HABEAS CORPUS Nº 453.870 - PR (2018/0138962-0)
RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO
CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. DIREITO DE
LOCOMOÇÃO, CUJA PROTEÇÃO É DEMANDADA NO PRESENTE HABEAS
CORPUS, COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. ACÓRDÃO DO TC/PR
CONDENATÓRIO AO ORA PACIENTE À PENALIDADE DE REPARAÇÃO DE DANO
AO ERÁRIO, SUBMETIDO À EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA PELA FAZENDA DO
MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU/PR, NO VALOR DE R$ 24 MIL. MEDIDAS
CONSTRICTIVAS DETERMINADAS PELA CORTE ARAUCARIANA PARA GARANTIR
O DÉBITO, EM ORDEM A INSCREVER O NOME DO DEVEDOR EM CADASTRO DE
MAUS PAGADORES, APREENDER PASSAPORTE E SUSPENDER CARTEIRA DE
HABILITAÇÃO. CONTEXTO ECONÔMICO QUE PRESTIGIA USOS E COSTUMES DE
MERCADO NAS EXECUÇÕES COMUNS, NORTEANDO A SATISFAÇÃO DE
CRÉDITOS COM ALTO RISCO DE INADIMPLEMENTO. RECONHECIMENTO DE QUE
NÃO SE APLICA ÀS EXECUÇÕES FISCAIS A LÓGICA DE MERCADO, SOBRETUDO
PORQUE O PODER PÚBLICO JÁ É DOTADO, PELA LEI 6.830/1980, DE
ALTÍSSIMOS PRIVILÉGIOS PROCESSUAIS, QUE NÃO JUSTIFICAM O EMPREGO DE
ADICIONAIS MEDIDAS AFLITIVAS FRENTE À PESSOA DO EXECUTADO. ADEMAIS,
CONSTATA-SE A DESPROPORÇÃO DO ATO APONTADO COMO COATOR, POIS
O EXECUTIVO FISCAL JÁ CONTA COM A PENHORA DE 30% DOS VENCIMENTOS
DO RÉU. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA ORDEM. HABEAS CORPUS
CONCEDIDO, DE MODO A DETERMINAR, COMO FORMA DE PRESERVAR O
DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR DO PACIENTE, A EXCLUSÃO DAS MEDIDAS
ATÍPICAS CONSTANTES DO ARESTO DO TJ/PR, APONTADO COMO COATOR,
QUAIS SEJAM, (I) A SUSPENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO, (II) A
APREENSÃO DO PASSAPORTE, CONFIRMANDO-SE A LIMINAR DEFERIDA.
1. O presente Habeas Corpus tem, como moto primitivo, Execução Fiscal adveniente de acórdão do Tribunal de Contas do Estado do Paraná
que responsabilizou o Município de Foz do Iguaçu/PR a arcar com débitos
trabalhistas decorrentes de terceirização ilícita de mão de obra. Como forma de
regresso, o Município emitiu Certidão de Dívida Ativa, com a consequente
inicialização de Execução Fiscal. À época da distribuição da Execução
(dezembro/2013), o valor do débito era de R$ 24.645,53.
2. Para além das diligências deferidas tendentes à garantia do
juízo, tais como as consultas Bacenjud, Renajud, pesquisa on-line de bens imóveis,
disponibilização de Declaração de Imposto de Renda, o Magistrado determinou a
penhora de 30% do salário auferido pelo Paciente na Companhia de Saneamento do
Paraná-SANEPAR, com retenção imediata em folha de pagamento.
3. O Magistrado de Primeiro Grau indeferiu, porém, o pedido de expedição de ofício aos órgãos de proteção ao crédito e suspensão de passaporte e
de Carteira Nacional de Habilitação. Mas a Corte Araucariana deu provimento a
recurso de Agravo de Instrumento interposto pela Fazenda de Foz do Iguaçu/PR,
para deferir as medidas atípicas requeridas pela Municipalidade exequente,
consistentes em suspensão de Carteira Nacional de Habilitação e apreensão de
passaporte.
4. A discussão lançada na espécie cinge-se à aplicação, no
Executivo Fiscal, de medidas atípicas que obriguem o réu a efetuar o pagamento de
dívida, tendo-se, como referência analítica, direitos e garantias fundamentais do
cidadão, especialmente o de direito de ir e vir.
5. Inicialmente, não se duvida que incumbe ao juiz determinar
todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações
que tenham por objeto prestação pecuniária. É a dicção do art. 139, IV do Código
Fux.
