da composição da norma jurídica, juntamente com os dados
linguísticos, no processo interpretativo.34
Assim, o programa
normativo e âmbito normativo são entidades jurídicas que estruturam
a concretização da norma jurídica, sendo ambos inseridos nela própria.35
Em suma: não
se pode confundir o texto normativo com a própria norma jurídica. O texto
normativo corresponde ao programa normativo, isto é, o elemento
linguístico da norma jurídica (texto legal, súmula vinculante, ratio
decidendi dos precedentes judiciais). Apenas o programa normativo preexiste
abstratamente. Por outro lado, a norma jurídica é estruturada por um
complexo processo de concretização constituído não apenas pelo programa
normativo, mas também pelo âmbito normativo, ou seja, pelos
elementos não linguísticos, o recorte da realidade social que, no processo de
interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, é assinalada como estrutura
básica relevante pelo programa normativo.36 Em suma, não há aplicação
de textos normativos (lei, súmula, acórdão paradigma etc.) sem a atividade
interpretativa. Daí a impossibilidade em se admitir o silogismo como mecanismo
para aplicação de regras jurídicas ou de qualquer outro elemento jurídico.
O programa
normativo é um limite intransponível para a atividade interpretativa. A norma
jurídica concretizada deve se ater às balizas do enunciado normativo.37
Exemplo recente de decisionismo e arbitrariedade que ultrapassou os limites do programa
normativo são as decisões do STJ proferidas no julgamento dos REsp
1.063.343/RS e REsp 1.308.830/RS. Em tais julgamentos restou decidido que as
demandas representativas da controvérsia não podem ser objeto de pedido de
desistência, tendo em vista a existência de interesse público na fixação
da tese jurídica a ser aplicada aos demais casos repetitivos.
Acontece que o
art. 501 do CPC/1973 (art. 998 do CPC/2015) prevê expressamente a possibilidade
de o recorrente desistir do recurso, mesmo sem a anuência da parte contrária e
a qualquer tempo. Eis o teor do dispositivo: “O recorrente poderá, a qualquer
tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.
No julgamento
dos recursos especiais acima referidos, o STJ deixou deliberadamente de aplicar
o art. 501 do CPC/1973 (art. 998 do CPC/2015), sem que fosse declarada sua
inconstitucionalidade – a qual não existe, deixe-se claro –, em flagrante
violação ao art. 97 da Constituição da República e ao Enunciado 10 da súmula da
jurisprudência vinculante do STF.38
Todavia,
decisões dessa estirpe não devem ser admissíveis,39 já que
desconsideram o teor literal do programa (texto) normativo (nos casos
mencionados, o art. 501 do CPC/1973), configurando, portanto, decisionismo e
arbitrariedade.
Enfim, o
positivismo equivoca-se ao entender que a norma jurídica já existe
abstratamente no enunciado normativo como, por exemplo, na leis, na súmula
vinculante ou na ratio decidendi dos precedentes judiciai brasileiros.
Na realidade
brasileira, a lei, a súmula e a ratio decidendi são textos normativos
abstratos que preexistem à problematização do caso concreto e possuem o
objetivo principal de resolver casos que venham a surgir futuramente.
Por essa razão, é equivocado o entendimento de que os precedentes judiciais
brasileiros possuem norma jurídica (ou, como alguns preferem, regra jurídica) a
ser aplicada por simples subsunção aos casos repetitivos.
A norma
jurídica não é preexistente, não é abstrata e somente deve ser compreendida
quando problematizada diante do caso concreto no qual será aplicada após
complexa atividade interpretativa que envolve a junção do programa normativo e
do âmbito normativo. A interpretação, compreensão e aplicação da norma jurídica
são atos que ocorrem simultaneamente diante da problematização de um caso concreto.40
Por isso é equivocado dizer que primeiro se decide para depois buscar o
fundamento da decisão. Essa conduta constitui em verdadeira arbitrariedade do
intérprete.41
O significado
da norma jurídica deve ser extraído por uma interpretação criativa que leve em
consideração os aspectos da realidade social, uma vez que o texto normativo não
é a própria norma jurídica já definida a ser aplicada ao caso concreto.42
A correta
captação da distinção entre texto normativo e norma jurídica é
fundamental para compreender adequadamente como deve efetivar-se a
interpretação e a aplicação dos precedentes judiciais brasileiros conforme o
paradigma pós-positivista do fenômeno jurídico. A ideia de que a ratio
decidendi extraída dos precedentes judiciais constitui regra jurídica
finalizada e pronta para ser aplicada por subsunção ao caso concreto não
se coaduna com o paradigma pós-positivista, pois parte da premissa de que ela é
a própria norma jurídica já definida e que dispensa a problematização e
a interpretação construtiva.
2.2
A interpretação como ato não revelador da vontade da lei ou do legislador
No
positivismo, como decorrência da natureza semântica ou abstrata da norma
jurídica, é possível admitir que a interpretação constitui-se em ato revelador
do sentido normativo da lei (mens legis) ou da vontade do legislador (mens
legislatoris), aplicáveis ao caso concreto pelo método subsuntivo.
O entendimento
de que a interpretação é ato que revela a vontade da lei ou do legislador é
facilmente identificado na seguinte passagem de Kelsen: “Que a chamada vontade
do legislador ou a intenção das partes que estipulam um negócio jurídico possam
não corresponder às palavras que são expressas na lei ou no negócio jurídico, é
uma possibilidade reconhecida, de modo inteiramente geral, pela jurisprudência
tradicional. A discrepância entre vontade e expressão pode ser completa, mas
também pode ser parcial. Este último caso apresenta-se quando a vontade do
legislador ou a intenção das partes correspondem pelo menos a uma das várias
significações que a expressão verbal da norma veicula”.43
No
positivismo, aceita-se essa ideia (a revelação da vontade) porque a norma
preexiste abstratamente, cabendo ao intérprete apenas descobrir a vontade da lei
ou do legislador pelo método subsuntivo. A norma, portanto, não é estruturada
mediante a conjugação do programa normativo (dados linguísticos, o texto) e do
âmbito normativo (elementos extralinguísticos, o recorte da realidade social).
