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15 de maio de 2021

Argumentos favoráveis ao sistema de vinculação (precedentes): Isonomia e Efetividade

Argumentos contrários ao sistema de vinculação (precedentes): Engessamento e liberdade judicial

Distinção entre precedente, jurisprudência, súmula e ementa

Artigo 926, CPC: Uniformização, Estabilidade, Coerência e Integridade

Constitucionalidade do sistema de vinculação

Alcance da Vinculação: Análise do termo "observarão" constante do artigo 927 do CPC

Interpretação do artigo 927 do CPC e os pronunciamentos judiciais vinculatórios

Artigo 926, CPC: Uniformização, Estabilidade, Coerência e Integridade

Requisitos de Validade do sistema de vinculação: publicidade, contraditório e fundamentação ampliado

11 de maio de 2021

Entender Direito: ministros discutem precedentes qualificados em novo programa do STJ no YouTube

 Os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo de Tarso Sanseverino e Rogerio Schietti Cruz são os convidados da estreia do novo programa produzido pela Coordenadoria de TV e Rádio do STJ: o Entender Direito. O programa de entrevistas, antes produzido apenas no formato de podcast, ganhou novo formato e também terá transmissão em vídeo no canal do STJ no YouTube e na grade da TV Justiça.

Na entrevista, conduzida pelos jornalistas Thiago Gomide e Samanta Peçanha, os magistrados respondem a perguntas relativas ao papel do STJ na uniformização da jurisprudência infraconstitucional e à importância da gestão de precedentes qualificados.

Os institutos previstos no Código de Processo Civil para o julgamento de litigâncias repetitivas, a sistemática do julgamento dos recursos repetitivos e a importância do engajamento dos tribunais brasileiros na aplicação dos precedentes qualificados também são alguns dos assuntos abordados na conversa.

Para conferir o programa, basta acessar o canal do STJ no YouTube. Na TV Justiça, o programa tem veiculação toda quarta-feira, às 10h, com reprises aos sábados, às 14h, e às terças-feiras, às 22h.

9 de maio de 2021

SUSPENSÃO DO PROCESSO EM 1º GRAU EM RAZÃO DE INSTAURAÇÃO DE IRDR. PROCEDIMENTO DE DISTINÇÃO (DISTINGUISHING) DO ART. 1.037, §§9º A 13, DO NOVO CPC. APLICABILIDADE AO IRDR. MICROSSISTEMA DE JULGAMENTO DE QUESTÕES REPETITIVAS. INTEGRAÇÃO, QUANDO POSSÍVEL, ENTRE AS TÉCNICAS DE FORMAÇÃO DE PRECEDENTES VINCULANTES.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.846.109 - SP (2019/0216474-5) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. SUSPENSÃO DO PROCESSO EM 1º GRAU EM RAZÃO DE INSTAURAÇÃO DE IRDR. DISPOSITIVOS LEGAIS NÃO ENFRENTADOS E IMPERTINENTES. SÚMULA 211/STJ. SÚMULA 284/STF. PROCEDIMENTO DE DISTINÇÃO (DISTINGUISHING) DO ART. 1.037, §§9º A 13, DO NOVO. APLICABILIDADE AO IRDR. POSSIBILIDADE. RECURSOS REPETITIVOS E IRDR. MICROSSISTEMA DE JULGAMENTO DE QUESTÕES REPETITIVAS. INTEGRAÇÃO, QUANDO POSSÍVEL, ENTRE AS TÉCNICAS DE FORMAÇÃO DE PRECEDENTES VINCULANTES. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA NO CPC E INEXISTÊNCIA DE OFENSA A ELEMENTO ESSENCIAL DA TÉCNICA. PROCEDIMENTO DE DISTINÇÃO. AUSÊNCIA DE DIFERENÇA ONTOLÓGICA OU JUSTIFICATIVA TEÓRICA QUE JUSTIFIQUE TRATAMENTO ASSIMÉTRICO ENTRE RECURSOS REPETITIVOS E IRDR. REQUERIMENTOS FORMULADOS APÓS ORDEM DE SUSPENSÃO. OBJETIVO IDÊNTICO, QUE É DEMONSTRAR A DISTINÇÃO ENTRE A QUESTÃO DEBATIDA NO PROCESSO E AQUELA SUBMETIDA AO JULGAMENTO PADRONIZADO. EQUALIZAÇÃO DA TENSÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, SEGURANÇA JURÍDICA, CELERIDADE, ECONOMIA PROCESSUAL E RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE RESOLVE O PEDIDO DE DISTINÇÃO EM IRDR. AGRAVO DE INSTRUMENTO CABÍVEL (ART. 1.037, §13, I, DO NOVO CPC), SOB PENA DE CRIAÇÃO DE DECISÃO IRRECORRÍVEL SEM AUTORIZAÇÃO LEGAL OU DE TORNAR ABSOLUTAMENTE INÚTIL O DEBATE ACERCA DA CORREÇÃO DA DECISÃO SUSPENSIVA APENAS EM APELAÇÃO OU EM CONTRARRAZÕES. IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. TEMA REPETITIVO 988. PROCEDIMENTO ESPECÍFICO E DETALHADO PARA REQUERIMENTO DE DISTINÇÃO. CINCO ETAPAS SUCESSIVAS. INTIMAÇÃO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO. REQUERIMENTO DA PARTE, DEMONSTRANDO A DISTINÇÃO, ENDEREÇADA AO JUIZ EM 1º GRAU. CONTRADITÓRIO. PROLAÇÃO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA RESOLVENDO O REQUERIMENTO. RECORRIBILIDADE. PROCEDIMENTO NÃO OBSERVADO PELA PARTE QUE INTERPÔS AGRAVO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO. AGRAVO DE INSTRUMENTO INADMISSÍVEL. PROCEDIMENTO DE OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. DENSIFICAÇÃO DO CONTRADITÓRIO EM 1º GRAU. IMPEDIMENTO A INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS PREMATUROS. NECESSIDADE DE PROLAÇÃO DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA A SER IMPUGNADA, QUE RESOLVE A ALEGAÇÃO DE DISTINÇÃO. VIOLAÇÃO AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 

1- Ação ajuizada em 26/09/2016. Recurso especial interposto em 21/06/2018 e atribuído à Relatora em 18/10/2019. 

2- O propósito recursal é definir se a decisão que suspende o processo em 1º grau em virtude da instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR – no Tribunal é imediatamente recorrível por agravo de instrumento ao fundamento de distinção ou se, a exemplo do procedimento instituído para a hipótese de recursos especial e extraordinário repetitivos, é preciso provocar previamente o contraditório em 1º grau e pronunciamento judicial específico acerca da distinção antes da interposição do respectivo recurso. 

3- Não se conhece do recurso especial quando os dispositivos legais tidos por violados, além de não terem sido objeto de efetivo enfrentamento pelo acórdão recorrido, dizem respeito a questões distintas daquela que foi objeto da decisão impugnada. Incidência da Súmula 211/STJ e Súmula 284/STF. 