6. No afã de cumprir essa diretriz, são pródigas as notícias que
dão conta da determinação praticada por Magistrados do País que optaram, no
curso de processos de execução, por limitar o uso de passaporte, suspender a
Carteira de Habilitação para dirigir e inscrever o nome do devedor no cadastro de
inadimplentes. Tudo isso é feito para estimular o executado a efetuar o pagamento,
por intermédio do constrangimento de certos direitos do devedor.
7. Não há dúvida de que, em muitos casos, as providências são
assim tomadas não apenas para garantir a satisfação do direito creditício do
exequente, mas também para salvaguardar o prestígio do Poder Judiciário enquanto
autoridade estatal; afinal, decisão não cumprida é um ato atentatório à dignidade da
Justiça.
8. De fato, essas medidas constrictivas atípicas se situam na
eminente e importante esfera do mercado de crédito. O crédito disponibilizado ao
consumidor, à exceção dos empréstimos consignados, é de parca proteção e
elevado risco ao agente financeiro que concede o crédito, por não contar com
garantia imediata, como sói acontecer com a alienação fiduciária. Diferentemente
ocorre nos setores de financiamento imobiliário, de veículos e de patrulha agrícola
mecanizada, por exemplo, cujo próprio bem adquirido é serviente a garantir o
retorno do crédito concedido a altos juros.
9. Julgadores que promovem a determinação para que, na
hipótese de execuções cíveis, se proceda à restrição de direitos do cidadão, como
se tem visto na limitação do uso de passaporte e da licença para dirigir, querem
sinalizar ao mercado e às agências internacionais de avaliação de risco que, no
Brasil, prestigiam-se os usos e costumes de mercado, com suas normas regulatórias
próprias, como força centrífuga à autoridade estatal, consoante estudou o Professor
JOSÉ EDUARDO FARIA na obra O Direito na Economia Globalizada. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 64/85.
10. Noutras palavras, em virtude da falta de garantias de
adimplemento, por ocasião da obtenção do crédito, são contrapostas as formas
aflitivas pessoais de satisfação do débito em âmbito endoprocessual. Essa modalidade de condução da lide, que ressalta a efetividade, é válida mundivisão
acerca do que é o processo judicial e o seu objetivo, embora ela [a visão de mundo]
não seja única, não se podendo dizer paradigmática.
11. Porém, essa almejada efetividade da pretensão executiva não
está alheia ao controle de legalidade, especialmente por esta Corte Superior,
consoante se verifica dos seguintes arestos: o habeas corpus é instrumento de
previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de
utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se
vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. O acautelamento
de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso
concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via
processual adequada para essa análise (RHC 97.876/SP, Rel. Min. LUIS FELIPE
SALOMÃO, DJe 9.8.2018; AgInt no AREsp. 1.233.016/SP, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO BELLIZZE, DJe 17.4.2018).
12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros
rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse
procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é
destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam
com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das
ações conducentes à obtenção do crédito.
13. Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal,
de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em
sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução
de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e
possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios
processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui
privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do
juízo (art. 16, § 1o. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que
se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos
riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.
14. Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o
presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução
Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito
tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso,
atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem
de família (art. 3o., IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem
altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei
de Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser
declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do
Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas
execuções comuns.
15. Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas
atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para
dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse
contexto, resulta em excessos.
16. Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula
que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para
pagamento de tributos (Súmula 323/STF).
17. Na espécie, consoante relata o ato apontado como coator,
trata-se de Execução Fiscal manejada pela Fazenda do Município de Foz do
Iguaçu/PR em desfavor do ora Paciente, então Prefeito da urbe paranaense, a partir
da qual visa à satisfação de crédito como direito de regresso, uma vez que a
Municipalidade fora condenada à restituição de dano ao Erário como sanção
aplicada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (débitos trabalhistas com
origem em contratação ilegal de funcionários terceirizados, contratações essas
ordenadas pelo então Alcaide, ora Paciente). O caderno aponta que o valor histórico
do crédito vindicado é de R$ 24.645,53 (fls. 114).
18. O TJ/PR deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento
interposto pelo Município de Foz do Iguaçu/PR contra a decisão de Primeiro Grau
que indeferiu o pedido de medidas aflitivas de inscrição do nome do executado em
cadastro de inadimplentes, de suspensão do direito de dirigir e de apreensão do
passaporte. O acórdão do TJ/PR, ora apontado como ato coator, deferiu as
indicadas medidas no curso da Execução Fiscal.