A norma jurídica é simplesmente encontrada e a sua vontade, que é preexistente,
revelada pelo intérprete.
Contudo, no
contexto do paradigma pós-positivista, a atividade interpretativa não pode ser
entendida como ato que desvenda a vontade da lei ou do legislador. Isso porque,
como visto anteriormente, a norma jurídica não existe antes da problematização.
O seu significado apenas é extraído depois de complexa atividade interpretativa
e construtiva que envolve não apenas os dados linguísticos do enunciado
normativo mas também os elementos não linguísticos, isto é, o recorte da
realidade social. Não se pode falar em revelação da vontade da lei ou do
legislador exatamente porque o texto legal não possui qualquer significado
jurídico antes da problematização e do processo concretizador do intérprete,
que também envolve o exame da realidade social.
A
interpretação, portanto, deve levar em consideração as variações históricas das
condições jurídicas, culturais, políticas, sociais, econômicas etc. Na
estruturação da norma jurídica, o intérprete precisa considerar o contexto
histórico do momento da atividade interpretativa. A interpretação, portanto,
não é um ato mecânico, automático, no qual se revela o sentido de alguma coisa
preexistente. A atividade interpretativa e, consequentemente, a aplicação do
direito se alteram a partir de cada realidade histórica também alterada.44
Assim, de
acordo com a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico, a interpretação
e a aplicação do direito ocorrem simultaneamente, integrando aquilo que se
chama de “círculo hermenêutico”. Essa interpretação e aplicação do direito
sofrem, portanto, a interferência direta do contexto histórico vivido pelo
intérprete, motivo pelo qual não se pode aceitar a ideia de que preexiste uma
vontade da lei ou do legislador.45
Por essa
razão, já tivemos oportunidade de afirmar que: “Na realidade, a atividade
interpretativa é sempre histórica porque o texto é abordado a partir da
historicidade do intérprete. Portanto, o jurista não se torna um ser histórico
apenas quando se desdobra sobre o produto da cultura no estudo da disciplina
‘história’, mas, mesmo quando efetua uma interpretação no nível de um campo,
como é o direito, ali também operam com ele os efeitos da história”.46
Desse modo, na
compreensão do paradigma pós-positivista, não é correto falar-se em vontade da
lei ou do legislador. A norma jurídica sempre decorrerá de um complexo processo
interpretativo e concretizador. Por essa razão, será sempre imprescindível a
produção de uma nova norma jurídica, mesmo que o caso seja repetitivo e esteja
abrangido pela eficácia vinculante de precedentes judiciais. A ratio
decidendi, portanto, não deve ser compreendida como norma jurídica
finalizada e pronta para ser aplicada independentemente de um processo
interpretativo e concretizador. A ratio decidendi, em verdade, nada mais
é do que mero texto normativo, ou seja, apenas é uma das entidades jurídicas (o
programa normativo) que integra do processo estruturante da norma jurídica.
2.3
Superação do silogismo e do método subsuntivo
Para o
positivismo, a norma jurídica tem natureza semântica, sendo esta preexistente à
problematização jurídica. Diante desse paradigma, é possível aceitar-se a
aplicação silogística e automática dos fatos (premissa menor) à norma (premissa
maior), visto que esta última já preexiste no plano abstrato. A norma não é
concretizada diante da problematização jurídica, mediante complexo processo
interpretativo que envolve os dados linguísticos (enunciado normativo) e
extralinguísticos (recorte da realidade social). A interpretação positivista
pelo método subsuntivo apenas encontra e revela a vontade da lei ou do
legislador, que é preexistente. Assim, a decisão judicial, na concepção
positivista do fenômeno jurídico, é ato silogístico, isto é, trata-se de ato
declaratório (e não criativo) do direito.47
A atribuição
do caráter silogístico à sentença é equivocado, pois confunde o texto normativo
com a norma jurídica. Como visto, a decisão judicial é ato criador do direito e
não meramente declaratório. O silogismo dá a impressão de que a lei, a súmula
vinculante e a ratio decidendi retirada dos procedentes judiciais são a
própria norma jurídica finalizada e pronta para ser aplicada ao caso concreto,
independentemente de qualquer processo interpretativo.
Acontece que,
a partir do paradigma pós-positivista, no qual a norma jurídica não se confunde
mais com o texto, o direito não é mais entendido como um sistema normativo sem
lacunas – como queria o positivismo –, assim como não se aceita mais a exclusão
dos elementos da realidade social do processo interpretativo e criativo das
normas. O âmbito normativo passa a integrar o processo criativo de normas
jurídicas. Além disso, a decisão judicial não é mais compreendida como mero
resultado da aplicação do método subsuntivo. Conforme afirma Georges Abboud,
“perante o paradigma pós-positivista, a sentença deixa de ser ato silogístico
em que se aplica mecanicamente uma premissa maior (lei) para solução do caso
concreto (premissa menor)”.48
Conforme a compreensão
pós-positivista do fenômeno jurídico, a decisão judicial é construída de acordo
com a metódica estruturante do direito, diante de uma problematização jurídica.
Não há que se falar em método subsuntivo ou ato declaratório da vontade da lei
ou do legislador. No pós-positivismo, a decisão judicial é produzida para dar
significado à norma jurídica que resolverá a problematização do caso concreto.
Por essa razão, entende-se como equivocado a afirmação no sentido de que a ratio
decidendi é regra jurídica aplicável pelo método subsuntivo ao caso
concreto, cabendo ao juiz tão somente assentar os fatos ao texto normativo.
Como bem alerta Lenio Streck, “no paradigma filosófico em que nos encontramos,
é equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução”.49
Portanto,
devem ser afastadas possíveis influências do silogismo e do método subsuntivo
na interpretação e aplicação dos procedentes judiciais brasileiros,
especialmente aqueles dotados de efeitos vinculante. Se assim não for, o texto
normativo da ratio decidendi, indesejavelmente, será atemporal, isto é,
não influenciável pelo âmbito normativo do processo interpretativo, cabendo ao
intérprete a simples extração de significados da norma jurídica que já se
encontram no interior do próprio texto.50
Assim, tendo
em vista as novas reformas processuais, especialmente o Novo Código de Processo
Civil, que introduziu novos mecanismos processuais geradores de decisões
paradigmas, aplicáveis para o futuro e dotadas de efeito vinculante, o presente
artigo tenta lançar algumas premissas sobre como devem ocorrer a interpretação
e a aplicação dos precedentes conforme a compreensão pós-positivista do
fenômeno jurídico.51
3.
