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24 de abril de 2021

AÇÃO DE USUCAPIÃO. INTERESSE PROCESSUAL. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO PEDIDO NA VIA EXTRAJUDICIAL. DESCABIMENTO. EXEGESE DO ART. 216-A DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. RESSALVA EXPRESSA DA VIA JURISDICIONAL

RECURSO ESPECIAL Nº 1.824.133 - RJ (2018/0066379-3) 

RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INTERESSE PROCESSUAL. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO PEDIDO NA VIA EXTRAJUDICIAL. DESCABIMENTO. EXEGESE DO ART. 216-A DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. RESSALVA EXPRESSA DA VIA JURISDICIONAL. 

1. Controvérsia acerca da exigência de prévio pedido de usucapião na via extrajudicial para se evidenciar interesse processual no ajuizamento de ação com o mesmo objeto. 

2. Nos termos do art. 216-A da Lei 6.015/1973: "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo [...]". 

3. Existência de interesse jurídico no ajuizamento direto de ação de usucapião, independentemente de prévio pedido na via extrajudicial. 

4. Exegese do art. 216-A da Lei 6.015/1973, em âmbito doutrinário. 

5. Determinação de retorno dos autos ao juízo de origem para que prossiga a ação de usucapião. 

6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pela parte RECORRENTE: SELMA DA CUNHA 

Brasília, 11 de fevereiro de 2020(data do julgamento) 

RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por SELMA DA CUNHA em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado: 

Agravo Interno. Decisão monocrática que negou provimento à apelação cível. Usucapião Extraordinária. Pretensão de reconhecimento do domínio sobre o imóvel situado na Rua Professora Amélia Pinto Chagas, n.º 09, Santa Cruz, nesta cidade, sob o fundamento, em suma, de que preenche os requisitos legais para tanto. Sentença que julgou extinto o processo, ante a ausência de interesse de agir. Inconformismo da autora. De acordo com o artigo 216-A do Código de Processo Civil vigente, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o Cartório Imobiliário da Comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado. Aplicação do Enunciado 108 do Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça. A ação de usucapião é cabível somente quando houver óbice à pretensão na esfera extrajudicial. Manutenção do decisum que se impõe. Recurso ao qual se nega provimento. (fl. 176/7) 

Em suas razões, alega a parte recorrente violação do art. 216-A da Lei 6.015/1973 (incluído pelo art. 1.071 do CPC/2015), sob o argumento de que o procedimento extrajudicial de usucapião seria facultativo. 

Contrarrazões dispensadas, em face da não angularização da relação processual. 

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL absteve-se de opinar sobre o mérito recursal, alegando disponibilidade do direito em questão (fls. 218/22). 

É o relatório. 

VOTO 

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator): O recurso especial merece ser provido. 

A controvérsia diz respeito ao interesse processual para ajuizamento direto de ação de usucapião ante a recente ampliação das possibilidades de reconhecimento extrajudicial da usucapião. 

O reconhecimento extrajudicial da usucapião foi previsto, inicialmente, no art. 60 da Lei do Programa "Minha Casa, Minha Vida" (Lei 11.977/2009), com aplicação restrita ao contexto da regularização fundiária, conforme se verifica no teor enunciado do referido enunciado normativo, litteris: 

Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal. 

§ 1º Para requerer a conversão prevista no 'caput', o adquirente deverá apresentar: 

I - certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento que caracterizem oposição à posse do imóvel objeto de legitimação de posse; 

II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural; 

III – declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de sua família; e 

IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas. 

§ 2º. As certidões previstas no inciso I do § 1º serão relativas ao imóvel objeto de legitimação de posse e serão fornecidas pelo poder público. 

§ 3º. No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião. (atualmente revogado pela Lei 13.465/2017) 

Com o advento do CPC/2015, a usucapião extrajudicial passou a contar com uma norma geral, não ficando mais restrita apenas ao contexto de regularização fundiária. 

Refiro-me ao enunciado normativo do art. 216-A da Lei 6.015/1973 (incluído pelo art. 1.071 do CPC/2015 e alterado pela Lei 13.465/2017), abaixo transcrito: 

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel. § 1º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido. § 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância. § 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido. § 4º O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias. § 5º Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis. § 6º Transcorrido o prazo de que trata o § 4º deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5º deste artigo e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso. § 7º Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei. § 8º Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido. § 9º A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião. § 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. (sem grifos no original) 

Como se verifica já abertura do caput desse enunciado normativo, o procedimento extrajudicial de usucapião foi disciplinado "sem prejuízo da via jurisdicional". 

Apesar da aparente clareza desse enunciado normativo, o Tribunal de origem julgou a demanda com base no Enunciado nº 108 do Centro de Estudos e Debates - CEDES-RJ daquele sodalício, no sentido de que "a ação de usucapião é cabível somente quando houver óbice ao pedido na esfera extrajudicial". 

Sobre esse ponto, merece transcrição o trecho do acórdão referente à justificativa do referido enunciado do CEDES-RJ: 

A usucapião, como todo e qualquer processo, precisa preencher determinadas condições, dentre as quais o interesse processual, que é exatamente a necessidade de a parte buscar na via jurisdicional o que não poderia conseguir extrajudicialmente. Dessa forma, a usucapião que não encontre óbice ou empecilho em sede administrativa não tem acesso ao Poder Judiciário, exatamente como não tem, também, qualquer outro ato que possa ser praticado nos tabelionatos. (fl. 147/8) 

Apesar de esse enunciado apontar no sentido da desjudicialização de conflitos - uma louvável tendência dos dias atuais -, não é possível passar por cima do texto do enunciado do já aludido art. 216-A por se tratar de expressa ressalva quanto ao cabimento direto da via jurisdicional. 

Ademais, como a propriedade é um direito real, oponível erga omnes, o simples fato de o possuidor pretender se tornar proprietário já faz presumir a existência de conflito de interesses entre este o atual titular da propriedade, de modo que não seria possível afastar de antemão o interesse processual do possuidor, como parece sugerir o enunciado do Tribunal de origem. 

Nesse sentido de se reconhecer interesse processual no ajuizamento de ação de usucapião independentemente de prévio pedido da via extrajudicial, mencionem-se, em âmbito doutrinário, os abalizados entendimentos de CLAYTON MARANHÃO e DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, abaixo transcritos, respectivamente: 

Apesar da criação do procedimento de usucapião extrajudicial, o CPC/2015 não acabou com a ação de usucapião. Ainda que não tenha mantido o rito especial de usucapião, há diversas referências no código à ação de usucapião (conforme arts. 246, § 3.º,2 259, I,3 e 1.071, §§ 9.º e 10,4 do CPC/2015), de modo que, doravante, deverá ser intentada pelo procedimento comum. A par disso, o Enunciado 25 do Fórum Permanente de Processualistas Civis aponta que “a inexistência de procedimento judicial especial para a ação de usucapião e regulamentação da usucapião extrajudicial não implicam vedação da ação, que remanesce no sistema legal, para qual devem ser observadas as peculiaridades que lhe são próprias, especialmente a necessidade de citação dos confinantes e a ciência da União, do Estado, do Distrito Federal e do Município”. Assim, ao lado da ação judicial de usucapião passa a existir a possibilidade genérica de alteração na titularidade do imóvel em razão do reconhecimento extrajudicial da prescrição aquisitiva. Não é um dever da parte eleger a via administrativa, podendo optar pela ação judicial, ainda que preenchidos os requisitos da usucapião extrajudicial, “a via extrajudicial é uma faculdade, e não uma obrigação peremptória, o que confirma a tese antes defendida, de viabilidade de todas as ações de usucapião, agora pelo rito comum”. (Comentários ao Código de Processo Civil [livro eletrônico]: artigos. 1.045 ao 1.072. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016 - Comentários ao Código de Processo Civil; v. 17 / coordenação Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero, sem grifos no original) 

Seguindo a tendência do direito nacional de desjudicialização do direito, atribuindo-se as serventias notariais e registrais tarefas que antes dependiam obrigatoriamente da intervenção jurisdicional, o art. 1.071 do Novo CPC, ao criar o art. 216-A da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), passa a admitir a realização de usucapião extrajudicial. Não se tratar propriamente de uma novidade do sistema, já que o art. 60 da Lei 11.977/2009 (Lei do Programam Minha Casa, Minha vida), já prevê tal possibilidade, desde que preenchidos os requisitos legais. O art. 216-A da Lei 6.015/1973, entretanto, é mais amplo, porque sua púnica exigência é a concordância das partes. Registre-se que a novidade não cria um dever à parte que pretenda adquirir um bem por usucapião, que mesmo preenchidos os requisitos para o procedimento extrajudicial pode livremente optar pela propositura de ação judicial. Sendo a via extrajudicial a opção da parte, que deverá estar assistida de advogado, o procedimento tramitará obrigatoriamente perante a serventia imobiliária da situação do imóvel. (Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodvm, 2016, p. 1806, sem grifos no original) 

Na linha desses entendimentos, é de rigor a reforma do acórdão recorrido para se determinar o prosseguimento da ação de usucapião. 