19. Ao que se dessume do enredo fático-processual, a medida é
excessiva. Para além do contexto econômico de que se lançou mão anteriormente,
o que, por si só, já justificaria o afastamento das medidas adotadas pelo Tribunal
Araucariano, registre-se que o caderno processual aponta que há penhora de
30% dos vencimentos que o réu aufere na Companhia de Saneamento do
Paraná-SANEPAR. Além disso, rendimentos de sócio-majoritário que o executado
possui na Rádio Cultura de Foz do Iguaçu Ltda.-EPP também foram levados a
bloqueio (fls. 163/164).
20. Submeteu-se o réu à notória restrição constitucional do
direito de ir e vir num contexto de Execução Fiscal já razoavelmente assegurada,
pelo que se dessume da espécie.
21. Assinale-se como de altíssima nomeada para o caso o art. 22
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao estabelecer, nos seus itens 1
e 2, que toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito
de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais, bem como
toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.
22. Frequentemente, tem-se visto a rejeição à ordem de Habeas
Corpus sob o argumento de que a limitação de CNH não obstaria o direito de
locomoção, por existir outros meios de transporte de que o indivíduo pode se valer. É
em virtude dessa linha de pensamento que a referência ao Pacto de São José da
Costa Rica se mostra crucial, na medida em que a existência de diversos meios de
deslocamento não retira o fato de que deve ser amplamente garantido ao cidadão
exercer o direito de circulação pela forma que melhor lhe aprouver, pois assim se
efetiva o núcleo essencial das liberdades individuais, tal como é o direito e ir e vir.
23. Cumpre registrar que a opinião do douto parecer do
Ministério Público Federal é por conceder-se o remédio constitucional, sob a
premissa de que, apresentada a questão com tais contornos, estritamente atrelada ao arcabouço probatório encartado nos autos, não há outra possibilidade senão
reconhecer que, não sendo a medida restritiva adequada e necessária, ainda que
sob o escudo da busca pela efetivação da legítima Execução Fiscal promovida
originariamente, a sua efetivação tornou-se contrária à ordem jurídica, porquanto
adentrou demasiadamente na esfera pessoal, e não patrimonial, do
executado/impetrante, configurando, certamente, ato punitivo, não constritivo,
atentando, portanto, contra a sua liberdade de ir e vir (fls. 262/264). O Paciente está
a merecer, em confirmação da medida liminar, a tutela da liberdade de ir a vir pelo
remédio de Habeas Corpus.
24. Parecer do MPF pela concessão da medida. Habeas Corpus
concedido em favor do Paciente, confirmando-se a medida liminar anteriormente
concedida, apta a determinar sejam excluídas as medidas atípicas constantes do
aresto do TJ/PR apontado como coator (suspensão da Carteira Nacional de
Habilitação, apreensão do passaporte).
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da
Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das
notas taquigráficas a seguir, prosseguindo o julgamento, preliminarmente, por
maioria, vencidos os Srs. Ministros Benedito Gonçalves e Regina Helena Costa,
conhecer do Habeas Corpus e, no mérito, por maioria, vencidos parcialmente os
Srs. Ministros Sérgio Kukina e Gurgel de Faria (voto-vista), conceder a ordem
determinando sejam excluídas as medidas atípicas constantes do aresto do
TJ/PR apontado como coator (suspensão da Carteira Nacional de Habilitação,
apreensão do passaporte), nos termos do voto do Sr. Ministro Relator Os Srs.
Ministros Benedito Gonçalves e Regina Helena Costa votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Brasília/DF, 25 de junho de 2019 (Data do Julgamento).
RELATÓRIO
1. Trata-se de Habeas Corpus impetrado pelos Advogados
ALDAMIRA GERALDA DE ALMEIDA AFFORNALLI, MARCUS VINICIUS
AFFORNALLI e BRUNA AFFORNALLI, em favor do Paciente CELSO SAMIS DA
SILVA, que figura como parte executada em Execução Fiscal promovida pela
FAZENDA DO MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU/PR, a partir do qual objetivam a
concessão de medida assecuratória do direito e ir e vir frente ao acórdão do
egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ora apontado como autoridade
coatora, que determinou a efetuação de medidas constrictivas atípicas. O suposto
ato ilegal que afetou a liberdade de locomoção do cidadão, praticado pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná, contou com a seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RESSARCIMENTO DE DANOS
AO ERÁRIO. DILIGÊNCIAS INFRUTÍFERAS. APLICAÇÃO DE
TÉCNICAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. INSCRIÇÃO DO DEVEDOR EM
CADASTRO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. APREENSÃO DE
PASSAPORTE E SUSPENSÃO DE CNH. INDEFERIMENTO PELO
JUÍZO SINGULAR. IRRESIGNAÇÃO DO MUNICÍPIO. APLICAÇÃO DO
ARTIGO 139, IV DO CPC. ENTENDIMENTO DO ENUNCIADO 48 DA
ENFAM. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
REFORMA DA DECISÃO SINGULAR. RECURSO CONHECIDO E
PROVIDO (fls. 189/197).