Consequências da interpretação e aplicação dos precedentes conforme o paradigma
pós-positivista
O CPC/2015
cria uma forma de vinculação de decisões judiciais bastante problemática.52
Por agora, basta dizer que o CPC/2015, em seu art. 926, estabelece, com ótimas
intenções, a necessidade de os tribunais uniformizarem sua jurisprudência e de
mantê-la estável, íntegra e coerente.
Para dar
efetividade à referida uniformização, estabilidade e coerência, o art. 927 do
CPC/2015 estabelece um enorme rol de disposições que obrigatoriamente devem ser
observadas pelos tribunais e/ou juízes. Conforme o dispositivo mencionado, os
órgãos julgadores estarão obrigados a seguir de forma vinculada: (a) as
decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade; (b) os enunciados de súmula vinculante; (c) os acórdãos em
incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e
em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (d) os
enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e
do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e (e) a
orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.
Sobre o tema,
vale trazer o Enunciado 179 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As
decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são
vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos”.
Na verdade, o
CPC/2015 tenta importar o sistema do stare decisis do common law,
por meio da tendência desmesurada à hipertrofia das decisões dos tribunais, com
sua imposição vinculante aos juízes de hierarquia inferior.53
Georges Abboud
e Nelson Nery Junior explicam que a forma de vinculação proposta pelo CPC/2015
é bastante problemática no que se refere ao dinamismo do sistema.54
Para os autores, dentre os diversos riscos, pode-se citar a consolidação do
entendimento a partir de um único caso pendente no tribunal. Como os
demais processos ficarão suspensos e a decisão será aplicada de forma
vinculada, inclusive para as causas futuras, a reapreciação da mesma
questão pelos tribunais será praticamente impossível.55
O CPC/2015
cria enorme barreira ao reexame da matéria, através de diversos mecanismos
processuais, tais como: a improcedência liminar; a inexistência do duplo grau
obrigatório de jurisdição; a monocratização das decisões judiciais; etc. Há,
dessa forma, um sério risco de engessamento da jurisprudência.56
Para se alterar um entendimento jurisprudencial no Brasil, uma das poucas
alternativas restantes seria por lei. Nesse contexto, como observam Georges
Abboud e Nelson Nery Junior, “o Brasil passaria a ser o único país em que a lei
atualiza a jurisprudência e não o contrário”.57
Assim, o modo
como o CPC/2015 tenta importar o sistema do stare decisis do common
law é absolutamente inadequado.58 O precedente judicial nos
países de tradição anglo-saxônica funciona como ponto de partida
para a discussão e resolução da lide, função que, nos países do civil law,
é desempenhada pela própria legislação. Sua aplicação exige intensa
interpretação e realização do contraditório entre as partes.59 Segundo
Lenio Streck, “também nos EUA – e não poderia ser diferente – texto e norma não
são a mesma coisa”.60
No fundo, os
precedentes judiciais, no sistema do CPC/2015, estão mais próximos das súmulas
vinculantes do que do stare decisis do common law, já que são
criados com a finalidade principal de resolver casos futuros.61 No
caso dos precedentes há, porém, uma diferença agravante: a eficácia vinculante
não tem autorização constitucional, o que configura a sua
inconstitucionalidade.
Deixando de
lado, por ora, algumas inconstitucionalidades presentes no sistema de decisões
vinculantes do CPC/2015,62 deve-se entender, com a finalidade de
evitar riscos ao sistema decisório, que a interpretação e aplicação dos
precedentes judiciais sejam realizadas conforme o paradigma pós-positivistas do
fenômeno jurídico.
Com a
superação do paradigma positivista pelo pós-positivismo, principalmente em
decorrência dos avanços alcançados pela filosofia da linguagem e da
hermenêutica jurídica, a interpretação e aplicação dos precedentes judiciais
devem ser realizadas de acordo com a metódica estruturante do direito, na qual
não mais se confunde texto com norma e a decisão judicial não é mais tida como
ato silogístico que revela a vontade da lei ou do legislador.
Premissas
equivocadas, influenciadas pelo positivismo normativo, podem levar a
entendimentos no sentido de que a ratio decidendi dos precedentes
judiciais do CPC/2015 não serve de ponto de partida, mas de linha de chegada
para resolução dos casos repetitivos. Conforme esse entendimento (equivocado,
diga-se), a ratio decidendi seria, portanto, verdadeira regra
decisória, dispensando as alegações das partes, a fundamentação e a
problematização decisional. Afirmações assim podem levar a compreensões no
sentido de que o CPC/2015 tornou desnecessária a interpretação da lei,
do texto constitucional e da ratio decidendi, assim como o exame das
alegações das partes para a resolução dos processos repetitivos sobrestados.
No contexto do
paradigma pós-positivista, a ratio decidendi extraída dos procedentes
judiciais nada mais é do que um dos elementos integrantes do processo
interpretativo. A ratio decidendi é tão somente o programa normativo, o
elemento linguístico, o texto normativo, o ponto de partida da atividade
interpretativa, que não dispensa a problematização e a observância dos
elementos não linguísticos da realidade social (o âmbito normativo).
Assim, o
magistrado, antes da aplicação da tese jurídica ao caso concreto, deve
sempre garantir às partes o direito de discutir e distinguir o caso sob
julgamento, demonstrando, por exemplo, tratar-se de situação particularizada
por hipótese fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução
jurídica diversa. Além disso, a simples existência de ratio decidendi
não autoriza que a atividade interpretativa deixe de considerar outros textos
normativos, tais como a lei e a própria constituição.
Deve-se
observar, portanto, o disposto no art. 10 do CPC/2015, de acordo com o qual: “O
juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
A obrigação da
observância do art. 10 do CPC/2015 quando da aplicação dos precedentes está
positivada no § 1.º do art. 927.63 Ou seja, quando os juízos do caso
concreto decidirem com base em precedentes vinculantes, antes prolatar a
decisão, obrigatoriamente devem dar oportunidade às partes de se manifestarem
sobre a aplicabilidade da tese jurídica.