Destarte, o recurso especial merece ser provido. 

Ante o exposto, voto no sentido de DAR PROVIMENTO ao recurso especial para determinar o prosseguimento da ação de usucapião. 

É o voto. 

12 de novembro de 2017

O PAPEL DA ATA NOTARIAL NO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE USUCAPIÃO; Revista de Direito Imobiliário, vol. 79, p. 125 - 154, Jul - Dez / 2015

O PAPEL DA ATA NOTARIAL NO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE USUCAPIÃO

Revista de Direito Imobiliário | vol. 79/2015 | p. 125 - 154 | Jul - Dez / 2015
DTR\2016\22
_____________________________________________________________________________________
José Lucas Rodrigues Olgado
Especialista em Direito Público pela Unopar.

Área do Direito: Imobiliário e Registral

Resumo: O presente artigo analisa a ata notarial prevista no inc. I do art. 216-A da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), com redação determinada pelo art. 1.071 do CPC/2015, destinada a fazer prova do tempo e circunstâncias da posse no procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião. Inicia-se por uma breve abordagem do instituto da usucapião, da posse e das recentes alterações legislativas, evoluindo para uma análise argumentativa dos requisitos e circunstâncias específicas da ata notarial para fins de usucapião extrajudicial, procurando formular questões e soluções para eventuais situações práticas que poderão surgir com a vigência da recente legislação processual.

Abstract: This article analyzes the notarial minute as laid down in item I of Article 216-A of Statute 6015/1973 (Public Records Act), with wording determined by Article 1071 of the New Civil Procedure Code, expressing proof of time and circumstances of possession in the extrajudicial recognition procedure. A brief overview of the practice of adverse possession, ownership and recent legislative changes is presented initially, developing into an argumentative analysis of the specific requirements and circumstances of the notarial minute for the purpose of extrajudicial adverse possession; questions are raised and solutions sought for practical situations which may arise from the recent procedural legislation in force.

Sumário:  
1INTRODUÇÃO - 2BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A USUCAPIÃO E SUAS MODALIDADES - 3CARACTERÍSTICAS DA POSSE AD USUCAPIONEM - 4DO PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA USUCAPIÃO - 5DA ATA NOTARIAL COMO REQUISITO ESSENCIAL DO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE USUCAPIÃO - 6CONSIDERAÇÕES FINAIS - 7REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1 INTRODUÇÃO

O Novo Código de Processo Civil Brasileiro, instituído pela Lei 13.105, de 16.03.2015, publicada no Diário Oficial da União em 17.03.2015, que entrará em vigor após decorrido 1 (um) ano da data de sua publicação oficial (art. 1.045), veio trazer profundas modificações na sistemática do processo civil, alterando institutos e mecanismos já existentes, criando outros novos que possibilitem a celeridade e eficácia da reposta jurisdicional, por ora retirando do Poder Judiciário incumbências que podem ser muito bem desenvolvidas por outros órgãos ou instituições.
Nesse contexto, objetivando concretizar a celeridade e a desjudicialização, o art. 1.071 do CPC/2015 implementou um mecanismo alternativo de reconhecimento da usucapião, importante instituto do Direito Civil reconhecido atualmente não só como uma das formas de aquisição da propriedade imobiliária, mas também, como importante ferramenta de concretização do direito social à moradia digna, na medida em que possibilita a regularização do domínio em situações que a legislação civil clássica não oferecia alternativas. O referido dispositivo acrescenta o art. 216-A da Lei 6.015, de 31.12.1973 (Lei de Registros Públicos), o qual contempla os seus requisitos em quatro incisos, e o procedimento perante o Oficial de Registro de Imóveis em dez parágrafos.
Trata-se de um mecanismo alternativo de realização voluntária de direitos, traduzido pela facultatividade da via extrajudicial, como meio de se reconhecer o domínio adquirido originariamente pela usucapião.
O art. 216-A da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) inaugura o instituto exigindo em seu primeiro inciso, uma ata notarial, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias. A natureza, espécie e requisitos dessa ata notarial é que serão objeto do presente estudo, com vistas a delimitar sua função e utilidade dentro do procedimento extrajudicial inovador criado pelo novo Código de Processo Civil, considerando que o texto não contemplou situações práticas que poderão surgir no dia a dia da atividade notarial e registral.
Para uma melhor compreensão do tema proposto, será analisada inicialmente a usucapião e suas modalidades, instituto de direito material, seguido de alguns aspectos relevantes da posse ad usucapionem ou usucapível, elemento indispensável ao reconhecimento da aquisição do domínio por este instituto. Em seguida, o estudo será dirigido brevemente sobre o novel procedimento de reconhecimento extrajudicial do domínio pela usucapião, revelando os requisitos e procedimentos legalmente previstos, para então, adentrarmos ao estudo da ata notarial e, mais especificamente, a ata notarial com finalidade específica de atestar o tempo da posse e suas circunstâncias, espécie que denominaremos de Ata Probatória de Posse.
Após essas considerações, sem a pretensão de esgotarmos o debate, seremos capazes de produzir algumas questões práticas, propondo, pelo presente estudo, soluções que acreditamos adequadas para cada uma dessas questões.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A USUCAPIÃO E SUAS MODALIDADES

Inicialmente, precisamos constar a existência de divergência relativa ao emprego do gênero do vocábulo usucapião e que optamos por utilizá-lo no feminino, acompanhando a opção do legislador no Código Civil de 2002 e maior parte da doutrina que floresceu a partir da sua vigência.
A usucapião é definida na doutrina como o "modo originário de aquisição da propriedade e outros direitos reais pela posse prolongada e qualificada por requisitos estabelecidos em lei".1
É uma forma de aquisição de bem móvel ou imóvel, pelo exercício da posse mansa e pacífica qualificada pelo animus domini que se traduz no comportamento do possuidor como sendo detentor do domínio, sendo chamada de posse ad usucapionem ou usucapível, por prazos especialmente previstos para cada uma das suas modalidades. Para fins do presente estudo, interessa-nos somente a usucapião de bens imóveis (ou usucapião imobiliária), considerando que o procedimento previsto no art. 216-A da Lei de Registros Públicos só pode ter por objeto o domínio ou outros direitos reais sobre bens imóveis.
O fundamento da usucapião "não é outro senão garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas, ou contestações a respeito".2
Com efeito, no conflito entre o interesse do proprietário inerte, desidioso, que não exerce os direitos e deveres decorrentes do domínio e o do possuidor que soma à sua posse o tempo, deve prevalecer o segundo como forma de pacificação das relações sociais e consolidação da situação de aparência. Ademais, o acolhimento do princípio da função social da propriedade exige, na ponderação dos interesses envolvidos, o reconhecimento da função social da posse, desequilibrando a balança para favorecer àquele que confere uma destinação social ao bem.
Assim, a usucapião além de continuar sendo uma das formas de aquisição da propriedade, passa a exercer a função de instrumento de regularização de situações de aquisições defeituosas da propriedade imobiliária, como por exemplo, a ocupação irregular de áreas, exercendo importante papel social de consolidação do direito à moradia.
De fato, Carvalho Santos já apontava o duplo objetivo da usucapião, como sendo o de: "a) garantir, contra a falta de direito do alienante, o adquirente, que, com justo título e boa-fé houvesse a coisa transferida; b) suprir a ausência de título ao possuidor de boa-fé, e sanar outros defeitos da aquisição".3
 Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald também apontam que este modelo jurídico é dúplice "representa um prêmio àquele que por um período significativo imprimiu ao bem uma aparente destinação de proprietário; mas também importam em sanção ao proprietário desidioso e inerte que não tutelou o seu direito em face da posse exercida por outrem".4
Ainda, sobre os objetivos da usucapião, Miguel Maria de Serpa Lopes acrescenta que "serve ela para transformar uma situação de fato, ou uma situação vacilante do ponto de vista jurídico, numa situação jurídica definida, certa e absoluta".5 Assim, não pode ser concebida única e simplesmente como forma de aquisição da propriedade pelo decurso do tempo, mas, quiçá, até mais importante, como instrumento de estabilização das relações sociais, uma instituição necessária para atender à justiça e à equidade.
Outra importante característica da usucapião é que ela se apresenta como modo originário de aquisição da propriedade, significando não haver vínculo de sucessão entre o atual proprietário e o anterior. "É modo originário de aquisição da propriedade, pois não há relação pessoal entre um precedente e um subsequente sujeito de direito. O direito do usucapiente não se funda sobre o direito do titular precedente, não constituindo este direito o pressuposto daquele, muito menos lhe determinando a existência, as qualidades e a extensão".6
Leciona Pontes de Miranda: "Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originalmente se adquirir; não, para se adquirir de alguém. É bem possível que o nôvo direito se tenha começado a formar, antes que o velho se extinguisse. Chega momento em que êsse não mais pode subsistir, suplantado por aquêle. Dá-se, então, impossibilidade de coexistência, e não sucessão, o nascer de um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade. Nenhuma relação, tão-pouco, entre o perdente do direito de propriedade e o usucapiente".7
Somente os bens suscetíveis de alienação é que podem ser usucapidos, afastando-se dessa possibilidade os bens públicos, qualquer que seja a sua natureza, estando essa vedação positivada no art. 102 do CC/2002, e 183, § 3.º e 191, parágrafo único, da CF/1988. Essa vedação atinge, inclusive, as terras devolutas, com exceção das terras devolutas rurais, "desde que o lapso quinquenal tenha transcorrido anteriormente à vigência da Constituição da República de 1988, pois desde a Constituição de 1934, passando pela Lei 6.969/1981, havia previsão para usucapião especial rural de terras devolutas".8
A usucapião imobiliária está dividida no ordenamento jurídico brasileiro em sete modalidades distintas, cada qual buscando atender a um interesse social específico, o que faz com que uma modalidade se diferencie das outras tão somente no que se refere aos seus requisitos, mantendo-se a mesma natureza jurídica do instituto, qual seja, modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais sobre imóveis pelo decurso do tempo. As modalidades são as seguintes:

2.1 Da usucapião extraordinária

A usucapião extraordinária está prevista no art. 1.238 do CC/2002, com a seguinte redação: "Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis".
Essa modalidade dispensa o justo título e a boa-fé, conceitos que analisaremos mais adiante no estudo da posse. Contenta-se o legislador com a simples existência do lapso temporal de quinze anos acompanhada da posse, considerada essa em seu sentido subjetivo, ou seja, com animus domini.
Essa modalidade apresenta maior utilidade, pois não exigindo a existência de título e nem mesmo a boa-fé, apresenta maior aptidão não só para adquirir a propriedade, mas também, como ensina Francisco Eduardo Loureiro, "para sanar vícios do domínio ou outros direitos reais adquiridos com vícios a título derivado".9

2.2 Da usucapião ordinária

Prevista no art. 1.242 do CC/2002, que apresenta a seguinte redação: "Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos". O parágrafo único, por sua vez, estabelece que: "Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico".
Nota-se que o artigo traz duas modalidades de usucapião ordinária, uma prevista no caput, a que a doutrina denomina usucapião ordinária regular ou comum,10 e outra prevista no parágrafo único, denominada usucapião ordinária por posse-trabalho. A primeira exige a posse mansa, pacífica e ininterrupta por 10 anos, justo título e boa-fé, compreendida esta em seu aspecto subjetivo. A segunda, reduz o prazo para cinco anos, exigindo, por outro lado, uma posse adjetivada não só pelo animus domini, mas também pelo estabelecimento de moradia ou realização de investimento de interesse social e econômico somados à existência de um justo título especial, que representa uma aquisição onerosa que, levada a registro, por algum vício ou irregularidade, foi posteriormente cancelado.
Essa modalidade do parágrafo único não se confunde à chamada usucapião tabular, prevista no § 5.º do art. 214 da Lei de Registros Públicos, estabelecendo que, em ação de reconhecimento de invalidade do registro, o juiz não decretará a nulidade se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições da usucapião do imóvel. A usucapião tabular, no entanto, não dá origem a uma modalidade diferente da que estamos tratando, mas sim a uma forma específica de se reconhecer a existência do domínio pela via de exceção em hipótese igualmente específica, ou seja, em ação que se pretenda a nulidade do registro com alegação de algum vício. É por isso que Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald 11 a tratam como convalescença registral pela via da usucapião ordinária.
Sobre esse assunto, informa Miguel Maria de Serpa Lopes que "A posse com justo título produz o usucapião denominado no Direito espanhol de usucapião tabular, consistente em aparecer registrado como titular de um direito uma pessoa que não é o seu titular verdadeiro. Sôbre esta base, mediante continuar figurando tal pessoa durante certo tempo como titular registral meramente aparente, adquire ela, por prescrição, o direito de que se trata".12 Portanto, verifica-se que o fundamento da usucapião tabular é proteger a situação aparente resultante do registro, impedindo o cancelamento inútil da inscrição viciada, em prestígio do domínio adquirido em razão da usucapião.

2.3 Da usucapião constitucional ou especial rural

A usucapião constitucional ou especial rural, também chamada de pro labore, conta com sua regulamentação no art. 191, caput, da CF/1988, art. 1.239 do CC/2002 e Lei 6.969/1981.
Para um breve conhecimento, a regra matriz constitucional prevê essa modalidade com a seguinte redação "Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade". Os dispositivos infraconstitucionais regulamentam da mesma forma, copiando a redação da regra-mãe.
Numa breve síntese, os requisitos são os seguintes: a) posse pelo prazo de cinco anos, especialmente adjetivada pelo uso para moradia somado ao trabalho, tornando-a produtiva (função social da posse); b) área não superior a 50 hectares, localizada no território rural; c) o beneficiário não pode ser proprietário de outro imóvel, seja ele rural ou urbano.

2.4 Da usucapião constitucional ou especial urbana

A usucapião constitucional ou especial urbana, também chamada de pro misero, encontra sua previsão no art. 183, caput, da CF/1988, art. 1.240 do CC/2002 e art. 9.º da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).
A redação do art. 183 da Lei Maior estabelece: "Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".
A legislação inferior também é simétrica à regra constitucional, acrescentando a Lei 10.257/2001 que: a) o título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil; b) a usucapião especial urbana não será conferida ao mesmo possuidor mais de uma vez; c) o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel na ocasião da abertura da sucessão.
Em apertada síntese, os requisitos para essa modalidade são os seguintes: a) posse pelo prazo de cinco anos, especialmente adjetivada pelo uso para moradia do usucapiente ou sua família; b) terreno com área não superior a 250 metros quadrados, localizada no território urbano; c) o beneficiário não pode ser proprietário de outro imóvel, seja ele rural ou urbano.

2.5 Da usucapião especial urbana coletiva

A usucapião especial urbana coletiva, que por vezes aparece na doutrina simplesmente como usucapião coletiva, está prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade, com a seguinte redação: "As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural". Trata-se de importante instrumento de regularização fundiária que prestigia a eficácia do princípio da função social da propriedade, pois possibilita a titulação de áreas ocupadas irregularmente, que de outro modo não seria possível.
São requisitos: a) posse pelo prazo de cinco anos, não se exigindo o requisito da boa-fé; b) imóvel urbano cuja área deverá ser superior a 250 metros quadrados; c) utilizado para fins de moradia por pessoas de baixa renda (conceito jurídico indeterminado que deverá ser preenchido pelo juiz diante de cada caso); e) impossibilidade de identificação, em concreto, da área ocupada por cada possuidor; f) o possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural.
O prazo de cinco anos não será contado de forma individualizada, considerando a posse de cada ocupante, mas sim o momento em que a área começou a ser ocupada. Entendimento contrário dificultaria sobremaneira o processo de usucapião, tendo em vista a constante alteração da titularidade da posse, o que tornaria letra morta o instituto, não atendendo ao espírito de facilitação que envolveu o legislador.
O reconhecimento da usucapião coletiva implicará na atribuição de fração ideal do terreno a cada um dos possuidores da área, independente da dimensão do terreno que cada um deles ocupe, podendo essa atribuição ser negociada em proporções diferentes por acordo escrito entre eles, como prevê o § 3.º do art. 10 do Estatuto da Cidade.
Com efeito, essa modalidade coletiva de usucapião, com o objetivo de regularizar assentamentos residenciais irregulares, tem por condão constituir um condomínio especial, gravado pelo ônus da indivisibilidade legal, não podendo ser extinto (o que implica também na impossibilidade de mudança de sua destinação), salvo por deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio (§ 4.º do art. 10 do Estatuto da Cidade).

2.6 Da usucapião especial familiar

A Lei 12.424, de 16.06.2011, incluiu importante inovação legislativa ao sistema, denominada pela doutrina usucapião especial familiar ou usucapião especial urbana por abandono do lar, inserida pela redação do art. 1.240-A do CC/2002, vejamos:
"Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1.º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez."
O Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil, dispõe:
"A modalidade de usucapião prevista no art. 1240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas."
São requisitos: a) prazo da posse por dois (2) anos, devendo ser direta e exclusiva; b) imóvel residencial urbano com área de até 250 metros quadrados; c) propriedade comum do usucapiente com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar; d) usucapiente não ser proprietário de outro bem imóvel urbano ou rural, podendo utilizar-se do benefício apenas uma única vez.
A regra tem nítido caráter assistencial, objetivando proteger o lar do ex-cônjuge que nele permaneceu com intuito de moradia, desde que não possua outro. O conceito de abandono do lar é de difícil aferição, o que demanda ação judicial que respeite o contraditório e a ampla defesa, visando a impedir que uma saída involuntária com fins de tratamento de saúde ou emprego em outra localidade, por exemplo, configure o abandono.