2. As razões que motivaram o impetrante a postular remédio
constitucional residem no argumento de que houve arbítrio da autoridade ao deferir
medidas restritivas de direito na Execução Fiscal de origem, qualificadas por
restrição ao uso de passaporte e por suspensão de Carteira de Habilitação do
executado, ora paciente. Salientam que o paciente não praticou atos de recalcitrância no feito executório e que as providências autorizadas pelo Tribunal
Araucariano se dirigem à aflição pessoal do réu e não aos seus bens. Assevera a
desproporciolidade da medida, porquanto já está respondendo pela dívida com
a penhora de 30% de seus vencimentos. Afirmam que a restrição do uso de
passaporte causa prejuízo ao paciente, uma vez que reside em área de fronteira,
em que é corriqueira a passagem para países como Paraguai e Argentina, e que a
suspensão da Carteira de Habilitação o impede de comparecer ao trabalho e de
transportar seu filhos ao colégio. Pede a concessão de medida liminar, de modo a
extirpar a coação ilegal praticada pela Corte de origem.
3. Foi concedida a medida liminar às fls. 222/229. Solicitadas
as informações à autoridade coatora, esta ficou inerte (fls. 250). Intimada (fls.
243/244), a Fazenda Pública exequente não se manifestou.
4. O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre
Subprocurador-Geral da República JOSÉ BONIFÁCIO BORGES DE ANDRADA,
opinou pela concessão da ordem de Habeas Corpus (fls. 257/264).
5. Em síntese, é o relatório.
VOTO
1. O presente Habeas Corpus tem, como moto primitivo, Execução Fiscal adveniente de acórdão do Tribunal de Contas do Estado do
Paraná que responsabilizou o Município de Foz do Iguaçu/PR a arcar com débitos
trabalhistas decorrentes de terceirização ilícita de mão de obra. Como forma de
regresso, o Município emitiu Certidão de Dívida Ativa, com a consequente
inicialização de Execução Fiscal. À época da distribuição da Execução
(dezembro/2013), o valor do débito era de R$ 24.645,53.
2. Para além das diligências deferidas tendentes à garantia do
juízo, tais como as consultas Bacenjud, Renajud e pesquisa online de bens imóveis, disponibilização de Declaração de Imposto de Renda, o Magistrado
determinou a penhora de 30% do salário auferido pelo Paciente na Companhia de
Saneamento do Paraná-SANEPAR, com retenção em folha de pagamento.
3. O Magistrado de Primeiro Grau indeferiu, porém, o pedido
de expedição de ofício aos órgãos de proteção ao crédito e suspensão de
passaporte e de Carteira Nacional de Habilitação. Mas a Corte Araucariana deu
provimento a recurso de Agravo de Instrumento interposto pela Fazenda de Foz do
Iguaçu/PR, para deferir as medidas atípicas requeridas pela Municipalidade
exequente.
4. A discussão lançada na espécie cinge-se à aplicação, no
Executivo Fiscal, de medidas atípicas que obriguem o réu a efetuar o pagamento
de dívida.
5. Inicialmente, não se duvida que incumbe ao juiz determinar
todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações
que tenham por objeto prestação pecuniária. É a dicção do art. 139, IV do Código
Fux.
6. No afã de cumprir essa diretriz, são pródigas as notícias
que dão conta da determinação praticada por Magistrados do País que optaram,
no curso de processos de execução, por limitar o uso de passaporte, suspender a
Carteira de Habilitação para dirigir e inscrever o nome do devedor no cadastro de
inadimplentes. Tudo isso é feito para estimular o executado a efetuar o
pagamento, por intermédio do constrangimento de certos direitos do devedor.
7. Não há dúvida de que, em muitos casos, as providências
são assim tomadas não apenas para garantir a satisfação do direito creditício do
exequente, mas também para salvaguardar o prestígio do Poder Judiciário
enquanto autoridade estatal; afinal, decisão não cumprida é um ato atentatório à
dignidade da Justiça.
8. De fato, essas medidas constrictivas situam-se na
eminente e importante esfera do mercado de crédito. O crédito disponibilizado ao
consumidor, à exceção dos empréstimos consignados, é de parca proteção e
elevado risco ao agente financeiro que concede o crédito, por não contar com
garantia imediata, como sói acontecer com a alienação fiduciária. Diferentemente
ocorre nos setores de financiamento imobiliário, de veículos e de patrulha agrícola
mecanizada, por exemplo, cujo próprio bem adquirido é serviente a garantir o
retorno do crédito concedido a altos juros.