Na verdade, a
manifestação da parte sobre a aplicabilidade da tese jurídica abstrata ao caso
concreto é uma conduta que colabora com a atividade interpretativa e criativa
do magistrado. Assim, o contraditório, também no âmbito do próprio processo
repetitivo, deve ser amplamente assegurado às partes, com a possibilidade prévia
de debater a (in)aplicabilidade da tese jurídica ao caso concreto.
Caso assim não
seja, o preço que os jurisdicionados pagarão será alto: de um lado, o engessamento
da ordem jurídica, principalmente pela resistência dos tribunais pátrios a
qualquer tentativa de revisão de suas decisões; e, de outro, o cerceamento do
direito de defesa e do direito de influir eficazmente na atividade
jurisdicional,64 especialmente pela falta de controle da
representação adequada e pela impossibilidade de discutir previamente e
contribuir com a interpretação e aplicação da tese jurídica ao caso concreto.
Outra
consequência decorrente do paradigma pós-positivista é a possibilidade de
qualquer magistrado, no caso concreto, superar o entendimento fixado no
precedente vinculante, caso o contexto histórico tenha se alterado. Isso
porque, como visto, no processo concretizador da norma jurídica a interpretação
deve levar em consideração as variações históricas das condições jurídicas,
culturais, políticas, sociais, econômicas etc.
Na
estruturação da norma jurídica, o intérprete precisa considerar o contexto
histórico do momento da atividade interpretativa. A interpretação, portanto,
não é um ato mecânico, automático, no qual se revela o sentido de uma norma
preexistente. A atividade interpretativa e, consequentemente, a aplicação do
direito alteram-se a partir de cada realidade social também alterada. Portanto,
o interessado na superação do procedente pode alegar, por exemplo, a
revogação ou modificação de texto normativo em que se fundou a decisão; ou a
alteração econômica, cultural, política ou social referente à matéria decidida.
A vinculação se perde quando o âmbito normativo é alterado. E somente é
possível verificar essa perda da vinculação quando o âmbito normativo também
for confrontado diante de uma nova problematização.
Como o âmbito
normativo é uma das entidades jurídicas integrantes do processo interpretativo,
qualquer magistrado pode superar o procedente vinculante, desde que fundamente
a sua decisão nas variações históricas das condições jurídicas, culturais,
políticas, sociais, econômicas etc. É equivocada, portanto, a exigência de que
seja instaurado perante o tribunal prolator da decisão vinculante um procedimento
específico para revisão da tese jurídica, como faz o art. 986 do CPC/2015,
que trata da revisão da tese jurídica no Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas.65
Exemplificando:
se sobrevier legislação incompatível com o precedente, a tese jurídica firmada
com base no texto normativo revogado não deve ser pelo juízo do caso concreto,
mesmo que o magistrado não seja integrante do órgão prolator da decisão, salvo
se no exame do caso concreto declarar a nova lei inconstitucional, realizar
interpretação conforme ou declarar nulidade sem redução de texto.
Esse parece
ser o entendimento firmado no Enunciado 324 do Fórum Permanente de
Processualistas Civis: “Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é
fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou
tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a
realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de
texto”.
Por fim, vale
fazer uma última observação: não se está aqui defendendo que a ratio
decidendi deve ser interpretada de forma autônoma e isolada dos fatos que
lhe deram origem. Conforme a exigência hermenêutica de Gadamer, somente é
possível compreender o que esta mencionado no enunciado (texto) a partir da
situação concreta (occasio) no qual foi pronunciado.66
Tratando das
súmulas vinculantes, mas com posicionamento que se encaixa perfeitamente aos
precedentes judiciais brasileiros, Lenio Streck afirma que: “os textos são
fatos. Isto porque os textos são o dito de uma compreensão que se deu,
necessariamente, como aplicação. Na verdade, temos que encontrar o fio condutor
da tradição que se liga ao enunciado. Teremos que buscar – sempre, em face dos
princípios da integridade e da coerência, que na hermenêutica denominados de
tradição – os casos e o contexto em que esse enunciado foi produzido. Não é
possível, portanto, continuarmos analisando os textos das súmulas como se ali
fosse ‘o lugar da verdade’ e como se o sentido imanente desse texto nos desse as
respostas para a sua futura aplicação”.67
Enfim, a ratio
decidendi é o ponto de partida de um processo interpretativo e criativo que
envolve outros elementos. No processo interpretativo, deve-se levar em
consideração eventuais variações históricas das condições jurídicas, culturais,
políticas, sociais, econômicas etc. Ademais, o intérprete também deve verificar
a faticidade do caso concreto que deu origem ao surgimento do precedente,
examinado se eles se assemelham com os do processo no qual a tese jurídica será
aplicada. O precedente somente terá força vinculante ao caso concreto se as
questões jurídicas forem homogêneas.
4.
Conclusões
Em função da
compreensão hermenêutica do tema, o precedente deve ser vislumbrado em dois
níveis de análise: em um primeiro momento, o precedente é uma decisão de um
Tribunal com aptidão a ser reproduzida-seguida pelos tribunais inferiores,
entretanto, sua condição de precedente dependerá dele ser efetivamente seguido
na resolução de casos análogos-similares.68
O mecanismo de
decisão por precedentes é naturalmente e funcionalmente de caráter hermenêutico
em razão de dois aspectos principais. O primeiro é porque a decisão por
precedentes não se articula com textos pré-definidos, vale salientar: o
precedente, e mais especificamente a ratio decidendi, não pode ser
capturado e limitado por um texto, súmula etc., sob risco de deixar de ser ratio
decidendi. O segundo aspecto é a necessária individualização do caso:
questão a ser decidida por um precedente, não abarca previamente uma questão
fática, o que torna necessária a demonstração da singularidade de cada caso,
para que se evidencie a possibilidade ou não de submetê-lo à solução por
precedentes.