2.7 Da usucapião indígena

Essa última modalidade encontra sua previsão localizada no art. 33 da Lei 6.001/1973, com a seguinte redação: "O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena". O parágrafo único dispõe: "O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal".
Podemos extrair da norma os seguintes requisitos: a) área de no máximo 50 hectares; b) posse mansa e pacífica, por dez anos, exercida por indígena; c) área não pertencente à União, ocupadas por grupos tribais ou áreas reservadas ao grupo na forma do Estatuto do Índio.

3 CARACTERÍSTICAS DA POSSE AD USUCAPIONEM

Ao analisarmos as modalidades de usucapião, omitimos voluntariamente o estudo da posse, optando por estudá-la em item próprio, dadas as especificidades desse instituto e a exigência de seu domínio pelo tabelião para o êxito na confecção da ata notarial prevista no inc. I do art. 216-A da Lei de Registros Públicos.
Portanto, cumpre-nos neste momento, fixar a diferença entre a posse geradora dos interditos (ad interdicta) e a posse usucapível (ad usucapionem), tema que faz parte da classificação da posse.
A posse ad interdicta, conformando-se à teoria objetiva de Ihering, é aquela que se contenta com o poder de fato sobre a coisa (corpus), conferindo ao seu titular o exercício dos interditos possessórios. Nesse sentido, "toda posse é ad interdicta, porque confere ao seu titular a prerrogativa de defender-se dos ataques injustos de terceiros, inclusive do proprietário".13
A posse ad usucapionem, associada à teoria subjetiva de Savigny, não se contenta com o poder físico sobre a coisa, exigindo um elemento subjetivo do agente (animus), a intenção de ser dono. É aquela que admite a aquisição da propriedade, exigindo qualificativos adicionais, ou seja, a posse usucapível apresenta um caráter mais rigoroso em relação à posse ad interdicta.
Os requisitos básicos da posse geradora da usucapião são os seguintes:
a)         Animus domini - o animus é o elemento subjetivo da posse, divergindo seu conceito e conteúdo conforme a teoria adotada. Para Savigny, desenvolvedor da teoria subjetiva da posse, o animus é definido como "a intenção de ter a coisa como sua".14 Para Ihering, criador da teoria objetiva, o animus não é mera intenção, mas comportamento, o de quem age como dono. Portanto, quando falamos que a posse usucapível exige como primeiro requisito o animus domini, estamos afirmando que o requerente da usucapião deverá demonstrar que, durante o prazo exigido conforme a modalidade que se pretende, comportou-se ele como verdadeiro proprietário da coisa, excluindo absolutamente os poderes dominiais de seu antecessor. Como exemplos standarts de comportamento dominial, encontramos na jurisprudência: o pagamento dos tributos incidentes sobre a coisa, a locação do imóvel, recebimento dos aluguéis e eventual ação de despejo como demanda própria, a realização de obras ou plantações em nome próprio, depoimento de testemunhas, recebimento de indenização por desapropriação parcial, pagamento de despesas condominiais, entre outros.
b)         Posse contínua e duradoura - é a posse sem interrupção, pelo prazo legalmente exigido conforme a modalidade que se pleiteia. A interrupção da posse implica na recontagem do prazo a partir do termo inicial. Permite-se que o requerente junte período anterior somando à sua posse a de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas e pacíficas, conforme art. 1.243 do CC/2002.
c)         Posse mansa e pacífica - é aquela que não sofreu oposição, seja real ou civil. Nos dizeres de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, oposição real é aquela que decorre normalmente da força, como por exemplo, a tomada da coisa das mãos do possuidor; a oposição civil, por sua vez, diz respeito às providências judiciais adotadas pelo proprietário, no intuito de paralisar o curso da usucapião.15
Alguns doutrinadores arrolam ainda entre os requisitos, a posse justa, que é aquela sem violência, clandestinidade ou precariedade (art. 1.200 do CC/2002), ou seja, a inexistência de aspectos de ilicitude ligados à origem da posse. Todavia, parte da doutrina moderna entende que a posse injusta por vício de violência ou clandestinidade pode gerar a usucapião, fundamentando no fato de que, enquanto exercidos os atos de violência ou clandestinidade não existe posse, mas mera detenção. Nesse sentido ensina Francisco Eduardo Loureiro que ao cessarem esses atos, nasce a posse, porém viciada pela sua origem ilícita. Permanecendo inerte o esbulhado, não se opondo ao possuidor injusto, sofrerá ele os efeitos do prazo da usucapião a partir do momento da cessação daqueles atos ilícitos. No caso do vício da precariedade, porém, não se admite de forma alguma a usucapião por faltar ao possuidor o animus domini.16
Um aspecto ainda interessante a ser estudado, é a característica da boa-fé da posse, exigida na usucapião ordinária. A boa-fé aqui é tratada no sentido subjetivo, ou seja, no desconhecimento, pelo usucapiente, do vício que informa sua posse. No dizer de Washington de Barros Monteiro, "é a certeza de seu direito, a confiança inabalável no próprio título, sem vacilações, sem possibilidade de temperamentos ou de meio-termo".17
Nosso legislador tratou do conceito da boa-fé da posse como sendo aquela em que o possuidor ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa (art. 1.201 do CC/2002). Acrescenta ao dispositivo que o possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite essa presunção (parágrafo único).
Como elemento moral que dignifica o usucapiente,18 a boa-fé exige a ausência do dolo na usurpação ou lesão à posse de outrem,19 elemento ético necessário às relações jurídicas negociais, o que justifica a presunção legal prevista no parágrafo único do art. 1.201 do CC/2002. Assim, o título tem a função de sugerir aparente legalidade à aquisição da posse, o que pode induzir ao desconhecimento do vício por parte de quem a adquire, confiante na aparência de certeza do direito que o título ostenta. Como afirma Miguel Maria de Serpa Lopes, 20 "ninguém pode se dizer possuidor de boa-fé, sem estar amparado por uma causa jurídica, a qual, na quase totalidade das vêzes, consiste no título legítimo".
Destarte, a noção de justo título se mostra também merecedora de um breve estudo, cumprindo não perder de vista que as noções aqui apresentadas deverão ser observadas com extremo cuidado na produção da ata notarial destinada a atestar a posse e suas circunstâncias para fins de usucapião extrajudicial.
Assim, título "é o elemento representativo da causa ou fundamento jurídico de um direito. Para o efeito da posse, a noção de título corresponde aos seus respectivos modos aquisitivos, em virtude do que por justo título entende-se aquêle que é causa jurídica legítima de uma aquisição da posse".21 Pode ser um ato jurídico extrajudicial ou judicial, podendo se apresentar na forma de uma escritura pública de compra e venda, uma doação, uma dação em pagamento, um compromisso particular de compra e venda, uma proposta de compra com recibo de pagamento, um formal de partilha, uma carta de arrematação, entre outros.
Justo título e boa-fé são exigências ou requisitos da usucapião ordinária, que a diferenciam da usucapião extraordinária, pois nesta, além de um prazo maior, dispensa-se o justo título.
Como interpretam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald 22 no atual Código Civil, a concepção de justo título se mostra bipartida, recebendo duplo significado: a) numa acepção ampla, significa a existência de justo motivo que autoriza a aquisição da posse; b) restritivamente, apresenta-se como um título apto, em tese, para transferir a propriedade e outros direitos reais usucapíveis.23 Além disso, temos ainda o justo título da usucapião ordinária, prevista no parágrafo único do art. 1.242 do CC/2002, com características mais específicas, exigindo o registro na matrícula do imóvel, porém cancelado posteriormente em razão de algum vício do título ou do próprio processo de registro.
Finalmente, o derradeiro aspecto a ser analisado a respeito da posse usucapível, diz respeito à união das posses, conhecida na doutrina como accessio temporis. O art. 1.207 do CC/2002, que trata do tema, apresenta a seguinte redação: "O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais".
Por ato inter vivos a posse pode ser adquirida, a título singular. Assim, na hipótese de o adquirente não contar com o prazo suficiente para a aquisição pela usucapião, poderá somar à sua posse a de seu antecessor, devendo, obrigatoriamente, fazer prova dessa em todas as suas condições. "Essa faculdade de união não fica restrita ao antecessor imediato, podendo alcançar todos os antecessores mediatos".24
A sucessão universal está prevista no art. 1.206 do CC/2002, recebendo da doutrina a designação de cogente, pois o sucessor a título universal continua a posse de seu antecessor compulsoriamente, com os mesmos caracteres, unificando-se as posses automaticamente. O legatário, muito embora suceda a título particular, por força do artigo em comento, também é obrigado a unificar a sua posse à de seu sucessor.
Concluídas essas análises fundamentais para a compreensão dos aspectos relevantes da posse a serem cuidadosamente considerados na produção da prova especial por meio da ata notarial, estamos preparados para a incursão no estudo do recente instituto da usucapião extrajudicial, sobre o qual faremos uma rápida passagem para então adentrarmos ao estudo da ata notarial exigida por esse procedimento.