9. Embora o crédito seja responsável por promover o
crescimento econômico, não apenas por sua aplicação na área produtiva, mas,
sobretudo e especialmente, no consumo das famílias, ele é também responsável
por severo endividamento pessoal dos brasileiros. Estatísticas dos órgãos oficiais
informam que mais de 60% dos brasileiros se encontram, por mais de 90 dias,
com débitos em aberto em cartão de crédito, no crediário de estabelecimentos
comerciais, no cheque especial e em outras modalidades de crédito direto, nas
quais o consumidor é estimulado a contratar, conforme matéria jornalística
veiculada pela Agência Brasil de Comunicação EBC
(http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/percentual-de-familias-e
ndividadas-sobe-de-59-para-622. Acesso em 12.6.2018).
10. Existem, inclusive, programas oficiais, como o do Banco
Central do Brasil, destinados a evitar o superendividamento, dado o caráter
epidêmico do estímulo ao consumo sem as necessárias prudência e organização
de finanças pessoais nas compras
(http://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/folder_serie_II_%C3%A9_possivel_sair_do_sup
erendividamento.pdf. Acesso em 12.6.2018).
11. Não há dúvida de que essas questões que permeiam o crédito
aportam no Poder Judiciário, nesse contexto de credores sem garantia e
endividados suplicando a misericórdia. Penso que aqueles Julgadores que
promovem a determinação para que, na hipótese de execuções cíveis, se proceda
à restrição de direitos do cidadão, como se tem visto na limitação do uso de
Documento: 1822323 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/08/2019 Página 16 de 7
Superior Tribunal de Justiça
passaporte e da licença para dirigir, querem sinalizar ao mercado e às agências
internacionais de avaliação de risco que, no Brasil, prestigiam-se os usos e
costumes de mercado, com suas normas regulatórias próprias.
12. Noutras palavras, em virtude da falta de garantias de
adimplemento, por ocasião da obtenção do crédito, são contrapostas as formas
aflitivas pessoais de satisfação do débito em âmbito endoprocessual. Essa
modalidade de condução da lide, que ressalta a efetividade, é válida mundivisão
acerca do que é o processo judicial e o seu objetivo, embora ela [a visão de
mundo] não seja única, não se podendo dizer paradigmática.
13. Porém, essa almejada efetividade da pretensão executiva não
está alheia do controle de legalidade, especialmente por esta Corte Superior,
consoante se verifica dos seguintes arestos:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO
DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS.
CPC/2015. INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM O
ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL. SUBSIDIARIEDADE,
NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE.
RETENÇÃO DE PASSAPORTE. COAÇÃO ILEGAL. CONCESSÃO DA
ORDEM. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO.
1. O habeas corpus é instrumento de previsão
constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de
utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses
em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões
judiciais.
2. Nos termos da jurisprudência do STJ, o
acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de
locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento
ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada
para essa análise.
3. O CPC de 2015, em homenagem ao princípio do
resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão,
em seu art. 139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à
satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia
certa. 4. As modernas regras de processo, no entanto, ainda
respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma
circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais,
apenas sendo possível a implementação de comandos não
discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável.
5. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os
meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento
de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja
necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária,
ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões
judiciais, será contrária à ordem jurídica.
6. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios
executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao
contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida
adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena
de configurar-se como sanção processual.
7. A adoção de medidas de incursão na esfera de
direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá
de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia
de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não
se justificar em defesa de outro direito fundamental.
8. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as
liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em
poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer
cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo
todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir.
9. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de
suspensão do passaporte proferida no bojo de execução por título
extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito
fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não
tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de
satisfação, a medida não se comprova necessária.
10. O reconhecimento da ilegalidade da medida
consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em
apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade
dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica.
A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o
contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada
também a proporcionalidade da providência. 11. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de
que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura
ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a
utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que
a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços
consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos,
ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na
condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se
detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de
impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas
corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao
direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza.
12. Recurso ordinário parcialmente conhecido (RHC
97.876/SP, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 9.8.2018).
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
EXECUÇÃO. PRETENSÃO DE QUE SEJA SUSPENSA A CNH DO
DEVEDOR COM BASE NO ART. 139, IV, DO CPC/2015.