Portanto, não
há aplicação mecânica ou subsuntiva na solução dos casos mediante a utilização
do precedente judicial. Do contrário, não será decisão por precedente. Em
outros termos, não existe uma prévia e pronta regra jurídica apta a solucionar
por efeito cascata diversos casos futuros, pelo contrário, a própria regra jurídica
(precedente) é fruto de intenso debate e atividade interpretativa, e, após ser
localizada, passa-se a verificar se na circunstância do caso concreto que ela
virá solucionar é possível utilizá-la sem que ocorram graves distorções, porque
se elas ficarem caracterizadas, ela, isto é, o precedente, deverá ser afastada.
Em termos
simples, o precedente genuíno no common law nunca nasce desde-sempre
precedente.
Se ele tiver
coerência, integridade e racionalidade suficientes para torná-lo ponto de
partida para discussão de teses jurídicas propostas pelas partes, e, ao mesmo
tempo, ele se tornar padrão decisório para os tribunais e demais instâncias do
Judiciário é que ele poderá com o tempo vir a se tornar precedente.
Ou seja, no common
law, o que confere essa dimensão de precedente à decisão do Tribunal
Superior é sua aceitação pelas partes e pelas instâncias inferiores do
Judiciário. Daí ele ser dotado de uma aura democrática que o precedente à
brasileira, não possui, uma vez que, os provimentos vinculantes do CPC/2015
já nascem dotados de efeito vinculante – independentemente da qualidade e da
consistência da conclusão de suas decisões.
Por
consequência, no common law, os Tribunais Superiores, quando decidem um leading
case, não podem impor seu julgado determinando que ele se torne um
precedente. Paradigmático nesse sentido é o caso Marbury vs. Madison.
Isso porque o Justice Marshall quando o decidiu, não podia prever que
aquele caso se tornaria efetivamente o caso modelo para a realização do
controle difuso de constitucionalidade. Aliás, Justice Marshall não
poderia nem ao menos prever que o caso Marbury vs. Madison
adquiriria a importância que teve, até mesmo porque por quase três décadas após
seu julgamento o precedente oriundo do caso Marbury vs. Madison manteve-se
em estado dormente. No que diz respeito à jurisprudência dotada de efeito
vinculante, seu âmbito de vinculação é determinado após o julgamento do caso
piloto (paradigma), e opera-se o efeito cascata, para posterior resolução de
todos os casos que estavam sobrestados até o julgamento do paradigma.
Vale dizer,
por força legislativa (art. 927 do CPC/2015), no Brasil, diversas decisões
judicias já nascem vinculantes independentemente da sua própria qualidade. Ou
seja, ainda que não coerentes ou íntegras do ponto de vista da cadeia
decisional, elas nascerão vinculantes. Essa constatação é fundamental para
compreendermos a importância do fator hermenêutico para tratarmos da
aplicação do CPC/2015, com o escopo de impedirmos qualquer tentativa de
aplicação mecânica, ou meramente subsuntiva, de qualquer provimento vinculante.69
Os provimentos
postos no art. 927 do CPC/2015 ao serem aplicados pelas demais instâncias nos
casos subsequentes não dispensam atividade interpretativa por parte do
julgador, bem como o contraditório para assegurar a manifestação dos litigantes
acerca da forma correta para sua aplicação no caso concreto.
Portanto, a
leitura correta (constitucionalmente adequada) é no sentido de que, quando o
CPC/2015 afirma a obrigatoriedade de juízes e tribunais observarem súmula
vinculante e acórdão vinculante, não há nesse ponto uma proibição de
interpretar. O que fica explícito é a obrigatoriedade de os juízes e tribunais
utilizarem os provimentos vinculantes na motivação de suas decisões para assegurar
não apenas a estabilidade, mas a integridade e a coerência da jurisprudência.
1 ABBOUD,
Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução
à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 296.
2 Idem, p.
284.
3 Idem, p.
296.
4 KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 04.
5 ABBOUD,
Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p.
298.
6 ALEXY,
Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonsa
da Silva. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 60.
7 Idem, p. 90.
8 Idem, p. 91.
9 Idem, p. 85.
10 Idem,
ibidem.
11 ABBOUD,
Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p.
299.
12 Idem, p.
32.
13 Conforme
explica Dworkin: “As teorias semânticas mais influentes sustentam que os
critérios comuns levam a verdade das proposições jurídicas a depender de certos
eventos históricos específicos. Essas teorias positivistas, como são chamadas,
sustentam o ponto de vista do direito como simples questão de fato, aquele
segundo o qual a verdadeira divergência sobre a natureza do direito deve ser
uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas” (DWORKIN,
Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.
45-46).“Vou concentrar-me no positivismo jurídico porque, como acabei de dizer,
essa é a teoria semântica que sustenta o ponto de vista do direito como simples
questão de fato e a alegação de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve
ser empírico, não teórico” (idem, p. 41).
14 Dworkin
rebate as teorias semânticas afirmando que estas foram infectadas pelo aguilhão
semântico (semantic sting), uma vez que os advogados e juízes não
compartilham obrigatoriamente dos mesmos critérios linguísticos: “Devo agora
definir mais amplamente o aguilhão: esse conceito inscreve-se no pressuposto de
que todos os conceitos dependem de uma prática linguísticas convergente do tipo
que descrevi na Introdução: uma prática que demarca a extensão do conceito ou
por meio de critérios comuns de aplicação ou pela vinculação do conceito a um
tipo natural distinto. A infecção provocada pelo aguilhão semântico, devo
dizê-lo agora, consiste no pressuposto de que todos os conceitos de direito,
inclusive o doutrinário, dependem de uma prática convergente em uma dessas duas
formas” (DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes,
2010, p. 318-319).
15 DWORKIN,
Ronald. O império… cit., p. 63-64.
16 Nesse
sentido, transcrevem-se as lições da doutrina: “Portanto, normas não são coisas
com um caráter significativo pré-determinado e nem tampouco categorias
semânticas que operam deônticamente de uma maneira prévia, descolada da
existência. Daí ser fundamental a presença de caso concreto (real ou fictício),
pendente de solução, para que se possa vislumbrar a manifestação da norma
jurídica” (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz
de. Op. cit., p. 300).
17 ABBOUD,
Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo
e a decisão judicial. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 55.