4 DO PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA USUCAPIÃO

O procedimento de reconhecimento extrajudicial da usucapião, que se revela por meio da incipiente doutrina pela expressão "usucapião extrajudicial" ou "usucapião administrativa", nasce a partir da publicação da Lei 13.105, de 16.03.2015,25 que instituiu o novo Código de Processo Civil Brasileiro, o qual entrará em vigor em 17.03.2015. O art. 1.071 do novo diploma processual acrescentou o art. 216-A da Lei de Registros Públicos, que traz a seguinte redação:
"Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;
II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;
III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;
IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel;
§ 1.º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido.
§ 2.º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância.
§ 3.º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido.
§ 4.º O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias.
§ 5.º Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis.
§ 6.º Transcorrido o prazo de que trata o § 4º deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5º deste artigo e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso.
§ 7.º Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei.
§ 8.º Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido.
§ 9.º A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião.
§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum."
Sem prejuízo à necessária fidelidade ao tema proposto, ou seja, o estudo dos caracteres da ata notarial prevista no inc. I, necessário será, porém, fazermos algumas pequenas considerações sobre o procedimento administrativo em questão.
A primeira observação que desejamos registrar diz respeito ao designativo "Usucapião Extrajudicial", indicativo utilizado de forma generalizada pelos noticiadores da novidade legislativa que, entretanto, não nos parece ser a melhor expressão técnica, considerando não se tratar de nova modalidade de usucapião, mas sim de procedimento alternativo do reconhecimento do domínio e que caminha ao lado do processo judicial, como nova opção procedimental.
A ideia de aceitação de um termo nominativo pelo uso corrente doutrinário pode não parecer a melhor opção, pois o ato de conceituar envolve a busca pela melhor definição da natureza e características do objeto, buscando diferenciá-lo dos demais que possam com ele se confundir. Assim, utilizar a expressão "usucapião extrajudicial" poderia sugerir a existência de uma nova modalidade desta especial forma de aquisição da propriedade, ao lado da usucapião extraordinária, ordinária e especiais.
Poderia ser argumentado que a expressão "usucapião extrajudicial" é adotada para diferenciá-la da "usucapião judicial". No entanto, o instituto da usucapião é um só e de natureza material. Não é a usucapião que é judicial ou extrajudicial, mas sim o meio utilizado para o seu reconhecimento. Destarte, o designativo "procedimento extrajudicial de usucapião" parece ser de melhor técnica jurídica, conclusão essa que extraímos da definição utilizada pelo próprio legislador ao redigir o caput do art. 216-A.
A segunda observação que acreditamos merecer divulgação no presente estudo diz respeito ao requisito do inc. IV, que exige "o justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel", redundando no objeto de prova da ata notarial prevista no inc. I do mesmo art. 216-A, parecendo aquele ser requisito deste do que do próprio procedimento em si.
Veremos mais adiante que ao registrador de imóveis falece a atribuição de "autenticar fatos", sendo esta atribuição exclusiva do tabelião de notas, consoante disposição prevista no inc. III do art. 6.º da Lei 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores). O legislador do Código de Processo Civil andou em simetria com o sistema já erigido, o que é raro observar em momentos de grande produção legislativa como vivemos atualmente, mantendo, portanto, a harmonia com as atribuições notariais já manifestadas pela Lei dos Notários e Registradores.
Por fim, outro aspecto que tem merecido bastante discussão e até críticas por aqueles que já analisaram o instituto, diz respeito à "anuência expressa" exigida no § 2.º. De fato, a solução legislativa para as hipóteses de ausência de manifestação dos eventuais titulares de direitos reais previstos na matrícula do imóvel usucapiendo e dos confinantes, vem na contramão dos valores de celeridade e eficiência que informaram a produção do novo código. Aliás, solução diversa já havia sido contemplada pela Lei 10.931, de 02.08.2004, ao determinar nova redação ao art. 213 da Lei de Registros Públicos, prevendo a retificação administrativa de registro, onde a ausência de impugnação presume a anuência.
Muito embora possa se alegar que a transmissão do domínio é muito mais grave que a correção e definição de divisas, o procedimento de usucapião não está imune aos mecanismos judiciais de reconhecimento de sua invalidade quando presente algum dos defeitos do negócio jurídico. A segurança jurídica não estaria prejudicada se fosse admitida solução diversa, ao prever o legislador a aceitação presumida caso não houvesse manifestação após regular notificação pessoal.
Aliás, a presunção da discordância é que não parece estar em harmonia com os valores de eticidade, socialidade e operabilidade que informam o Código Civil de 2002. Consoante esses valores, a discordância deve ser expressa e fundamentada, pois se for vazia, sem motivos, configurará o abuso de direito previsto no art. 187 do CC/2002. Assim, nada mais justo que, aquele que discordar do exercício de um direito, tenha o ônus de apresentar seus fundamentos. Admitir o contrário possibilita ao proprietário desidioso e eventuais vizinhos contendedores, impedirem o livre exercício de um direito potestativo, legitimando a situação de abuso de direito.
Ora, o sistema não pode ser contraditório, inibindo pelo direito material o abuso de direito e, por meio da regra processual, possibilitando a sua existência. A coerência deve ser restabelecida, reconhecendo-se que a norma procedimental existe para proporcionar a eficácia da norma material em situações em que esta não seja voluntariamente reconhecida pelos sujeitos. A melhor opção, portanto, seria o legislador ter adotado a regra da discordância fundamentada (não necessariamente discordância procedente). No entanto, a regra escolhida foi outra e o direito positivo contempla o impedimento da via extrajudicial pela simples inércia do titular de algum direito real ou outro direito previsto na matrícula do imóvel usucapiendo ou dos imóveis confinantes.
Por fim, cabe ressaltar que o novel caput do art. 216-A da Lei de Registros Públicos exige a capacidade postulatória do requerente perante o Oficial de Registro de Imóveis, devendo estar representado por advogado que poderá se apresentar com procuração pública ou particular, dependendo do caso, conforme mais adiante se verá.