CONCLUSÃO NO SENTIDO DA INADEQUAÇÃO DA MEDIDA PARA O
FIM COLIMADO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. O Tribunal estadual entendeu que a medida pleiteada - suspensão da CNH dos recorridos - é inadequada para o fim
colimado, pois é desproporcional no caso em tela, especialmente
porque atinge a pessoa do devedor, não seu patrimônio. Essa
conclusão foi fundada na apreciação fático-probatória da causa,
atraindo a aplicação da Súmula 7/STJ.
2. Agravo interno desprovido (AgInt no AREsp.
1.233.016/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 17.4.2018).
14. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros
rumos quando se contrasta com as medidas aflitivas pessoais atípicas.
Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são
titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da
autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à
obtenção do crédito.
15. Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de
modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em
sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para
condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas
causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com
privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder
Público já possui ex ante, a execução só é embargável mediante a garantia do
juízo (art. 16, § 1o. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que
se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos
riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.
16. Não se esqueça, ademais, que o crédito tributário é
privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até
mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de
família (art. 3o., IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima
preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de
Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser
declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do
Código Tributário Nacional).
17. Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas
atípicas aflitivas pessoais não se firmam placidamente no executivo fiscal. A
aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos.
18. Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de
severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em
Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo
para pagamento de tributos (Súmula 323/STF).
19. Na espécie, consoante relata o ato apontado como coator,
trata-se de Execução Fiscal manejada pela Fazenda do Município de Foz do
Iguaçu/PR, a partir do qual visa à satisfação de crédito adveniente de condenação
do executado à restituição de dano ao Erário como sanção aplicada ao Município pelo Tribunal de Contas do Paraná (débitos trabalhistas com origem contratação
ilegal de funcionários terceirizados). O caderno aponta que o valor do crédito
vindicado é de R$ 24.645,53 (fls. 114).
20. O TJ/PR deu provimento ao recurso de Agravo de Instrumento
da Municipalidade, em ordem a deferir medidas aflitivas de inscrição do nome do
réu em cadastro de inadimplentes, suspensão do direito de dirigir e apreensão do
passaporte.
21. Ao que se dessume do enredo fático-processual, a medida é
excessiva. Para além do contexto econômico de que se lançou mão
anteriormente, o que, por si só, já justificaria o afastamento das medidas adotadas
pelo Tribunal Araucariano, registre-se que o caderno processual aponta que há
penhora de 30% dos vencimentos que o réu aufere na Companhia de
Saneamento do Paraná-SANEPAR. Além disso, rendimentos de
sócio-majoritário que o executado possui na Rádio Cultura de Foz do Iguaçu
Ltda.-EPP também foram levados a bloqueio.
22. Registre-se como de altíssima nomeada para o caso o art.
22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao estabelecer, nos seus
itens 1 e 2, que toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado
tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições
legais, bem como toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país,
inclusive do próprio.
23. Frequentemente, tem-se visto a rejeição à ordem de
Habeas Corpus sob o argumento de que a limitação de CNH não obstaria o direito
de locomoção, por existir outros meios de transporte de que o indivíduo pode se
valer. É em virtude dessa linha de pensamento que a referência ao Pacto de São
José da Costa Rica se mostra crucial, na medida em que a existência de diversos
meios de deslocamento não retira o fato de que deve ser amplamente garantido
ao cidadão exercer o direito de circulação pela forma que melhor lhe aprouver,
pois assim se efetiva o núcleo essencial das liberdades individuais, tal como é o direito e ir e vir.
24. O paciente está a merecer, em confirmação da medida
liminar, a tutela da liberdade de ir a vir a que se propõe o remédio de Habeas
Corpus.
25. Outra não é, aliás, a opinião do douto parecer do Ministério
Público Federal, cuja transcrição é de rigor:
14. Feitas tais ponderações, impende considerar, de uma
forma simplória, mas fundamentada no parâmetro 'proporcionalidade'
da medida constritiva segundo o crivo da adequação e da
necessidade, a plausibilidade da fundamentação desenvolvida e da
conclusão tecida quando da apreciação da liminar do writ.
15. Soa deveras excessiva a medida de suspensão de
dirigir e apreensão do passaporte imposta ao impetrante num contexto
de Execução Fiscal já razoavelmente assegurada pela penhora de
30% dos vencimentos que aufere na Companhia de Saneamento do
Paraná-SANEPAR, além do bloqueio dos rendimentos de
sócio-majoritário que o executado possui na Rádio Cultura de Foz do
Iguaçu Ltda.-EPP.