4- O procedimento de alegação de distinção (distinguishing) entre a questão debatida no processo e a questão submetida ao julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, previsto no art. 1.037, §§9º a 13, do novo CPC, aplica-se também ao incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR. 

5- Embora situados em espaços topologicamente distintos e de ter havido previsão específica do procedimento de distinção em IRDR no PLC 8.046/2010, posteriormente retirada no Senado Federal, os recursos especiais e extraordinários repetitivos e o IRDR compõem, na forma do art. 928, I e II, do novo CPC, um microssistema de julgamento de questões repetitivas, devendo o intérprete promover, sempre que possível, a integração entre os dois mecanismos que pertencem ao mesmo sistema de formação de precedentes vinculantes. 

6- Os vetores interpretativos que permitirão colmatar as lacunas existentes em cada um desses mecanismos e promover a integração dessas técnicas no microssistema são a inexistência de vedação expressa no texto do novo CPC que inviabilize a integração entre os instrumentos e a inexistência de ofensa a um elemento essencial do respectivo instituto. 

7- Na hipótese, não há diferença ontológica e nem tampouco justificativa teórica para tratamento assimétrico entre a alegação de distinção formulada em virtude de afetação para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos e em razão de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, pois ambos os requerimentos são formulados após a ordem de suspensão emanada pelo Tribunal, tem por finalidade a retirada da ordem de suspensão de processo que verse sobre questão distinta daquela submetida ao julgamento padronizado e pretendem equalizar a tensão entre os princípios da isonomia e da segurança jurídica, de um lado, e dos princípios da celeridade, economia processual e razoável duração do processo, de outro lado. 

8- Considerando que a decisão interlocutória que resolve o pedido de distinção em relação a matéria submetida ao rito dos recursos repetitivos é impugnável imediatamente por agravo de instrumento (art. 1.037, §13, I, do novo CPC), é igualmente cabível o referido recurso contra a decisão interlocutória que resolve o pedido de distinção em relação a matéria objeto de IRDR. 

9- O sistema recursal instituído pelo novo CPC prevê que, em regra, todas as decisões interlocutórias serão impugnáveis, seja imediatamente por agravo de instrumento, seja posteriormente por apelação ou contrarrazões, sendo certo que o Código estabeleceu que determinadas interlocutórias seriam irrecorríveis somente em seis específicas hipóteses, textualmente identificadas em lei. 

10- A decisão interlocutória que versa sobre a distinção entre a questão debatida no processo e a questão submetida ao IRDR é impugnável imediatamente também porque, se indeferido o requerimento de distinção e mantida a suspensão do processo, essa questão jamais poderia ser submetida ao Tribunal se devolvida apenas em apelação ou em contrarrazões quando já escoado o prazo de suspensão. 

11- É inviável na hipótese a impetração de mandado de segurança contra a decisão que resolve o requerimento de distinção, tendo em vista que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do tema repetitivo 988, além de fixar a tese da taxatividade mitigada, expressamente vedou o uso do mandado de segurança contra ato judicial, em especial contra decisões interlocutórias. 

12- Examinado detalhadamente o procedimento de distinção previsto no art. 1.037, §§9º a 13, constata-se que o legislador estabeleceu detalhado procedimento para essa finalidade, dividido em cinco etapas: (i) intimação da decisão de suspensão; (ii) requerimento da parte, demonstrando a distinção entre a questão debatida no processo e àquela submetida ao julgamento repetitivo, endereçada ao juiz em 1º grau; (iii) abertura de contraditório, a fim de que a parte adversa se manifeste sobre a matéria em 05 dias; (iv) prolação de decisão interlocutória resolvendo o requerimento; (v) cabimento do agravo de instrumento em face da decisão que resolve o requerimento. 

13- Hipótese em que parte, ao interpor agravo de instrumento diretamente em face da decisão de suspensão, saltou quatro das cinco etapas acima descritas, sem observar todas as demais prescrições legais. 

14- O detalhado rito instituído pelo novo CPC não pode ser reputado como mera e irrelevante formalidade, mas, sim, é procedimento de observância obrigatória, na medida em que visa, a um só tempo, densificar o contraditório em 1º grau acerca do requerimento de distinção, evitar a interposição de recursos prematuros e gerar a decisão interlocutória a ser impugnada (a que resolve a alegação de distinção), sob pena de violação ao duplo grau de jurisdição e supressão de instância. 

15- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, desprovido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. 

Brasília (DF), 10 de dezembro de 2019(Data do Julgamento)

7 de maio de 2021

DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 489, §1º, VI, DO CPC/15. INOBSERVÂNCIA DE SÚMULA, JURISPRUDÊNCIA OU PRECEDENTE CONDICIONADA À DEMONSTRAÇÃO DE DISTINÇÃO OU SUPERAÇÃO. APLICABILIDADES ÀS SÚMULAS E PRECEDENTES VINCULANTES, MAS NÃO ÀS SÚMULAS E PRECEDENTES PERSUASIVOS.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.698.774 - RS (2017/0173928-2) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DIVÓRCIO E PARTILHA DE BENS. DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 489, §1º, VI, DO CPC/15. INOBSERVÂNCIA DE SÚMULA, JURISPRUDÊNCIA OU PRECEDENTE CONDICIONADA À DEMONSTRAÇÃO DE DISTINÇÃO OU SUPERAÇÃO. APLICABILIDADES ÀS SÚMULAS E PRECEDENTES VINCULANTES, MAS NÃO ÀS SÚMULAS E PRECEDENTES PERSUASIVOS. PLANOS DE PREVIDÊNCIA PRIVADA ABERTA. REGIME MARCADO PELA LIBERDADE DO INVESTIDOR. CONTRIBUIÇÃO, DEPÓSITOS, APORTES E RESGATES FLEXÍVEIS. NATUREZA JURÍDICA MULTIFACETADA. SEGURO PREVIDENCIÁRIO. INVESTIMENTO OU APLICAÇÃO FINANCEIRA. DESSEMELHANÇAS ENTRE OS PLANOS DE PREVIDÊNCIA PRIVADA ABERTA E FECHADA, ESTE ÚLTIMO INSUSCETÍVEL DE PARTILHA. NATUREZA SECURITÁRIA E PREVIDENCIÁRIA DOS PLANOS PRIVADOS ABERTOS VERIFICADA APÓS O RECEBIMENTO DOS VALORES ACUMULADOS, FUTURAMENTE E EM PRESTAÇÕES, COMO COMPLEMENTAÇÃO DE RENDA. NATUREZA JURÍDICA DE INVESTIMENTO E APLICAÇÃO FINANCEIRA ANTES DA CONVERSÃO EM RENDA E PENSIONAMENTO AO TITULAR. PARTILHA POR OCASIÃO DO VÍNCULO CONJUGAL. NECESSIDADE. ART. 1.659, VII, DO CC/2002 INAPLICÁVEL À HIPÓTESE. PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES EQUIVOCADAS E JUNTADA DE DOCUMENTOS DE DECLARAÇÕES DE IMPOSTO DE RENDA FALSEADAS. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DA MATÉRIA. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO APENAS PELO DISSENSO JURISPRUDENCIAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 284/STF. 