5 DA ATA NOTARIAL COMO REQUISITO ESSENCIAL DO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE USUCAPIÃO

Como já analisado, o inc. I do art. 216-A da Lei de Registros Públicos inaugura o rol de documentos que devem ser anexados ao pedido feito perante o Oficial de Registro de Imóveis da circunscrição imobiliária em que localizado o imóvel usucapiendo, exigindo ata notarial que ateste o tempo da posse do requerente e seus antecessores (se presente a accessio temporis), bem como suas circunstâncias.
Observa-se de início, que a ata notarial está prevista no novo Código de Processo Civil, como meio de prova de qualquer fato jurídico, conforme art. 384 e seu parágrafo único com a seguinte redação:
"Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.
Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial."
Trata-se de um meio de prova extrajudicial, antecipatório e que produz eficácia acautelatória de preservação de direitos, cuja utilidade é extremamente necessária em um mundo em que os fatos e eventos são voláteis, surgindo, modificando e desaparecendo com rapidez, decorrência da atual era da informação. Nesse sentido, perspicaz a observação de Natalio Pedro Etchegaray ao afirmar que "al acta se debe considerar como prueba prejudicial, que se produce en sede notarial por el peligro en la demora, ya que sería ilusorio esperar que las situaciones de hecho que em ese momento se están registrando, se repitieran em el momento de acreditarlas ante el juez".26
Sobre o conceito, elucidativo o magistério de Leonardo Brandelli ao definir a ata notarial como "o instrumento público através do qual o notário capta, por seus sentidos, uma determinada situação, um determinado fato, e o translada para seus livros de notas ou para outro documento. É a apreensão de um ato ou fato, pelo notário, e a transcrição dessa percepção em documento próprio".27
Na doutrina internacional, Rufino Larraud, distinguindo a ata notarial da escritura pública, conceitua a primeira como "aquel instrumento matriz autorizado por el escribano fuera de su protocolo para consignar circunstanciadamente y bajo su fé um hecho cualquiera a un acto no constitutivo de otorgamiento, que presencia".28
Nota-se assim que, enquanto as escrituras públicas têm por principal conteúdo uma manifestação de vontade consistente na outorga de direitos ou assunção de obrigações, as atas notariais apresentam a descrição de um ato ou fato qualquer circunstanciadamente narrado sob a fé pública do tabelião.29 A ata, por sua natureza, é fruto da técnica de redação autenticadora de fatos constatados pela atividade humana de "ver e ouvir; não entrando a fundo no assunto, adaptando-o ao direito somente na forma".30
Muito embora o texto normativo previsto no art. 384 do CPC/2015 indique como objeto da ata notarial um fato, é possível que alguns atos humanos, caracterizados pela ausência de manifestação de vontade, possam ser igualmente verificados e narrados com a certificação notarial. É o que conclui Leonardo Brandelli em percuciente estudo ao afirmar que "não pode haver na ata notarial a narração de vontade humana, ou, em havendo, não pode a declaração de vontade estar endereçada ao tabelião e destinada a concretizar o suporte fáctico abstrato descrito na norma jurídica, isto é, não pode tal declaração de vontade destinar-se a celebrar, pelo instrumento público notarial, um ato jurídico; o notário pode, entretanto, ser um mero observador daquelas vontades, não as recepcionando".31
A ata notarial, portanto, insere-se em uma das funções essenciais da atividade notarial, a de autenticar fatos, cuja previsão já se encontrava positivada no inc. III do art. 6.º da Lei dos Notários e Registradores. Conforme ainda, Leonardo Brandelli, sua eficácia é eminentemente probatória, perpetuando no tempo os atos e fatos descritos pelo notário.32
Pedro Ávila Álvarez, afirma que "a ata notarial não é exaustiva, porquanto o ato ou fato nela consubstanciado pode ser provado por qualquer outro meio de prova admitido em direito".33 No entanto, enquanto requisito para a demonstração do tempo da posse e suas circunstâncias, entendemos ser imprescindível a juntada da ata com o requerimento que inaugura o procedimento extrajudicial da usucapião. Essa exigência está apoiada na seguinte razão: a posse, enquanto fato reconhecido pelo direito, deve ser aferida no mundo natural, no mundo dos acontecimentos. A atividade de atestação de um evento, seja natural ou humano, é função tipicamente notarial. A atividade registral consiste na qualificação dos títulos exibidos, confrontando-os com a malha fina dos princípios registrais que controlam a disponibilidade (entendida esta em seu sentido amplo como qualquer potencialidade de criação, mutação, transmissão ou extinção de algum direito relacionado ao imóvel).
A qualificação registrária não significa, no dizer do eminente desembargador Ricardo Dip, um simples exame, mas "um juízo conclusivo da argumentação prudencial do registrador, na medida em que inclui o império, ato último da prudência".34 Ainda sobre essa sublime atividade, afirma o prestigiado autor "(...) é preciso distinguir, a análise predominantemente gnosiológica da qualificação (em que prevalece o interesse no exame das premissas) da consideração de sua finalidade, que é a de determinar o registro ou a de recusá-lo (quando os sistemas o permitam: o de suspendê-lo, condicioná-lo)".35
Essas referências afastam da qualificação registrária a função de atestar fatos. A verdadeira vocação da qualificação está em conhecer o direito preexistente e o título consequente ou decorrente, em aspectos formais e materiais, apresentando, portanto, uma "natureza intelectiva" com um consequente e necessário "juízo concludente".36
Assim, a ata notarial em conjunto com os demais documentos exigidos no rol dos quatro incisos do art. 216-A da Lei de Registros Públicos compõem o título, único e capaz, de potencialmente alterar a realidade jurídico-real correspondente à titularidade do imóvel usucapiendo. É dizer: o título é demonstrativo da verdade natural, potencialmente capaz de alterar a verdade registral. A demonstração dessa verdade natural é função do notário. O reconhecimento da potencialidade registral do título e do fato é que delineia a função do registrador imobiliário.
Portanto, a previsão da ata notarial probatória da posse é requisito necessário e indispensável ao reconhecimento extrajudicial da usucapião, fazendo parte do "título" em sentido formal, condutor do direito demonstrativo da aquisição do domínio pela reunião dos requisitos fáticos e subjetivos previstos na lei.
Um aspecto que merece meditação mais acurada, diz respeito à aparente redundância de objetivos da ata notarial que estamos analisando com os documentos exigidos no inc. IV: "justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel".
De fato, a ata notarial elaborada em atenção ao inc. I do art. 216-A da Lei de Registros Públicos deve dedicar-se ao seu objetivo, qual seja: constatar o tempo da posse do requerente (e seus antecessores), bem como suas circunstâncias. Qual então a vantagem desse documento, se o rol de provas verificadas pelo notário deve ser repetido perante o Oficial de Registro de Imóveis?
A essa altura de nossas indagações, seria supérfluo afirmar que a repetição se faz necessária em homenagem ao princípio da segurança jurídica. A fé pública notarial não é menor que a fé pública registral. De outra, já foi afirmado que foge da atribuição registral a função de verificar e atestar a existência de fatos e atos jurídicos.
Nessa linha de considerações, concluímos que a interpretação do inc. IV deve ser realizada em conjunto com a possibilidade de diligências complementares prevista no § 5.º do art. 216-A da Lei de Registros Públicos. Ou seja, se a ata notarial não for contemporânea ao pedido formulado perante o registro de imóveis, não significa que ela deverá ser atualizada por meio de uma nova diligência, o que tornaria o procedimento mais oneroso ao requerente. Basta o advogado reunir, voluntariamente ou por exigência do registro imobiliário, provas complementares que demonstrem a manutenção das qualidades e circunstâncias da posse atestada no documento notarial.
Portanto, é dispensável a reapresentação, ao registro de imóveis, dos documentos que embasaram a ata notarial, repetição que se opõe à celeridade e simplicidade almejadas pelo avanço processual do novo Código de Processo Civil, bem como em desprestígio à fé pública notarial. A única interpretação, portanto, ao inc. IV, é que ele possibilita a apresentação de provas complementares que demonstrem a manutenção dos fatos constatados pela ata notarial. No entanto, em ocorrendo alterações substanciais na titularidade ou qualidade da posse, entende-se que a confecção de nova ata se torna imprescindível.
A ata notarial poderá ser requerida pelo próprio possuidor, bem como por seu advogado. Não há necessidade de o requerimento da ata ser formulado pelo advogado, haja vista que a capacidade postulatória só é exigida para o pedido de solicitação do procedimento perante o registro de imóveis. Havendo composse, entendemos que qualquer possuidor poderá requerer a ata, que produzirá efeitos em relação aos demais compossuidores, não havendo necessidade de que seja feito requerimento conjunto por todos eles em participação necessária, nem que seja lavrada uma ata para cada um dos compossuidores.
Na hipótese da ata notarial ser requerida por advogado, representando os interesses de seu cliente, deverá apresentar procuração com poderes expressos e especiais para essa finalidade, obedecendo à forma pública em atenção ao disposto no art. 657 do CC/2002. Nada impede, porém, que o possuidor compareça como requerente assistido por seu advogado, o que dispensará a procuração por não haver representação, mas mera assistência jurídica. Não poderá, nessa hipótese, ser aproveitado o instrumento para a nomeação do mandatário, pois as atas notariais não podem conter manifestações de vontade. Assim, desejando-se fazer a nomeação de procurador, deverá ser confeccionado instrumento apartado, que se formalizará por meio da procuração.
Excepcionalmente, não se aplica o princípio da liberdade de escolha do tabelião previsto no art. 8.º da Lei dos Notários e Registradores ou aplica-se mitigadamente em relação, tão somente, aos notários com atribuições na mesma comarca. Isso porque, entendemos que a ata comprobatória de posse para a usucapião deve ser realizada com necessária diligência ao imóvel, pois deverá descrever suas características naturais, a fim de serem confrontadas com os documentos técnicos visando à identificação daquilo que foi constatado pelo tabelião com a descrição constante da planta e memorial. Prepondera, portanto, o impedimento previsto no art. 9.º, também da Lei dos Notários e Registradores, ficando proibido ao tabelião praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu a delegação, excepcionando-se a hipótese em que o imóvel vistoriado abranja mais de uma comarca, caso em que qualquer tabelião das comarcas limítrofes poderá iniciar a diligência na parcela do imóvel localizado em seu território, estendendo-se à comarca vizinha para conclusão, não sendo razoável a exigência de duas atas notariais distintas.
A ata notarial tem objetivos jurídicos, portanto, deve ser redigida em linguagem jurídica, observando a clareza e objetividade necessárias a qualquer documento notarial, descrevendo o imóvel com suas características naturais, já que os elementos técnicos deverão estar contidos na planta e memorial descritivo elaborados e assinados por responsável da área. A ata, não visa, portanto, demarcar as medidas, dimensões, divisas e demais características técnicas do imóvel, pois para isso a lei exige, no inc. II, "planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes".
A narrativa deve caracterizar, por exemplo, a localização do imóvel com seu logradouro, número de emplacamento municipal, se o prédio é residencial, comercial ou misto, se localizado em perímetro urbano ou rural do município, acessões e benfeitorias existentes etc.
Não vislumbramos a necessidade de o tabelião estar munido de plantas e memoriais descritivos para confeccionar a ata, pois, como já mencionado aqui, o objetivo da ata é um e o dos documentos técnicos é outro. Salutar até que não se utilize desses documentos, pois pode ser induzido a reconhecer alguma característica técnica não nitidamente constatável na diligência. Os trabalhos técnicos, porém, deverão estar em conformação com a ata notarial, queremos dizer, não pode, por exemplo, a ata notarial afirmar a posse sobre uma casa e a planta e memorial descrever apenas um terreno.
Lembramos que a ata notarial tem por objetivo formar a convicção do registrador imobiliário sobre o objeto da posse, sua titularidade, tempo e circunstâncias. Não é a descrição da ata que prevalecerá na abertura da matrícula do imóvel, pois essa deverá conter os elementos técnicos obtidos da planta e memorial, sob responsabilidade do profissional que os assina. Entretanto, o conjunto do material apresentado com o pedido da usucapião deve guardar coerência, ou seja, deverá ser possível identificar que a ata (que trata do direito) e os documentos técnicos (que tratam da especialização), estejam se referindo ao mesmo objeto.
É possível, ainda, que o interessado solicite que a ata seja realizada com o acompanhamento do profissional responsável e, nessa hipótese, ela narrará a descrição técnica do imóvel, sob responsabilidade do profissional que será necessariamente identificado e assinará com o requerente o livro notarial. A ata elaborada nesse formato dispensará a confecção do memorial descritivo em documento separado, já que ela própria servirá com esse objetivo. Não aconselhamos, contudo, essa forma de atuação, pois, no momento da qualificação do título no registro de imóveis, o cartório poderá encontrar alguma falha na descrição do memorial, o que implicará na confecção de nova ata retificadora, encarecendo o procedimento.
Respeitada a liberdade que deve permear a atuação de cada notário e registrador, bem como as circunstâncias especiais de cada caso, sugerimos que a ata notarial seja composta de três capítulos: a) do imóvel; b) da posse e suas circunstâncias; c) do arquivamento dos documentos. É o que passaremos a analisar.