18 STRECK,
Lenio Luiz. Constituição e constituir: da interpretação de textos à
concretização de direitos – a incindibilidade entre interpretar e aplicar a
partir da diferença entre texto e norma. Democracia, direito e política:
estudos em homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito Editorial,
Fundação Boiteux, 2006, p. 436-437.
19 MÜLLER,
Friedrich. Juristische methodic. Berlin: Duncker & Humblot, 1971.
20 ABBOUD,
Georges. Op. cit., p. 54.
21 Idem, p.
55.
22 MÜLLER,
Friedrich. Teoria estruturante do direito. 2. ed. rev. e ampl. Trad.
Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. São Paulo: Ed. RT, 2009.
23 São
cabíveis as palavras de Lenio Streck: “O positivismo que aqui se combate
funciona como um discurso que submete o texto e a ele se submete, fundindo-se
coisas, essências e a consciência de si do pensamento pensante. Ignora, assim,
a diferença (ontológica) entre texto e norma e vigência e validade, condição de
possibilidade da filtragem e do controle de constitucionalidade. E é nesse locus
que se concretiza o crime positivista do sequestro da temporalidade do direito!
Novamente aqui a problemática relacionada às três frentes de batalha que o
constitucionalismo do Estado Democrático de Direito enfrentou para superar o
positivismo: a teoria das fontes, da norma e da interpretação” (STRECK, Lenio
Luiz. Op. cit., p. 465).
24 Friedrich
Müller faz a seguinte crítica ao pensamento de Kelsen: “No ponto decisivo da Teoria
Pura do Direito, que trata da sua fecundidade para a concretização prática
do direito, o dualismo abstrato, mantido sem quebra de convicção, volta-se
contra o enfoque positivista. São momentos da decisão volitiva, que conclui a interpretação
autêntica, os aspectos da justiça, as normas da moral, os juízos do valor
social, sobre cuja vigência não se pode dizer nada do ponto de vista do direito
positivo. O alcance da positividade consiste apenas em abandonar no âmbito de
várias soluções logicamente possíveis a decisão volitiva à sentença judicial ou
a um outro ato de geração de uma norma individual, a ser instituído ainda. O
fato da norma ‘aplicanda’ ou o sistema de normas deixarem em aberto várias
possibilidades, é compreendido por Kelsen como pressuposto da possibilidade de
interpretação. O seu enfoque aqui esboçado permite compreender porque a teoria
pura do direito não pode dar nenhuma contribuição para uma teoria aproveitável
da interpretação. Kelsen deixa expressamente em aberto como a ‘vontade da
norma’ deve ser concretamente determinada no caso de um sentido da norma
linguisticamente não-unívoco. Por intermédio de uma cadeia de postulados
dualistas, os problemas materiais da concretização da norma são liminarmente
eliminados. Em muitos casos pode-se defender, lado a lado, várias soluções, não
só ‘em termos lógicos’, mas também em termos material-jurídicos. No entanto, o
vazio de conteúdo da compreensão kelseniana da norma é mantido mesmo diante da
plurivocidade de textos de normas. Também o positivismo reconhece que uma norma
genérica formulada em linguagem permite quase sempre várias interpretações. Mas
também aqui a separação de ser e dever ser, do conhecimento e do ato volitivo,
de pontos de vista do direito positivo e de pontos de vista da ‘política
jurídica’ elimina toda e qualquer possibilidade de desenvolver meios concretos
de interpretação e aplicação. Os critérios de aferição da decisão volitiva são
empurrados na direção da dimensão metajurídica. Silencia-se sobre os critérios
de aferição do conhecimento tanto no quadro da interpretação autêntica quanto
no da interpretação não-autêntica, a não ser que se considere a referência
global ao procedimento ‘lógico’ com ponto arquimédico suficiente para a verdade
científica. Não só esta, mas também o direito são concretos. Com vistas ao caso
individual prático, a teoria pura do direito fica devendo todo e qualquer
auxílio para saber como determinar o quadro em si logicamente equivalente da
ordem aplicanda da norma. Ex negativo evidencia-se mais uma vez o nexo
entre epistemologia, compreensão da norma e questões práticas de direito, do
qual trata a presente publicação. Como ciência no sentido de Kelsen, a teoria
geral do direito não pretende contribuir em nada para a concretização de um
determinado ordenamento jurídico positivo como ordenamento com determinados
conteúdos” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 28-29).
25 MÜLLER,
Friedrich. Postpositivismo, Cantabria: Ediciones TGD, 2008, n. 3, p.
188-189.
26 ABBOUD, Georges.
Op. cit., p. 56.
27 Idem, p.
75.
28 Idem, p.
56.
29 Em sentido
contrário, entendendo que o precedente é aplicável por subsunção, Fredie Didier
Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira explicam que: “A norma
em que se constitui o procedente é um regra. A ratio é o fundamento
normativo da solução de um caso; necessariamente, será uma regra. Não por
acaso, a norma do procedente é aplicável por subsunção” (DIDIER JR.,
Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito
processual civil. 10. ed. Salvador: JusPosivm, 2015, vol. 2, p. 451).
30 MÜLLER,
Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, p. 41.
31 MÜLLER,
Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 192.
32 ABBOUD,
Georges. Op. cit., p. 67-68.
33 Conforme
explica Müller: “À luz da concretização da norma deve-se proceder à distinção
entre programa normativo e âmbito normativo, sendo que este último deve ser
igualmente visto como entidade jurídica e não extrajurídica” (MÜLLER,
Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 258).
34 ABBOUD,
Georges. Op. cit., p. 68.
35 Conforme
explica Müller: “Nos direitos fundamentais e em outras disposições legais do
direito de Estado e direito constitucional, os âmbitos normativos são, em
geral, especialmente produtivos, fazendo com que tais normas apareçam, então,
como particularmente ‘abstratas’ ao serem equiparadas a seu texto normativo.
Somente o texto normativo é de fato abstrato. Ao lado dele e da norma de
decisão concludente, a noção estruturante de norma deve ser tipologicamente
elaborada, sendo que seu âmbito normativo, possível no real, potencialmente,
visto que estruturalmente engloba os casos que se subordinam à norma. Também na
teoria da norma, o tipo se mostra como o ‘meio-termo’ entre o geral e o
particular’. O âmbito normativo designa como figura intermediária tipológica um
âmbito estrutural possível no real para os casos reais, potencialmente reunidos
e subordinados à disposição legal. A metódica racional, ultrapassando o estágio
intermediário da tipologia da concretização articulada de acordo com programa
normativo e âmbito normativo, une o caso à norma, os quais formam os dois polos
não isolados da concretização, sendo integralmente inseridos nela” (MÜLLER,
Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 254-255).