1- Ação ajuizada em 28/09/2007. Recurso especial interposto em 13/02/2017 e atribuído à Relatora em 09/08/2017. 

2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o dever de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, previsto no art. 489, §1º, VI, do CPC/15, abrange também o dever de seguir julgado proferido por Tribunal de 2º grau distinto daquele a que o julgador está vinculado; (ii) se o valor existente em previdência complementar privada aberta na modalidade VGBL deve ser partilhado por ocasião da dissolução do vínculo conjugal; (iii) se a apresentação de declaração de imposto de renda com informação incorreta tipifica litigância de má-fé; (iv) se é possível partilhar valor existente em conta bancária alegadamente em nome de terceiro. 

3- A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado. 

4- Os planos de previdência privada aberta, operados por seguradoras autorizadas pela SUSEP, podem ser objeto de contratação por qualquer pessoa física e jurídica, tratando-se de regime de capitalização no qual cabe ao investidor, com amplíssima liberdade e flexibilidade, deliberar sobre os valores de contribuição, depósitos adicionais, resgates antecipados ou parceladamente até o fim da vida, razão pela qual a sua natureza jurídica ora se assemelha a um seguro previdenciário adicional, ora se assemelha a um investimento ou aplicação financeira. 

5- Considerando que os planos de previdência privada aberta, de que são exemplos o VGBL e o PGBL, não apresentam os mesmos entraves de natureza financeira e atuarial que são verificados nos planos de previdência fechada, a eles não se aplicam os óbices à partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal apontados em precedente da 3ª Turma desta Corte (REsp 1.477.937/MG). 

6- Embora, de acordo com a SUSEP, o PGBL seja um plano de previdência complementar aberta com cobertura por sobrevivência e o VGBL seja um plano de seguro de pessoa com cobertura por e sobrevivência, a natureza securitária e previdenciária complementar desses contratos é marcante no momento em que o investidor passa a receber, a partir de determinada data futura e em prestações periódicas, os valores que acumulou ao longo da vida, como forma de complementação do valor recebido da previdência pública e com o propósito de manter um determinado padrão de vida. 

7- Todavia, no período que antecede a percepção dos valores, ou seja, durante as contribuições e formação do patrimônio, com múltiplas possibilidades de depósitos, de aportes diferenciados e de retiradas, inclusive antecipadas, a natureza preponderante do contrato de previdência complementar aberta é de investimento, razão pela qual o valor existente em plano de previdência complementar aberta, antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, possui natureza de aplicação e investimento, devendo ser objeto de partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal por não estar abrangido pela regra do art. 1.659, VII, do CC/2002. 

8- Definido, pelo acórdão recorrido, que a prestação de informações equivocadas e a sucessiva juntada de diferentes declarações de imposto de renda se deu com o propósito específico de ocultar informações relacionadas ao patrimônio e, consequentemente, influenciar no desfecho da partilha de bens, disso resultando a condenação da parte em litigância de má-fé, é inviável a modificação do julgado para exclusão da penalidade em razão do óbice da Súmula 7/STJ. 

9- É imprescindível a indicação no recurso especial do dispositivo legal sobre o qual se baseia a divergência jurisprudencial, não sendo cognoscível o recurso interposto apenas com base na alínea “c” do permissivo constitucional em razão do óbice da Súmula 284/STF. 

10- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nestar parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. 

Brasília (DF), 1º de setembro de 2020(Data do Julgamento) 

RELATÓRIO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto por I L E, com base nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/RS que, por unanimidade, deu parcialmente provimento ao recurso de apelação que havia sido por ela interposto. 

Recurso especial interposto e m: 13/02/2017. Atribuído ao gabinete e m: 09/08/2017. 

Ação: de divórcio cumulada com partilha de bens, ajuizada pela recorrente em face de W E, recorrido. 

Sentença: julgou parcialmente procedentes os pedidos, para decretar o divórcio, afastar o recorrido do lar conjugal e partilhar, igualitariamente, a relação de bens que enumera (fls. 324/329, e-STJ). 

Acórdão: por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso de apelação da recorrente, nos termos da seguinte ementa: 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DIVÓRCIO. SEPARAÇÃO DE FATO. MANUTENÇÃO DA DELIMITAÇÃO PROCEDIDA NA SENTENÇA. PARTILHA DO PRODUTO DA VENDA DE BENS ALIENADOS DEPOIS DA RUPTURA. ADEQUAÇÃO. EXCLUSÃO DO VEÍCULO ADQUIRIDO DEPOIS DO DESENLACE. CABIMENTO. COMUNICABILIDADE DO SALDO DEPOSITADO JUNTO AO PLANO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA. NÃO COMPROVAÇÃO DE QUE OS VALORES DEPOSITADOS EM CONTA BANCÁRIA PERTENCIAM A TERCEIROS. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONFIGURAÇÃO. CONDENAÇÃO, DE OFÍCIO. REDISTRIBUIÇÃO DA SUCUMBÊNCIA. DESCABIMENTO. 1. Corretamente reconhecida na origem a ocorrência da separação de fato do casal na data do ajuizamento da ação de separação judicial pelo apelado (em apenso), ainda que o pedido liminar de seu afastamento do lar conjugal tenha sido deferido um mês depois. 2. Integra a partilha o produto da venda do veículo GM/Blazer e da motocicleta Honda/Biz, uma vez que a alienação de tais bens ocorreu posteriormente ao desenlace, sem comprovação de posterior repasse da meação em favor do apelado. 3. Tendo em vista que o veículo Ford/Fiesta foi objeto de arrendamento mercantil contratado pela recorrente depois do desenlace, merece acolhimento seu pedido de exclusão do acervo partilhável. Sentença reformada, no ponto. 4. São partilháveis os valores empregados no curso da relação em previdência privada em nome do recorrente, pois tais valores, a exemplo do que ocorre com aqueles recolhidos na conta vinculada do FGTS durante o relacionamento, são comunicáveis. 5. Não se desincumbiu a recorrente de comprovar sua tradução de que os valores depositados em sua conta bancária pertenciam de fato a seus genitores, mas que, em razão da idade avançada, eram por si administrados, com o que deve ser mantida a determinação de partilha desses valores. 6. Caso em que resta configurado o agir de má-fé da recorrente, que apresentou ao feito, após a prolação da sentença, documento adulterado e contendo informações falsas, com a intenção de comprovar suas alegações. Caracterização das hipóteses previstas nos incisos II e V do art. 80 do NCPC. Condenação, de ofício, ao pagamento de multa, conforme art. 81 do NCPC. 7. Não há falar em decaimento mínimo experimentado pela recorrente, sendo ajustada a redistribuição da sucumbência estabelecida na sentença. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. CONDENAÇÃO, DE OFÍCIO, POR LITIGÃNCIA DE MÁ-FÉ. (fls. 479/493, e-STJ). 

Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram rejeitados por unanimidade (fls. 519/531, e-STJ). 