5.1 Constatação do objeto da usucapião

No capítulo "do imóvel", deverá constar a narração com as descrições objetivas do imóvel usucapiendo. O requerente da ata é o responsável em indicar qual imóvel deseja usucapir, arcando com custos de locomoção e diligência para a confecção da ata, observada a lei de emolumentos de cada Estado. Esse capítulo deve mencionar a localização do imóvel, se na zona rural ou urbana, não precisando atender aos rigorosos limites da lei municipal de zoneamento, o que pode ser de difícil constatação no momento da diligência, mas, sim, considerar a aparência do local, se urbanizado ou não.
Sendo área urbanizada, existente via pública, indicar o logradouro e se o imóvel está localizado do lado par ou ímpar da via. Havendo construção, o número do emplacamento municipal, características do imóvel, cores, tipo, utilização se residencial, comercial ou rural, medida aproximada da testada do terreno e distância, também aproximada, da esquina mais próxima. Indicar os imóveis com os quais faz divisas pelas laterais e nos fundos, indicando as medidas em sendo possível aferi-las. As medidas não precisam ser exatas com as que se apresentarem na planta ou memorial, pois suas indicações servem tão somente para que o registrador imobiliário conclua tratar-se do mesmo imóvel indicado na planta e memorial, de onde extrairá os elementos técnicos para a abertura da matrícula, após qualificação positiva decorrente de seu prudente critério.
Tratando-se de imóvel rural, indicar a possível localização no Município, com suas características como: tratar-se de pastagem ou plantações, se está sendo utilizado ou não, a existência de acessões e benfeitorias, características das divisas, denominação constante no local, existência de matas, correntes de água, açudes etc. Geralmente, em imóveis rurais, será difícil o notário aferir suas medidas, o que pode ser dispensado, desde que existam na ata elementos que façam concluir se tratar do mesmo imóvel constante da planta e memorial descritivo.
É possível, ainda, que a ata notarial seja composta de fotografias extraídas pelo notário e impressas no próprio instrumento como complemento visual do objeto da posse. As imagens são de importante utilidade na documentação, mormente em hipóteses de imóveis rurais, onde a capacidade sensorial do notário pode não ser suficiente para a exata demonstração do que se trata.
Estando matriculado o imóvel, importante que o notário ateste se as características aferidas no local coincidem com elementos descritivos da matrícula. Pode ser que a diligência notarial constate parte da descrição matriculada, em razão de desapropriação ou usucapião parcial ou invasão por terceiros. Nestas situações, o notário deve tomar cuidado para não atestar a posse sobre a área desapropriada, usucapida ou invadida.
Quanto ao objeto, portanto, a ata notarial deve ser fruto das constatações sensoriais do notário que a realiza, podendo a sua análise visual ser complementada por fotografias. Não se trata, portanto, de um levantamento técnico do perímetro e área do imóvel, atribuições de outro profissional.
Ainda, no que diz respeito ao imóvel usucapiendo, o notário, antes de iniciar a diligência, deve ter em mente a pretensão do requerente, qual modalidade de usucapião ele pleiteará pelo procedimento extrajudicial. Isso porque, ele deverá dar ênfase à atestação da existência dos elementos circunstanciais exigidos por cada uma das modalidades brevemente apresentadas neste trabalho.
Assim, na usucapião especial urbana, por exemplo, é essencial que a ata notarial constate a localização do imóvel em área urbanizada do Município e a sua utilização para moradia. Na rural, a localização do imóvel em área não urbanizada e/ou sua utilização agrícola, pecuária ou agropastoril. Na redução do prazo da usucapião extraordinária (parágrafo único do art. 1.238 do CC/2002), essencial que a ata relate a constatação da afetação do imóvel à moradia do requerente ou descreva as obras ou serviços atribuídos por ele como sendo de caráter produtivo.
Aliás, interessante questão que surge, nesse último exemplo, diz respeito exatamente à constatação do requisito essencial autorizador da redução do prazo da usucapião extraordinária: "obras e serviços de caráter produtivo". É cediço na doutrina, que a ata notarial não pode conter juízos de valor emitidos pelo notário. A ata deve descrever os fatos presenciados pelo tabelião, sem qualquer atribuição de adjetivos decorrentes da sua valoração subjetiva. Assim, como atestar o caráter produtivo (ou não) de uma propriedade?
A expressão "caráter produtivo" configura típico exemplo do que a doutrina denomina de "conceito jurídico indeterminado", devendo o aplicador do direito preencher o conteúdo desse conceito diante de cada situação concreta. A verificação do preenchimento desse requisito é análise que cabe à qualificação registrária. A ata notarial se limitará a descrever a existência de obras e serviços, que são constatações meramente objetivas, as quais serão indicadas pelo requerente sob sua declaração e responsabilidade. Assim, cabe ao requerente, por si ou por meio de seu advogado, indicar o que entende por "obras ou serviços de caráter produtivo", sendo a ata, nesse particular, um misto de declaração e diligência: atesta a declaração da parte e a existência dos fatos indicados. O mesmo se diz sobre a expressão "investimentos de interesse social e econômico" prevista no parágrafo único do art. 1.242 do CC/2002.
Portanto, entendemos ser perfeitamente possível ao Oficial de Registro de Imóveis, na qualificação de títulos apontados em seu protocolo, preencher conceitos jurídicos indeterminados por meio de seus critérios de prudência e razoabilidade, observados sempre os parâmetros utilizados pelo Poder Judiciário em decisões paradigmas dos tribunais superiores. Isso porque a qualificação registrária não é um simples exame, mas um juízo próprio da razão prática, que nas palavras de Ricardo Dip, "inclui o império que é próprio da prudência [...] diz respeito ao quale (a qualidade no seu suporte substancial singular), não à qualitas abstraída do indivíduo, e assim não como simples especulação do sujeito, mas, passando do conselho e do julgamento dos meios para a operação: não apenas meramente se examina ou se verifica eventual inscritibilidade de um título (rectius: sua potencialidade inscritiva), mas e julga e impera um registro, hic et nunc".