36 Sobre como
deve ser compreendido o âmbito normativo Müller explica que: “O âmbito
normativo continua sendo, também nesse contexto que engloba valores, um
elemento constitutivo da normatividade materialmente determinada e continua
permanecendo a seu serviço e não a serviço do sociologismo ou do
existencialismo jurídico. Ele não é uma mera soma de fatos, mas um conjunto de
elementos estruturais, obtidos a partir da realidade e que em geral já aparecem
tradicionalmente formados ou coformados pelo direito, sendo formulado como algo
possível no mundo real. Os âmbitos normativos são, assim, esferas da liberdade
‘natural’, nem devem ser utilizados como natureza das coisas desvinculada de
normas, corregedora da norma ou simplesmente superpositiva. A ‘natureza’ das
coisas a serem aqui apreendidas pela teoria da norma significa apenas estrutura
material básica das circunstâncias reais do mundo social normatizadas,
apreendidas pela norma e cofundadoras da normatividade concreta da disposição
legal. Por causa da formação jurídica existente, o âmbito normativo não se
limita ao puro empirismo de um recorte da realidade. Ele não engloba a
totalidade absoluta dos fatos a serem concretamente inseridos nesse recorte, porque,
como parte integrante da norma estruturante vista, ele só aparece quando o
programa normativo assinala, no processo de interpretação prática e na
aplicação de normas jurídicas, as estruturas básicas relevantes desse âmbito
normativo, considerando o caso particular” (idem, p. 248-249).
37 Nelson Nery
Junior, tratando sobre a mutação constitucional, leciona que: “Hodiernamente, a
mutação constitucional deve ser entendida como adaptação interpretativa entre o
texto constitucional e a realidade a ser operada principalmente pelos Tribunais
Constitucionais. Contudo, a mutação possui limites, a fim de se evitar
decisionismos e arbitrariedades, e ultrapassar esses limites implica violação
do poder constituinte e da soberania popular. O texto constitucional, ou seja,
o teor literal da CF, demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de
sentido, isto é, funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis.
Decisões que passam claramente por cima do teor literal não são admissíveis”
(NERY JR., Nelson. Prefácio. In: ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional
e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 16).
38 Nesse
sentido, Nelson Nery Junior e Georges Abboud: “O STJ, a quem cabe garantir o
respeito à lei federal e à uniformização do entendimento da lei federal no
Brasil, com as decisões ora analisadas negou vigência ao CPC 501. Não existe em
nosso ordenamento vigente previsão constitucional ou legal que autorize o STJ a
julgar tese jurídica subjacente quando aquele que recorreu por meio de recurso
especial desiste do recurso. No Estado Constitucional ao Judiciário somente é
lícito afastar a aplicação da lei em relação ao caso concreto quando reconhece,
incidenter tantum, a inconstitucionalidade dessa lei, tarefa que faz
mediante o controle difuso de constitucionalidade. A possibilidade de declarar
inconstitucional a lei federal em abstrato é atribuição do Supremo Tribunal
Federal” (NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges. Ativismo judicial como conceito
natimorto para consolidação do Estado Democrático de Direito: as razões pelas
quais a justiça não pode ser medida pela vontade de alguém. In: DIDIER JR.,
Fredie; RAMOS, Glauco Gumerato; NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.).Ativismo
judicial e garantismo processual. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 540).
39 MÜLLER,
FRIEDRICH. Métodos de trabalho… cit., p. 64.
40 Conforme
explica Lenio Streck: “A incindibilidade entre interpretar e aplicar representa
a ruptura com o paradigma representacional-metodológico. Não interpretamos por
partes. Na verdade, quando interpretamos, aplicamos. É o círculo hermenêutico
que vai se constituir em condição de ruptura do esquema (metafísico)
sujeito-objeto, nele introduzindo o mundo prático, que serve para cimentar essa
travessia, até então ficcionada na e pela epistemologia. Não há como isolar a
pré-compreensão. Há um sentido que está com o intérprete desde sempre e que se
constitui na antecipação do sentido, circunstância que transforma o ato de
compreensão em uma espécie de vetor de racionalidade estruturante e não
meramente explicitativo. A procura de elementos de racionalidade que garantam
um orientação de validade intersubjetiva transforma esta racionalidade em um
vetor de segundo nível” (STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 467). Em sentido
contrário, Kelsen afirma: “Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico,
este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de
interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que
acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão
superior para um escalão inferior” (KELSEN, Hans. Op. cit., p. 387).
41 ABBOUD,
Georges. Op. cit., p. 67.
42 Nesse
sentido, Cassio Scarpinella Bueno: “O direito precisa ser interpretado para ser
aplicado. Ele serve para ser interpretado e aplicado. É como se dissesse, sem
muito exagero, que não há, propriamente ‘direito’ sem sua específica aplicação
aos casos concretos. Há, no máximo, texto que representa o direito, mas não as
normas jurídicas propriamente ditas. Estas precisam, sempre, ser interpretadas
e aplicadas para existirem como tais” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso
sistematizado de direito processual civil. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2012,
vol. 1, p. 105).Também sobre o ponto, Lenio Streck leciona: “Não basta dizer,
pois, que o direito é concretude, e que ‘cada caso é um caso’, como é comum na
linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente que o direito é
concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não é evidente
é que o processo interpretativo é applicatio e que o direito é parte
integrante do próprio caso e uma questão de fato é sempre uma questão de
direito e vice-versa. Hermenêutica não é filolofia. Lembremos a todo o momento
a advertência de Müller: da interpretação de textos temos que saltar para a
concretização de direitos. Uma coisa é ‘deduzir’ de um topos ou de uma
lei o caso concreto; outra é entender o direito como aplicação: na primeira
hipótese, estar-se-á entificando o ser; na segunda, estar-se-á realizando a
aplicação de índole hermenêutica, a partir da ideia de que o ser é sempre
ser-em (in Sein)” (STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 444).