Recurso especial: alega-se: (i) violação ao art. 489, §1º, VI, do CPC/15, ao fundamento de que teriam sido colacionados diversos julgados de Tribunais de Justiça, que deveriam ser observados pelo acórdão recorrido, salvo na hipótese de distinção ou de superação de entendimento; (ii) violação ao art. 1.659, VII, do CC/2002, ao fundamento de que o valor existente em previdência complementar privada aberta possuiria natureza personalíssima e não poderia ser objeto de partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal; (iii) violação aos arts. 80, II e V, e 81, ambos do CPC/15, ao fundamento de que a apresentação de declaração de imposto de renda com informação incorreta seria mero equívoco e não tipificaria a litigância de má-fé; (iv) dissídio jurisprudencial quanto à possibilidade ou não de partilha de valor existente em conta bancária alegadamente em nome de terceiro (fls. 537/564, e-STJ). 

Ministério Público Federal: opinou pelo desprovimento do recurso especial (fls. 652/658, e-STJ). 

É o relatório. 

VOTO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator): Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o dever de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, previsto no art. 489, §1º, VI, do CPC/15, abrange também o dever de seguir julgado proferido por Tribunal de 2º grau distinto daquele a que o julgador está vinculado; (ii) se o valor existente em previdência complementar privada aberta na modalidade VGBL deve ser partilhado por ocasião da dissolução do vínculo conjugal; (iii) se a apresentação de declaração de imposto de renda com informação incorreta tipifica litigância de má-fé; (iv) se é possível partilhar valor existente em conta bancária alegadamente em nome de terceiro. 

DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E DE OBSERVÂNCIA DE SÚMULA, JURISPRUDÊNCIA OU PRECEDENTE. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 489, §1º, VI, DO CPC/15. 

01) Nas razões de seu recurso especial, alega a recorrente que teria invocado, na apelação, uma série de julgados abonadores de sua tese de impossibilidade de partilha da previdência complementar privada aberta, proferidos pelo TJ/SP e pelo TJ/DFT, que não teriam sido observados pelo TJ/RS por ocasião do julgamento do referido recurso. 

02) Argumenta a recorrente, em razão disso, que teria ocorrido violação ao art. 489, §1º, VI, do CPC/15, na medida em que somente seria lícito ao TJ/RS afastar-se do entendimento contido nos julgados do TJ/SP e do TJ/DFT se houvesse fundamentação relacionada à distinção em relação à hipótese em exame ou à superação do entendimento materializado naqueles julgados. 

03) O dispositivo legal alegadamente violado possui o seguinte conteúdo: 

Art. 489. São elementos essenciais da sentença: (...) §1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. 

04) Examinando-se o conteúdo do referido dispositivo legal, verifica-se que a nova lei processual exige do juiz um ônus argumentativo diferenciado na hipótese em que pretenda ele se afastar da orientação firmada em determinadas espécies de julgados, a saber, que demonstre a existência de distinção entre a hipótese que lhe fora submetida e o paradigma invocado ou de superação do entendimento firmado no paradigma invocado. 

05) Denota-se, pois, que o art. 489, §1º, VI, do CPC/15, possui, em sua essência, uma indissociável relação com o sistema de precedentes tonificado pela nova legislação processual, razão pela qual a interpretação sobre o conteúdo e a abrangência daquele dispositivo deve levar em consideração que o dever de fundamentação analítica do julgador, no que se refere à obrigatoriedade de demonstrar a existência de distinção ou de superação, limita-se às súmulas e aos precedentes de natureza vinculante, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos. 

06) Quanto ao ponto, anote-se a precisa lição de Daniel Amorim Assumpção Neves: 

No inciso VI do §1º do art. 489 do CPC, há previsão de que não se considera fundamentada decisão que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou de superação do entendimento. Lamenta-se a utilização do termo jurisprudência ao lado de súmula e precedente, não se devendo misturar a abstração e generalidade da jurisprudência com o caráter objetivo e individualizado da súmula e do precedente. De qualquer forma, como a aplicabilidade do dispositivo legal é limitada à eficácia vinculante do julgamento ou da súmula, a remissão à jurisprudência perde o sentido e torna-se inaplicável. Diferentemente do que ocorre com o inciso antecedente, o inciso VI do §1º do art. 489 do CPC não se aplica a súmulas e precedentes meramente persuasivos (Enunciado 11 da ENFAM: “Os precedentes a que se referem os incisos V e VI do §1º do art. 489 do CPC/2015 são apenas os mencionados no art. 927 e no inciso IV do art. 332”), porque, nesse caso, o juiz pode simplesmente deixar de aplicá-los por discordar de seu conteúdo, não cabendo exigir-se qualquer distinção ou superação que justifique a sua decisão. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 883/884). 

07) Na hipótese em exame, dado que a recorrente invocou, para o julgamento da apelação perante o TJ/RS, apenas julgados proferidos pelo TJ/SP e pelo TJ/DFT no mesmo sentido de sua tese recursal de impossibilidade de partilha da previdência complementar privada aberta, o acórdão recorrido não estava obrigado a considerá-los por ocasião do julgamento da apelação e, por via de consequência, também não estava obrigado a estabelecer qualquer distinção ou superação do entendimento firmado pelo TJ/SP e pelo TJ/DFT, razão pela qual não há que se falar em violação ao art. 489, §1º, VI, do CPC/15. 

PARTILHA DE VALOR EXISTENTE EM PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR PRIVADA ABERTA NA MODALIDADE VGBL POR OCASIÃO DO DIVÓRCIO. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.659, VII, DO CC/2002. 

08) Em seu recurso especial, a recorrente alega que o valor de R$ 105.000,00 (cento e cinco mil reais) que possuía em previdência complementar privada aberta na modalidade VGBL por ocasião do divórcio não seria suscetível de partilha, na medida em que se trataria de verba de natureza alimentar e personalíssima, originada de seu esforço pessoal e para a qual não teria havido contribuição alguma do recorrido, tratando-se de valor incomunicável porque seria apenas destinada a garantir a sua renda após determinada idade. 

09) Ao enfrentar o tema, o acórdão recorrido assim se posicionou: 

Com relação ao valor depositado ao tempo da separação junto ao Banco do Brasil oriundo de plano de previdência privada, com a devida vênia, tenho que não assiste razão à recorrente ao postular sua exclusão da partilha, uma vez que, a exemplo do que ocorre com aqueles valores recolhidos na conta vinculada do FGTS durante o relacionamento, são comunicáveis.No ponto, é aplicável, por analogia, a orientação consolidada em recente precedente da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, referente ao julgamento do Recurso Especial nº. 1.399.199/RS, em que se reconheceu o direito à meação sobre os valores aplicados em conta do FGTS auferidos durante a constância da relação, ainda que o saque não tenha sido realizado imediatamente à separação do casal, ou seja, ainda que não tenham sido levantados pelo titular da conta vinculada antes da ruptura: (...) Sendo assim, e considerando que, no caso, o plano de previdência foi contratado durante o casamento (em 25.07.2006, fI. 275; saldo de R$ 105.000,00 em 31.12.2006, fl. 289), incide, portanto, a presunção de esforço comum do casal para a realização dos depósitos mensais, de modo que a manutenção do reconhecimento judicial da comunicabilidade do valor existente ao tempo da separação é medida imperativa. 