5.2 Constatação da posse, seu tempo e circunstâncias

O segundo capítulo da ata notarial deverá constatar e descrever a existência da posse, seu tempo e suas circunstâncias. Talvez aqui, o capítulo que exigirá uma maior dedicação do notário, pois deverá envidar maior atenção aos documentos que induzem à existência da posse, às aparências do local vistoriado e aos depoimentos que poderão ser colhidos em diligência.
A ata notarial é confeccionada sob a presidência do notário, ou seja, é ele quem decide sobre como vistoriar, o que deve ou não constar no documento, respondendo, por fim, pela redação. Isso não significa que o interessado não possa sugerir algo, indicar fatos e apresentar documentos, mas cabe ao notário, com vistas ao direito alegado pelo requerente, decidir por fim o que afinal irá constar da sua verificação.
Assim, sugerimos que conste do início da ata o requerimento que motivou sua intervenção, o propósito perseguido pelo requerente, que indicará qual a modalidade de usucapião pretende, pois os fatos e documentos terão que ser verificados um a um no que diz respeito aos requisitos da modalidade perseguida. Sobre essa necessidade, Argentino I Nery nos adverte "(...) a pesar de que la función notarial és pública, el notário no actúa de oficio. Em consecuencia, asume certeza el principio notarial de la 'rogación' em cuanto el notário, em función de autenticador no actúa de oficio sino a requerimiento de parte interesada, o que es igual, la prestación de servicios notariales supone siempre uma rogación" (NERY, Argentino I. Tratado teórico y práctico de derecho notarial. Buenos Aires: Delpalma, 1980, p. 1143).
No capítulo da posse, o tabelião poderá descrever os documentos que lhe foram apresentados, como por exemplo, compromisso de compra e venda, recibos de pagamentos, escrituras não registradas, formais de partilha etc. A ata deverá mencionar as características desses documentos, se têm as firmas reconhecidas ou não, aparência de novos ou antigos, alguma rasura, entrelinha ou adulteração etc. Interessante que sejam eles digitalizados em boa qualidade e em cores, arquivados na serventia em meio eletrônico. Poderão ser apresentados também, comprovantes de pagamentos de tributos, contribuições, taxas e tarifas de serviço público incidentes sobre o imóvel e seus moradores, declarações do ITR e Imposto de Renda.
Por demais, a ata em diligência poderá conter declarações de terceiros com quem deva se comunicar o notário, declarações essas, é lógico, que se relacionem com a posse. Assim, poderá constar a declaração de vizinhos ou moradores próximos que afirmem a posse pelo requerente, o tempo e as circunstâncias, inclusive da existência ou não de oposição. É conveniente, porém, que esses terceiros declarantes sejam identificados pelo notário, para que se vinculem ao que foi afirmado. No entanto, poderão se recusar ou não a disporem do documento de identificação. Mesmo assim, sendo relevante o depoimento e necessário ao cumprimento do requerimento formulado pelo possuidor, o notário poderá constar a declaração e as circunstâncias da não identificação, descrevendo as características do depoente e sua moradia, pois a afirmação da certeza de identidade, nesse caso, restará impossível.
Interessante situação ocorrerá durante a diligência se o tabelião constatar algum fato ou interpelação de alguém que questione a existência da posse ou suas qualidades. Deixará de realizar a ata notarial? Poderá lavrá-la com omissão do fato que entender prejudicial? Poderá constar o depoimento ou interpelação?
Para respondermos adequadamente essas indagações devemos lembrar que a ata notarial é um documento lavrado unilateralmente pelo notário, que a preside conduzindo as diligências e confeccionando o texto narrativo. Deve-se ater à verificação dos fatos requeridos pelo interessado, mas tem total liberdade em fazer constar tudo aquilo que apurou e verificou no cumprimento da diligência. Ou seja, ele atua por suscitação do requerente, mas não em seu interesse. Deve manter a imparcialidade e neutralidade diante dos acontecimentos que presencia, ficando impedido de manipular ou omitir eventos que sejam contrários ao interesse do requerente.
Recomenda-se constar expressamente a advertência feita ao requerente no sentido de que o resultado poderá ser contrário ao seu interesse, hipótese em que ele continuará responsável pelos custos, convertendo-se o depósito prévio em emolumentos. Ainda que o requerente se negue a assinar a ata, o notário poderá encerrá-la, dando-a por válida e verdadeira quanto aos fatos constatados.
Portanto, mais uma vez afirmamos que a ata notarial deverá narrar o resultado dos eventos verificados em diligência, com total neutralidade. Ainda que com objetivos de constatação dos fatos requeridos, os eventos poderão sugerir resultado diverso do pretendido. É o caso, por exemplo, em que um dos proprietários de imóvel confinante alegue que a posse do requerente é injusta por ter ele invadido o terreno. Não poderá o notário, nesta situação, julgar por prejudicada a diligência e interromper a confecção da ata, mas, de outro modo, fazer constar o que ouviu e registrar na narrativa a exibição de eventuais documentos pelo interpelante. Lembrando sempre que, a posse, mesmo que injusta, pode dar ensejo à usucapião extraordinária se cessados os atos ilícitos que lhe caracterizaram.
Por fim, é o registrador de imóveis, quem, com seu prudente critério, julgará o reconhecimento ou não da usucapião, considerando todo o conjunto probatório existente. A ata notarial não constata a usucapião, mas a posse e suas características. Constatar a usucapião, como vimos, é atividade inserida na qualificação registrária.

5.3 Arquivamento dos documentos apresentados

O último capítulo da ata notarial deverá relacionar, em ordem cronológica e de importância, todos os documentos que foram exibidos para a confecção e os quais lhe dão suporte. Assim, havendo justo título, deverá esse ser o primeiro a constar do rol, depois os documentos que comprovaram o tempo da posse, se houver.
Após a relação, deverá constar que os documentos ficarão arquivados por meio de cópias em classificador específico da unidade extrajudicial do notário que a lavrou, podendo ser em meio eletrônico. O registrador de imóveis poderá, a qualquer momento, solicitar ao requerente que providencie certidão dos documentos arquivados para elucidação de qualquer ponto de dúvida.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O procedimento extrajudicial de reconhecimento da usucapião constitui importante avanço no processo de desjudicialização e seu sucesso depende do empenho de cada profissional envolvido: notários, advogados, registradores de imóveis, magistrados e engenheiros. A lei, por si só, não tem a capacidade de modificar a realidade existente.
Não restam dúvidas de que o aprofundamento dos estudos e o diálogo entre os referidos profissionais importarão em grandes benefícios para o Poder Judiciário, que se verá livre uma enxurrada de processos de usucapião desprovidos de litigiosidade, resultando, assim, em benefícios para toda a sociedade.
O presente trabalho procurou lançar as primeiras ideias sobre algumas questões desse importante instrumento alternativo de realização de direitos. Não tem outro objetivo, portanto, senão instigar o estudo e debate envolvendo a novidade legislativa, contribuindo para o conhecimento das realidades a serem observadas em eventual regulamentação do instituto, bem como no êxito e utilidade de seus fins.
Por fim, a necessária maturação doutrinária sobre o tema, proporcionará uma contribuição à fixação da visão teleológica dos serviços extrajudiciais.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BRANDELLI, Leonardo. Ata notarial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2004.
BRASIL. Códigos de processo civil comparados - 2015/1973. São Paulo: Saraiva, 2015.
DIP, Ricardo. Registro de imóveis. Vários estudos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005.
 ETCHEGARAY, Natalio Pedro. Escituras y actas notariales. Buenos Aires: Astrea, 1997.
 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
 LARRAUD, Rufino. Curso de derecho notarial. Buenos Aires: Depalma, 1966.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2010.
 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. vol. 3.
 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito predial. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfido Ed., 1953. vol. I.
 SANTOS, João Manuel de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1979. vol. VII.
 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI.
 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2014.
   
1 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4. ed. revisada e atualizada. Barueri: Ed. Manole, 2010. p. 1212.

2 SANTOS, João Manuel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. 9. ed. Freitas Bastos Ed., 1979. p. 426.

3 SANTOS, João Manuel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. 9. ed. Freitas Bastos Ed., 1979. p. 426.

4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 274.

5 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI. p. 545.

6 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4 ed. rev. e atual. Barueri: Ed. Manole, 2010. p. 1212.

7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Predial. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfido Ed., 1953. vol. I. p. 106.

8 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4. ed. rev. e atual. Barueri: Ed. Manole, 2010. p. 1212.

9 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4 ed. rev. e atual. Barueri: Ed. Manole, 2010. p. 1212.

10 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 936.

11 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 299.

12 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI. p. 553-554.

13 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2010. p. 1163.

14 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ob. cit., p. 1196.

15 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 288-289.

16 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. In: PELUSO, Cezar(coord.). 4. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2010. p. 1238.

17 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. vol. 3. p. 123.

18 MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 123.

19 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI. p. 139.

20 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI. p. 142.

21 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Ob. cit., p. 142.

22 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 292.

23 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Ob. cit., p. 292.

24 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Ed., 1960. vol. VI. p. 559.

25 BRASIL. Códigos de processo civil comparados - 2015/1973. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 344.

26 ETCHEGARAY, Natalio Pedro. Escituras y actas notariales. Buenos Aires: Astrea, 1997. p. 269.

27 BRANDELLI, Leonardo. Ata notarial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2004. p. 44.

28 LARRAUD, Rufino. Curso de derecho notarial. Buenos Aires: Depalma, 1966. p. 397.

29 LARRAUD, Rufino. Ob. cit., p. 397.

30 ETCHEGARAY, Natalio Pedro. Ob. cit., p. 29.

31 BRANDELLI, Leonardo. Ob. cit., p. 47.

32 BRANDELLI, Leonardo. Ata notarial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2004. p. 54.

33 ÁLVAREZ, Pedro Ávila apud BRANDELLI, Leonardo. Ata notarial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004. p. 54.

34 DIP, Ricardo. Registro de imóveis. Vários estudos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 175.

35 DIP, Ricardo. Ob. cit., p. 175.

36 DIP, Ricardo. Ob. cit., p. 175-176.