16. Frise-se que, evidentemente, torna-se mais aguda a
restrição das liberdades constitucionais do réu a circunstância de que
a cidade de Foz do Iguaçu/PR se situa em tríplice fronteira de Brasil,
Paraguai e Argentina. Embora possa haver trânsito facilitado de
pessoas entre esses Países do Mercosul, é notório que, por residir
nessa localidade fronteiriça, o paciente está a sofrer mais limitações
em seu direito de ir e vir pela supressão de passaporte do que outra
pessoa que esteja a milhares de quilômetros de qualquer área
limítrofe.
17. Ademais, do arcabouço documental "é possível
perquirir que o paciente utiliza os documentos para as suas atividades
rotineiras, uma vez que a empresa em que o requerente trabalha
(SANEPAR) possui sede em todas as cidades do Estado. Ainda, a
função exercida pelo paciente (diretor estratégico) é inerente à
necessidade de comparecimento deste em diferentes cidades do
Estado, a fim de acompanhar a execução das atividades da empresa." - fls. 1Oe.
18. Apresentada a questão com tais contornos,
estritamente atrelada ao arcabouço probatório encartado nos autos, não há outra possibilidade senão reconhecer que, não sendo a
medida restritiva adequada e necessária, ainda que sob o escudo da
busca pela efetivação da legítima Execução Fiscal promovida
originariamente, a sua efetivação tornou-se contrária à ordem jurídica,
porquanto adentrou demasiadamente na esfera pessoal, e não
patrimonial, do executado/impetrante, configurando, certamente, ato
punitivo, não constritivo, atentando, portanto, contra a sua liberdade
de ir e vir.
Ante o exposto, o Ministério Público Federal manifesta-se
pela concessão da ordem em habeas corpus, para excluir as medidas
de restrição ao uso de passaporte e suspensão de Carteira de
Habilitação, outrora impostas ao impetrante (fls. 262/264).
26. Mercê do exposto, confirma-se a medida liminar
anteriormente concedida, de modo expedir ordem de Habeas Corpus em
favor do paciente, apta a determinar sejam excluídas as medidas atípicas
constantes do aresto do TJ/PR apontado como coator (suspensão da
Carteira Nacional de Habilitação, apreensão do passaporte).
É como voto.
VOTO-VISTA
O EXMO. SR. MINISTRO GURGEL DE FARIA:
Trata-se de habeas corpus impetrado por ALDAMIRA GERALDA
DE ALMEIDA AFFORNALLI, em favor de CELSO SAMIS DA SILVA – parte executada
em execução fiscal promovida pela FAZENDA DO MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU/PR
–, em que objetiva impugnar a imposição das medidas executivas atípicas por parte do Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná, consubstanciadas na apreensão do passaporte do paciente, bem
assim na suspensão da sua Carteira Nacional de Habilitação, com arrimo no art. 139, IV, do
CPC/2015.
Após o bem-lançado voto do d. relator, Min. NAPOLEÃO NUNES
MAIA FILHO, em que concedeu a ordem, dos votos dos Min. BENEDITO GONÇALVES e
REGINA HELENA COSTA, em que não conheceram do habeas corpus, e do voto do Min.
SÉRGIO KUKINA, que conheceu da impetração, pedi vista dos autos para um melhor exame e
agora os trago a julgamento.
Inicialmente, cumpre registrar que, no tocante à apreensão da Carteira
Nacional de Habilitação, o presente writ não se apresenta viável, à míngua de risco potencial à
liberdade de locomoção do paciente.
Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO EM
HABEAS CORPUS. APREENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE
HABILITAÇÃO - CNH. INEXISTÊNCIA DE RISCO OU AMEAÇA AO DIREITO
DE LOCOMOÇÃO. DESCABIMENTO DO WRIT. 1. Sem que haja risco ou ameaça à liberdade de locomoção, revela-se descabida
a impetração de habeas corpus. Precedentes: AgRg no HC 391.220/SP, Relator
Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 24/5/2017; REsp 1.639.643/RS,
Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18/4/2017; e AgInt no
HC 361.699/MG, Relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe
20/10/2016.
2. Agravo interno não provido. (AgInt no RHC 97082/SP, rel. Min. BENEDITO
GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe 25/6/2018).
Diversa é a situação relativa à retenção do passaporte, visto que, de
acordo com a jurisprudência do STJ, tal restrição constitui ameaça ao direito de ir e vir do
paciente, hábil ao manejo do habeas corpus.
Nesse sentido:
AMBIENTAL. PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.