10) O dispositivo alegadamente violado possui o seguinte teor: 

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes. 

11) De início, anote-se que a hipótese em exame versa sobre previdência privada aberta, tratando-se de situação distinta da previdência privada fechada que foi objeto de recente exame por esta Corte, oportunidade em que se concluiu se tratar de bem incomunicável e insuscetível de partilha. 

12) Com efeito, por ocasião do julgamento do REsp 1.477.937/MG, 3ª Turma, DJe 20/06/2017, concluiu-se que a previdência privada fechada é fonte de renda semelhante às pensões, meio-soldos e montepios (art. 1.659, VII, do CC/2002), de natureza personalíssima e equiparável, por analogia, à pensão mensal decorrente de seguro por invalidez, adotando-se, naquela oportunidade, as seguintes razões de decidir: 

O Brasil, mercê de adotar um sistema misto, priorizou o sistema estatal, o conhecido Regime Geral de Previdência Social, a cargo do INSS, de caráter público e compulsório, que prevê benefícios limitados a um teto legal máximo, aptos a permitir a manutenção dos meios necessários à sobrevivência do trabalhador, sem, contudo, garantir idêntico padrão de vida que gozava o trabalhador na ativa. Ao lado da previdência pública há o chamado Regime Complementar, privado e facultativo, gerido por entidades abertas e fechadas de previdência, visando atender a pretensão daqueles que almejam uma renda maior na inatividade. Daí a importância da previdência complementar, qual seja, de atender o interesse daqueles que almejam gozar de uma velhice com maior conforto a partir de um patamar econômico similar ao desfrutado na ativa, por meio da percepção de valores superiores ao limite imposto pela previdência social obrigatória, manifestamente insuficiente para manter determinado padrão de vida almejado. A previdência privada possibilita, portanto, a constituição de reservas de contingências futuras e incertas da vida por meio de entidades organizadas de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, sem fins lucrativos. (...) O sistema previdenciário privado é previsto tanto constitucionalmente (art. 202 da CF/1988), com destaque para a EC nº 20/1998, como infraconstitucionalmente, por meio da edição da Lei Complementar nº 109/2001. As entidades fechadas de previdência complementar, diferentemente das abertas (tema alheio aos autos), disponibilizam os planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas aos quais os empregados estão atrelados, sem se confundir, contudo, com relação laboral. Nos fundos de previdência privada fechada ou fundos de pensão, a rentabilidade e o superávit revertem integralmente ao plano de previdência (§ 1º art. 35 Lei Complementar nº 109/2001) oferecidos por empresas públicas ou privadas, e fiscalizados pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC, autarquia vinculada ao Ministério da Previdência Social. Sua contratação é facultativa, visando a constituição de reservas que garantam benefício de caráter previdenciário (art. 2º da LC 109/2001), consoante previsto em estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades previdenciárias. Como se percebe, o aporte é desvinculado do contrato de trabalho do participante (REsp nº 1.207.071/RJ, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em DJe 8/8/2012), e por tal motivo não integra a remuneração do participante (art. 202, § 2º, da CF/1988). Consigne-se que a Lei nº 10.243/2001 incluiu o inciso VI no § 2º do art. 458 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que afasta do conceito de salário o instituto da previdência privada. (...) Por sua vez, não faria sentido possibilitar a partilha do benefício, visto que o princípio nuclear da previdência complementar fechada é justamente o equilíbrio financeiro e atuarial. Aliás, ressalta-se que tal verba não pode sequer ser levantada ou resgatada ao bel prazer do participante, que deve perder o vínculo empregatício com a patrocinadora ou completar os requisitos para tanto, sob pena de violação de normas previdenciárias e estatutárias. E, apenas a título de argumentação, admitir a possibilidade de resgate antecipado de renda capitalizada, em desfavor de uma massa de participantes e beneficiários de um fundo, significaria lesionar terceiros de boa-fé que assinaram previamente o contrato sem tal previsão. Ademais, não se pode negar que o equilíbrio atuarial, preceito elementar e inerente ao sistema previdenciário, é permeado de cálculos extremamente complexos, que consideram para a saúde financeira da entidade, inúmeras variáveis, tais como a expectativa de vida, o número de participantes, o nível de remuneração atual e o percentual de substituição do benefício complementar. Acrescer o regime de casamento ao cálculo desequilibraria o sistema como um todo, criando a exigência de que os regulamentos e estatutos das entidades previdenciárias passassem a considerar o regime de bens de união estável ou casamento dos participantes no cálculo atuarial, o que não faz o menor sentido por não se estar tratando de uma verba tipicamente trabalhista, mas, sim, de pensão, cuja natureza é distinta. Por outro lado, eventuais mudanças na forma de cálculo que possam comprometer o equilíbrio financeiro e atuarial devem ser evitadas por desafiar ampla comprovação da sua indispensabilidade, à luz do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica, os quais impõem cautela e discernimento em tais alterações. 

13) O regime de previdência privada aberta, entretanto, é substancialmente distinto da previdência privada fechada que foi objeto de exame no referido precedente. 

14) Com efeito, a previdência privada aberta, que é operada por seguradoras autorizadas pela SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, pode ser objeto de contratação por qualquer pessoa física ou jurídica, tratando-se de regime de capitalização no qual cabe ao investidor, com amplíssima liberdade e flexibilidade, deliberar sobre os valores de contribuição, depósitos adicionais, resgates antecipados ou parceladamente até o fim da vida. 

15) Diante dessas feições muito próprias, a comunicabilidade e partilha de valor aportado em previdência privada aberta, cuja natureza jurídica ora se assemelha a um seguro previdenciário adicional, ora se assemelha a um investimento ou aplicação financeira, é objeto de profunda divergência doutrinária. 

16) De um lado, há quem sustente a incomunicabilidade e consequente exclusão dos referidos valores da partilha decorrente da dissolução do vínculo conjugal. Nesse sentido, leciona Rolf Madaleno: 