43 KELSEN,
Hans. Op. cit., p. 390.
44 De acordo
com a teoria estruturante de Müller: “A realidade da convivência histórica
entre os seres humanos, a qual precisa ser sempre novamente regulada e mantida
em ordem, não é objeto, mas sim fundamento e parte integrante da estrutura
normativa. […] O âmbito normativo fornece ao programa normativo alternativas
estruturais, fundadas em dados reais, para seus modelos, os quais se confirmam
ou se alteram” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 259,
262).
45 Sobre a
necessidade de se considerar no processo interpretativo as alterações
históricas, importante trazer o seguinte exemplo de Georges Abboud: “No caso
Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte havia admitido a raça como fato de
discrímen em benefícios dos brancos durante o transporte ferroviário, tal voto
consolidou a equivocada premissa (separados, mas iguais). Ou seja, a Suprema
Corte admitiu como razoável a segregação racial em locais públicos. O
entendimento da Suprema Corte Norte-americana modificou-se totalmente,
posteriormente, no julgamento do caso Brown vs. Board of Education, que
revogou a possibilidade de discrímen racial, declarando inconstitucional o
‘regime Jim Crow’, que eram leis estaduais e locais decretadas nos estados
sulistas e limítrofes nos Estados Unidos, em vigor entre 1876 e 1965, e que
discriminavam afro-americanos, asiáticos e outros grupos minoritários” (ABBOUD,
Georges. Op. cit., p. 77)
46 Idem,
ibidem.
47 ABBOUD,
Georges. Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. São Paulo:
Ed. RT, 2011, p. 69.
48 ABBOUD,
Georges. Discricionariedade… cit., p. 83.
49 STRECK,
Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis: necessitamos de uma
“teoria para a elaboração de precedentes”? In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais. São Paulo: Ed. RT, 2009, n. 78, maio-jun., p.302.
50 ABBOUD,
Georges. Discricionariedade… cit., p. 84.
51 Lenio
Streck faz a seguinte observação: “Penso que, em tempos de pós-positivismo,
tentativas de estabelecer ‘exatidões de linguagem’ e ‘interpretações
isomórficas’ devem ser enfrentadas de imediato, mormente quando o dia-a-dia do
Judiciário cada vez mais se torna refém de proposições jurídicas com pretensões
universalizantes” (STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 287).
52 NERY JR.,
Nelson. ABBOUD; Georges. Stare decisis vs. direito jurisprudencial. In:
FREIRE, Alexandre et al (coords.). Novas tendências do processo civil:
estudos sobre o Projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador:
JusPodivm, 2013, p. 503.
53 GRECO,
Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In:
SOUZA, Márcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (coords.). O
novo Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias
fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 14.
54 NERY JR.,
Nelson. ABBOUD; Georges. Stare decisis… cit., p. 503.
55 Idem,
ibidem.
56 Eis as
lições de Georges Abboud e Nelson Nery Junior: “A atribuição desmedida de
efeitos vinculantes às decisões das Cortes Superiores impede a formação da
própria jurisprudência, que se torna engessada. Afinal, a jurisprudência para
se constituir como fonte do direito – na legítima acepção da palavra, tem que
ser fruto de históricas e reiteradas decisões dos tribunais, com as
contradições e evoluções que são ínsitas a todo processo histórico. Contudo, se
utilizarmos o efetivo efeito vinculante para os processos repetitivos, apesar
de se obter o aumento da velocidade dos processos, corre-se o risco de sepultar
a própria jurisprudência, que seria delimitada e fixada a partir de uma única
decisão dos tribunais superiores” (idem, p. 503-504).
57 Idem, p.
503.
58 GRECO,
Leonardo. Op. cit., p. 14.
59 NERY JR.,
Nelson; ABBOUD; Georges. Stare decisis… cit., p. 503.
60 STRECK,
Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 290.
61 Explicando
as diferenças entre os precedentes do common law e as súmulas
vinculantes, Lenio Streck afirma: “Tudo isso, pode ser resumido no seguinte
enunciado: casos julgados e precedentes são formados para resolver casos
concretos e, no caso dos precedentes, eventualmente influenciam decisões
futuras; as súmulas, ao contrário são enunciados gerais e abstratos –
características presentes na lei – que são editados visando a solução de casos
futuros. No fundo, o caso paradigma é o que menos importa para a edição de uma
súmula” (STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 291).
62 Para estudo
das inconstitucionalidades do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas,
ver ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos. Inconstitucionalidades no incidente de
resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista
de Processo. n. 240. p. 221-242. São Paulo: Ed. RT, fev. 2015.
63 CPC/2015:
“Art. 927: Os juízes e os tribunais observarão: (…) III – os acórdãos em
incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas. §
1.º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, §
1.º, quando decidirem com fundamento neste artigo”.
64 GRECO,
Leonardo. Op. cit., p. 14.
65 CPC/2015:
“Art. 986: A revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo
tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no
art. 977, III”.
66 Como
explica Gadamer: “Fica claro que um enunciado jamais tem seu pleno conteúdo de
sentido a partir de si mesmo. Na lógica, essa questão ficou conhecida como o
problema da ocasionalidade. A característica especial das chamadas expressões
‘ocasionais’, recorrentes em todos os idiomas, é não conterem seu pleno sentido
em si mesmas, como ocorre com outras expressões. Quando digo, por exemplo,
‘aqui’, essa palavra não é compreensível para todos pelo simples fato de ser
pronunciada ou escrita. É preciso saber onde ocorreu ou onde ocorre. Para sua
própria significação, a palavra ‘aqui’ deve ser complementada pela ocasião, a occasio,
em que foi pronunciada” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Petrópolis:
Vozes, 2004, p. 230).
67 STRECK,
Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… Cit., p. 316.
68 Confira-se
a obra Georges Abboud e Lenio Streck. O que é isto: o precedente judicial e
as súmulas vinculantes, 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p.
42 et seq.
69 Confira-se
a obra em conjunta com Lenio Streck. O que é isto: o precedente judicial e
as súmulas vinculantes cit., p. 42 et seq.