INDENIZAÇÃO POR DANO AMBIENTAL. MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA
EM EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. RESTRIÇÃO AO USO DE
PASSAPORTE. INJUSTA VIOLAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR. NÃO OCORRÊNCIA. DECISÃO ADEQUADAMENTE
FUNDAMENTADA. OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO. PONDERAÇÃO
DOS VALORES EM COLISÃO. PREPONDERÂNCIA, IN CONCRETO, DO
DIREITO FUNDAMENTAL À TUTELA DO MEIO AMBIENTE. DENEGAÇÃO
DO HABEAS CORPUS.
I - Na origem, trata-se de cumprimento de sentença que persegue o pagamento
de indenização por danos ambientais fixada por sentença. Indeferida a medida
coercitiva atípica de restrição ao passaporte em primeira instância, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul deu provimento ao agravo interposto pelo
Ministério Público, determinando a apreensão do passaporte dos pacientes.
II - Cabível a impetração de habeas corpus tendo em vista a restrição ao direito
fundamental de ir e vir causado pela retenção do passaporte dos pacientes.
Precedentes: RHC n. 97.876/SP, HC n. 443.348/SP e RHC n. 99.606/SP.
III - A despeito do cabimento do habeas corpus, é preciso aferir, in concreto, se
a restrição ao uso do passaporte pelos pacientes foi ilegal ou abusiva.
IV - Os elementos do caso descortinam que os pacientes, pessoas públicas,
adotaram, ao longo da fase de conhecimento do processo e também na fase
executiva, comportamento desleal e evasivo, embaraçando a tramitação
processual e deixando de cumprir provimentos jurisdicionais, em conduta
sintomática da ineficiência dos meios ordinários de penhora e expropriação de
bens.
V - A decisão que aplicou a restrição aos pacientes contou com fundamentação
adequada e analítica. Ademais, observou o contraditório. Ao final do processo
ponderativo, demonstrou a necessidade de restrição ao direito de ir e vir dos
pacientes em favor da tutela do meio ambiente.
VI - Ordem de habeas corpus denegada. (HC 478963/RS, rel. Min. FRANCISCO
FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe 21/5/2019). (Grifos acrescidos).
Assim, analiso a apontada ilegalidade decorrente da imposição da
medida executiva atípica ao paciente.
Compulsando os autos, verifico que a Corte de origem louvou-se no art.
139, IV, do CPC/2015, que assim dispõe: "O juiz dirigirá o processo conforme as disposições
deste Código, incumbindo-lhe: [...] IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas,
mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial,
inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária."
O novel dispositivo facultou ao magistrado a adoção de providências
executivas atípicas, destinadas à concretização da determinação judicial, especialmente quando
verificado comportamento do executado descompromissado com a boa-fé e a lealdade
processuais.
No caso concreto, verifico, de fato, a postura recalcitrante do paciente
em adimplir a dívida decorrente do acórdão do Tribunal de Contas do Estado Paraná (e-STJ fl.
28), notadamente diante da inexistência de automóveis e bens imóveis em seu nome, da
inexistência de numerário em agência bancária e da declaração ao Imposto de Renda de que
possuía a importância de R$ 80.000,00 em espécie.
Não obstante, constato que a apreensão do seu passaporte afigura-se
medida exagerada.
Isso porque, no bojo da Execução Fiscal n. 0029418-18.2013.8.16.0030 foi deferida (e levada a efeito) a penhora de 30% (trinta por cento) dos vencimentos que ele
aufere na Companhia de Saneamento do Paraná – SANEPAR, bem como o bloqueio dos
rendimentos de sócio-majoritário da Rádio Cultura de Foz do Iguaçu Ltda.-EPP, conforme se
observa às e-STJ fls. 162/164.
A propósito, vale transcrever o seguinte excerto do parecer ministerial:
14. Feitas tais ponderações, impende considerar, de uma forma simplória, mas
fundamentada no parâmetro 'proporcionalidade' da medida constritiva segundo
o crivo da adequação e da necessidade, a plausibilidade da fundamentação
desenvolvida e da conclusão tecida quando da apreciação da liminar do writ.
15. Soa deveras excessiva a medida de suspensão de dirigir e apreensão do
passaporte imposta ao impetrante "num contexto de Execução Fiscal já
razoavelmente assegurada" pela penhora de 30% dos vencimentos que aufere
na Companhia de Saneamento do Paraná-SANEPAR, além do bloqueio dos
rendimentos de sócio-majoritário que o executado possui na Rádio Cultura de
Foz do Iguaçu Ltda.-EPP. (e-STJ fls. 262/263).
Assim, é de se deferir a liberação do passaporte do paciente.
Ante o exposto, CONHEÇO PARCIALMENTE do habeas corpus
para, na parte conhecida, CONCEDER A ORDEM, determinando a devolução do passaporte ao
paciente CELSO SAMIS DA SILVA.
É como voto.