Os fundos de pensão privada correspondem à aposentadoria ou benefício a ser pago diante da incapacidade, ou em decorrência da morte do contribuinte e por isso são classificados como tendo natureza pessoal e incomunicável, por se tratar de um direito inerente à pessoa, embora o contribuinte possa indicar quem ele quer que seja(m) seu(s) beneficiário(s), servindo como eficiente instrumento para gerar valores ao beneficiário indicado, que não passam pelo inventário do instituidor. Por sua natureza a previdência privada estaria excluída do patrimônio comum no regime da comunhão parcial (CC, art. 1.659, VII) e na comunhão universal de bens (CC, art. 1.668, V), comunicando-se, no entanto, no regime da participação final nos aquestos, que não previu sua exclusão e tampouco atribuiu caráter personalíssimo ao benefício advindo da previdência privada, observando João Andrades Carvalho, em comentário feito ainda ao tempo de vigência do Código Civil de 1916, que “a lei exclui do condomínio todo bem que tiver origem na individualidade, isto é, que seja marcado fundamentalmente pela pessoalidade ou que tenha destino nessa mesma direção”. Há quem defenda a comunicação da previdência privada por haver sido adquirida com valores provenientes do esforço comum durante a união, constituindo-se, portanto, em típico ativo financeiro, devendo por isso ser partilhado no divórcio, ou na dissolução da união estável como um bem patrimonial. Mas, se for considerado um bem patrimonial a ser dividido no divórcio ou na dissolução da convivência, ocorrendo o óbito do titular da previdência, ela também poderia ser reclamada como bem sucessível do espólio, para sua divisão entre todos os coerdeiros. Contudo, este raciocínio não é aplicado porque uma das maiores vantagens da previdência privada reside na liberalidade conferida na indicação do beneficiário. Na ausência de apontamento do beneficiário alguns entendimentos jurisprudenciais aplicam o artigo 792 do Código Civil, pagando metade do pecúlio ao cônjuge não separado e o restante aos herdeiros do participante, conforme a ordem da vocação hereditária. Pertinente destacar ser a previdência privada uma extensão da previdência social, cujo principal propósito é manter o padrão de vida das pessoas em situação de necessidade. Tem a natureza jurídica de um seguro, não sendo visto como uma extensão do direito sucessório, pois basta perguntar se eventual renúncia de herdeiro ao direito sucessório também atingiria o plano de previdência privada. (MADALENO, Rolf. Planejamento sucessório in Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 1, jan./fev. 2014, p. 24/25). 

17) Em sentido oposto, propondo a comunicabilidade e consequente inclusão dos referidos valores da partilha decorrente da dissolução do vínculo conjugal, ensina Flávio Tartuce: O presente autor continua seguindo o entendimento segundo o qual os fundos de previdência privada constituem aplicações financeiras, devendo ocorrer sua comunicação finda a união, tese que sempre foi defendida por José Fernando Simão. Conforme apontado pelo coautor em edições anteriores desta obra, “antes de se atingir a idade estabelecida no plano, a previdência privada não passa de aplicação financeira como qualquer outra. Não há pensão antes desse momento e, portanto, não há incomunicabilidade. Isso porque, sequer há certeza de que, ao fim do plano, efetivamente os valores se converterão em renda ou serão sacados pelo titular. Trata-se de opção dos cônjuges o investimento em previdência privada, em fundos de ações ou de renda fixa. Assim, as decisões transcritas permitem a fraude ao regime, bastando que, para tanto, em vez de um dos cônjuges adquirir um imóvel ou investir em fundos (bens partilháveis ao fim do casamento), invista na previdência privada para se ver livre da partilha. Quando há a conversão da aplicação em renda e o titular passa a receber o benefício, este sim será incomunicável por ter caráter de pensão”. (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 5: direito de família. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 187/188). 

18) Como se percebe, os planos de previdência privada aberta, de que são exemplos o VGBL e o PGBL, não apresentam os mesmos entraves de natureza financeira e atuarial que são verificados nos planos de previdência fechada e que foram apontados no precedente desta 3ª Turma (REsp 1.477.937/MG) como óbices à partilha, pois, na previdência privada aberta, há ampla flexibilidade do investidor, que, repise-se, poderá escolher livremente como e quando receber, aumentar ou reduzir contribuições, realizar aportes adicionais, resgates antecipados ou parcelados a partir da data que porventura indicar. 

19) De outro lado, conquanto o PGBL seja classificado como “plano de previdência complementar aberta com cobertura por sobrevivência” (Circular SUSEP nº 338/2007) e o VGBL seja tipificado como “plano de seguro de pessoa com cobertura por e sobrevivência” (Circular SUSEP nº 339/2007), não se pode olvidar que tais contratos assumiram funções substancialmente distintas daquelas para as quais foram concebidos. 

20) Com efeito, a natureza securitária e previdenciária complementar desses contratos é evidentemente marcante no momento em que o investidor passa a receber, a partir de determinada data futura e em prestações periódicas, os valores que acumulou ao longo da vida, como forma de complementação do valor recebido da previdência pública e com o propósito de manter um determinado padrão de vida. 

21) Entretanto, no período que antecede a percepção dos valores, ou seja, durante as contribuições e formação do patrimônio, com múltiplas possibilidades de depósitos, de aportes diferenciados e de retiradas, inclusive antecipadas, a natureza preponderante do contrato de previdência complementar aberta é de investimento, semelhantemente ao que ocorreria se os valores das contribuições e dos aportes fossem investidos em fundos de renda fixa ou na aquisição de ações e que seriam objeto de partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal ou da sucessão. 

22) Sublinhe-se que o hipotético tratamento diferenciado entre os investimentos realizados em previdência privada complementar aberta (incomunicáveis) e os demais investimentos (comunicáveis) possuiria uma significativa aptidão para gerar profundas distorções no regime de bens do casamento e também na sucessão, uma vez que bastaria ao investidor direcionar seus aportes para essa modalidade para frustrar a meação dos cônjuges ou a legítima dos herdeiros. 

23) A esse respeito, anote-se a lição de Ana Luiza Maia Nevares: 

Já em relação ao VGBL e ao PGBL, há muitos debates sobre a natureza de tais investimentos. Segundo boa parte da doutrina e da jurisprudência, é indiscutível o caráter securitário do VGBL e do PGBL, o que significa dizer que tais planos são tidos como espécie de seguro, sendo, inclusive, regulados pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. Por tal razão, argumenta-se que não incide imposto de transmissão causa mortis sobre o capital segurado, não ingressando este no inventário. No entanto, em alguns Estados, como o Rio de Janeiro, há lei estadual que expressamente institui a incidência do imposto de transmissão causa mortis sobre tais recursos (Lei Estadual do Rio de Janeiro, n. 7174/15, art. 23). A questão, de fato, é tormentosa, uma vez que o VGBL e o PGBL, embora tenham natureza securitária, constituem capital de titularidade do segurado, que o administra da maneira que lhe convém, podendo sacá-lo a qualquer tempo. Enquanto tal capital não resta convertido em renda periódica, a previdência privada é um investimento como outro qualquer, razão pela qual não só devem ser tributados, como também devem ser contabilizados para fim de colação ou de partilha decorrente do regime de bens. Realmente, de outra maneira, seria fácil burlar a legítima, bastando que o autor da herança aplicasse todos os seus recursos financeiros em um VGBL, por exemplo, destinando-o a apenas um dos herdeiros necessários em caso de falecimento, ou mesmo burlar o regime de bens, na hipótese em que um cônjuge aplicasse os recursos do casal em investimento como o ora mencionado, nomeando um terceiro como beneficiado. (NEVARES, Ana Luiza Maia. Perspectivas para o planejamento sucessório in Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 18, nov./dez. 2016, p. 19/20). 

24) Diante desse cenário, é correto afirmar que os valores aportados em planos de previdência privada aberta, antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, possuem natureza de aplicação e investimento, devendo ser objeto de partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal por não estarem abrangidos pela regra do art. 1.659, VII, do CC/2002. 

DECLARAÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA COM INFORMAÇÃO INCORRETA E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 80, II E V, E 81, AMBOS DO CPC/15. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO. SÚMULA 7/STJ. 

25) Alega o recorrente, ademais, que a simples informação errônea de determinados dados em declaração de imposto de renda seria mero equívoco e não configuraria litigância de má-fé, razão pela qual o acórdão recorrido teria violado os arts. 80, II e V, e 81, ambos do CPC/15, transcritos adiante in verbis: 

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: (...) II – alterar a verdade dos fatos; (...) V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (...) Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou. 

26) Ocorre que, examinando-se a fundamentação adotada pelo acórdão recorrido, constata-se que o TJ/RS identificou que a prestação de informações equivocadas e a sucessiva juntada de diferentes declarações de imposto de renda se deu com o propósito específico de ocultar informações relacionadas ao patrimônio e, consequentemente, influenciar no desfecho da partilha de bens. 

27) A esse respeito, confiram-se as razões de decidir expendidas no acórdão recorrido: 

A duas, porque, com a intenção de confortar sua alegação de que tais valores não integram seu patrimônio pessoal, não sendo por si declarados ao Fisco, a recorrente acostou ao feito, após a prolação da sentença (ou seja, de forma extemporânea), uma cópia da declaração de renda apresentada no exercício 2007, que foi recebida pelo agente receptor em 29.04.2007, com indicação de não se tratar de retificadora (fls. 285/291), na qual não há discriminação da importância ora questionada. Contudo, enquanto a “declaração de bens e direitos” deveria constar da “página 4 de 6”, o fato é que a discriminação dos bens constou da “página 1 de 1” (fl. 289), ocorrência que revela ter havido posterior manipulação dos dados informativos, situação que se confirma diante do desalinho constatado entre a evolução patrimonial indicada na “página 6 de 6” (R$ 837.189,94 em 31.12.2005 e R$ 906.672,91 em 31.12.2006, fl. 290) e a situação dos bens informada na aludida “página 1 de 1” (R$ 321.555,24 em 31.12.2005 e R$ 348.588,64 em 31.12.2006, fl. 289). Observo, por oportuno, que, relativamente ao exercício 2007, foi apresentada ao feito uma terceira cópia da declaração de renda da recorrente, juntamente com sua peça inicial, esta classificada como retificadora e recebida pelo agente receptor SERPRO em 24.09.2007 (fl. 29), ou seja, depois do desenlace. No tópico atinente à “declaração de bens e direitos”, constante da “página 4 de 6”, não há referência à importância ora questionada, impressionando, no entanto, que a informação respeitante à totalidade dos bens e à evolução patrimonial (R$ 271.555,24 em 31.12.2005 e R$ 258.588,64, fI. 33) tampouco corresponde àquela constante da declaração que foi acostada ao feito pela recorrente após a prolação da sentença (R$ 321.555,24 em 31.12.2005 e R$ 348.588,64 em 31.12.2006, fI. 289), extraindo-se desse contexto o seu inequívoco agir de má-fé, por alterar a verdade dos fatos, industriando um documento com informação falsa, e por proceder de modo temerário (incisos II e V do art. 80 do NCPC), comportamento processual pelo qual deve ser responsabilizada. 

28) A partir do exame da prova produzida nos autos, pois, o acórdão recorrido concluiu ter havido adulteração dolosa de informações em declaração de imposto de renda com a finalidade de influenciar o resultado da partilha, tratando-se de circunstância fática insuscetível de reexame no âmbito do recurso especial em razão do óbice da Súmula 7/STJ. 

DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL SOBRE PARTILHA DE VALOR EM CONTA BANCÁRIA ALEGADAMENTE DE TERCEIRO. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO. SÚMULA 284/STF E SÚMULA 7/STJ. 

29) Finalmente, a recorrente também alega que teria havido a indevida partilha de valor existente em conta bancária alegadamente em nome de terceiro, sendo que o recurso especial, quanto ao ponto, está assentado somente na alínea “c” do permissivo constitucional, ao fundamento de que esse entendimento destoaria de julgado proferido pelo TJ/BA supostamente sobre a mesma matéria. 

30) Ocorre que a jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que é imprescindível a indicação no recurso especial do dispositivo legal sobre o qual se baseia a divergência jurisprudencial, não sendo cognoscível o recurso interposto apenas com base na alínea “c” do permissivo constitucional em razão do óbice da Súmula 284/STF. A esse respeito: AgRg no REsp 1.346.588/DF, Corte Especial, DJe 17/03/2014 e EDcl no AREsp 806.419/SP, 3ª Turma, DJe 22/2/2016). 

31) De outro lado, não se pode olvidar que o acórdão recorrido, ao apreciar a questão, assim decidiu: 

A uma, porque prova documental alguma foi produzida na instrução pela insurgente a fim de comprovar sua tradução de que esses valores pertenciam, de fato, aos seus genitores, mas que, em razão da idade avançada deles, eram por si administrados, motivo por que figuraria como titular secundária da conta bancária, a qual sequer especificou (número e agência) em suas manifestações, não apresentando nenhum registro bancário nesse sentido. 

32) Como se verifica, o acórdão recorrido concluiu ser partilhável o valor porque não houve prova de que a conta seria de titularidade de terceiros (genitores da recorrida), tratando-se de matéria insuscetível de reexame no âmbito do recurso especial em virtude do óbice da Súmula 7/STJ. 

CONCLUSÃO 

33) Forte nessas razões, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e, nessa extensão, NEGO-LHE PROVIMENTO, deixando de majorar os honorários por se tratar de sentença proferida na vigência do CPC/73 (EAREsp 1.255.986/PR, Corte Especial, DJe 06/05/2019). 

1 de novembro de 2017

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS PROVIMENTOS VINCULANTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A PARTIR DO PARADIGMA DO PÓS-POSITIVISMO; Revista de Processo, vol. 245, p. 351 - 377, Jul / 2015

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS PROVIMENTOS VINCULANTES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A PARTIR DO PARADIGMA DO PÓS-POSITIVISMO

Interpretation and application of binding provisionses of the New Code of Civil Procedure from the post positivism paradigm
Revista de Processo | vol. 245/2015 | p. 351 - 377 | Jul / 2015
DTR\2015\11015
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Georges Abboud
Doutor e Mestre em direitos difusos e coletivos pela PUC-SP. Professor do programa de Mestrado e Doutorado da Fadisp. Advogado.

Marcos de Araújo Cavalcanti
Mestre e Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo - Ceapro e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo - Annep. Procurador do Distrito Federal. Advogado.

Área do Direito: Processual

Resumo: O presente texto procura analisar a forma como devem ocorrer a interpretação e a aplicação dos precedentes conforme a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico.

 Palavras-chave:  Pós-positivismo - Precedentes - Interpretação - Aplicação.

Abstract: This paper analyzes the way it should occur the interpretation and application of the precedents as the post positivism understanding of the judicial phenomenon.

 Keywords:  Post positivism - Precedents - Interpretation - Application.

Sumário:  
- 1.Introdução: conceito de norma jurídica - 2.Fundamentos do paradigma pós-positivista - 3.Consequências da interpretação e aplicação dos precedentes conforme o paradigma pós-positivista - 4.Conclusões


Recebido em: 08.05.2015
Aprovado em: 18.06.2015

1. Introdução: conceito de norma jurídica

A partir da primeira metade século 20, o conceito de norma jurídica, desenvolvida inicialmente na Europa continental, passa a ser conceito central para teoria do direito. Foi nesse século que foram criadas as teorias da norma jurídica. Antes, não havia uma teoria propriamente dita.1
Atribui-se à Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen uma das primeiras e mais importantes construções teóricas sobre o conceito de norma jurídica. Para a teoria kelseniana, o conceito de direito confunde-se com o próprio conceito de norma jurídica. Todavia, isso não quer dizer que o conceito de norma se equipara ao de lei. Segundo Kelsen, a lei, na verdade, é apenas uma espécie de norma que faz parte de toda a estrutura da dinâmica jurídica.2
De acordo com a teoria kelseniana, a norma jurídica é conceituada como um esquema de interpretação (conceito semântico de norma) que determina o sentido objetivo dos atos humanos, conferindo a eles um significado de direito. Assim, a norma jurídica confere sentido jurídico aos atos da conduta humana. Todavia, a própria norma é produzida por um ato jurídico que também recebe a sua significação jurídica de uma outra norma, na estrutura dinâmica da ordem jurídica.3
Nas palavras de Kelsen: “A norma funciona como esquema de interpretação. O juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma”.4
Para a finalidade do presente artigo, importa destacar que na teoria kelseniana a norma jurídica possui caráter semântico. Ou seja, ela preexiste abstratamente antes mesmo da problematização jurídica. Assim, de acordo com Kelsen, o conceito de norma pode ser construído em abstrato, sem qualquer aplicação pragmática a um determinado caso concreto.5
A teoria da norma jurídica de Kelsen influenciou outros juristas. Por exemplo, Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, apesar de ter tentado superar alguns aspectos do conceito formulado pela teoria kelseniana, também estabeleceu um conceito semântico de norma jurídica, uma vez que, ela é um ente abstrato que se subdivide em duas espécies: regras e princípios. Pode-se dizer, portanto, que Alexy, assim como Kelsen, mantém o conceito de norma como um esquema de interpretação que dispensa a problematização para a sua existência, confirmando, com isso, o seu caráter semântico.
De acordo com Alexy, “o conceito semântico de norma certamente não é igualmente adequado a todas as finalidades, mas quando se trata de problemas de dogmática jurídica e da aplicação do direito é sempre mais adequado que qualquer outro conceito de norma. Esses âmbitos dizem respeito a questões como a de saber se duas normas são logicamente compatíveis, quais são as consequências de uma norma, como interpretá-la e aplicá-la, se ela é válida e, algumas vezes, se a norma, quando invalidada, deveria ser válida. O conceito semântico de norma é adequado exatamente para lidar com essas questões”.6
Como se verifica, Robert Alexy também atribui à norma um caráter semântico. Segundo essa concepção, a norma jurídica preexiste abstratamente antes mesmo da problematização jurídica. Por essa razão, o conceito semântico de norma influencia diretamente os conceitos de regras e princípios na obra de Alexy, para quem a norma constitui o gênero do qual são espécies os princípios e as regras.
Ao conceituar princípios afirma que estes “são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”.7
Por outro lado, ao tratar das regras, o autor explica que estas “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contém, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio”.8
A teoria da norma de Alexy fundamenta-se principalmente nessa distinção entre regras e princípios em mandados de definição e mandados de otimização, respectivamente. As regras e princípios, portanto, seriam espécies do gênero norma jurídica. Norma esta ante casum.9
De acordo com Alexy, “a distinção entre regras e princípios constitui, além disso, a estrutura de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, com isso, um ponto de partida para a resposta à pergunta acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a distinção entre regras e princípios é uma das colunas-mestras do edifício da teoria dos direitos fundamentais”.10
Acontece que essa distinção somente é possível tendo em vista que o conceito de norma, na teoria alexyana, é operada no plano semântico, abstrato, desconsiderando a problematização jurídica. Segundo entende a doutrina, “por mais clara que esta distinção possa parecer, desde o ponto de vista lógico, ela sempre levará a mal entendidos por se tratar de uma artificialidade que não problematiza a questão no âmbito pragmático”.11
Assim, surgiram autores, como Ronald Dworkin, que não aceitam o caráter semântico da norma jurídica. Para o autor, não há conceito prévio e abstrato de norma jurídica. Isto é, a normatividade somente surge concretamente na própria atividade interpretativa e não em um sistema lógico previamente determinado.12
Conforme a teoria de Ronald Dworkin, o direito surge de um processo interpretativo de construção e justificação. Essa ideia contrapõe-se às teorias semânticas da norma jurídica, que aceitam que as decisões judiciais sejam firmadas com base em processo de subsunção de fatos à norma jurídica.13 De acordo com essas teorias, a norma jurídica preexiste, devendo apenas ao intérprete verificar o correto enquadramento dos fatos à norma jurídica.
Dworkin critica veementemente as teorias semânticas, sustentando a necessidade de uma interpretação construtiva e pragmática acerca da aplicação do direito.14 Segundo explica: “Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí não se segue, mesmo depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; que um membro da comunidade hipotética fascinado pela igualdade, por exemplo, possa de boa-fé afirmar que, na verdade, a cortesia exige que as riquezas sejam compartilhadas. Pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos, ainda que, como veremos, a natureza dessa coerção deva ser examinada com cuidado. Do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto”.15
O conceito de norma, desse modo, é colocado em plano pragmático (concreto) e não mais meramente semântico (abstrato) como entendem Kelsen e Alexy. A norma deixa de ser um mero esquema de interpretação de caráter semântico e passa a ser compreendida como a própria interpretação, que é inerente à atividade jurisdicional. A norma, assim, não possui significado ou normatividade em abstrato, mas apenas concretamente após a atividade interpretativa e construtiva.16
Pode-se dizer que essa virada no conceito de norma jurídica, decorrente da distinção entre texto normativo e norma jurídica, atribuindo-lhe um caráter pragmático ou estruturante e não mais semântico, foi o principal fundamento teórico para o surgimento do paradigma pós-positivista da norma jurídica e, por consequência, da decisão judicial, contribuindo, assim, para a superação do positivismo normativo de Kelsen, seguido, em certa medida, por Alexy.
Portanto, para a finalidade do presente artigo, faz-se imprescindível o estudo dos fundamentos do paradigma pós-positivista da norma jurídica e da decisão judicial, o que se faz a seguir.

2. Fundamentos do paradigma pós-positivista

O positivismo normativo de Kelsen tem como característica principal a exclusão de seu âmbito de análise qualquer conteúdo que ultrapasse o direito positivo. Limita-se, dessa forma, a descrever e organizar apenas o direito posto, ou seja, aquele produzido pelo convívio humano, denominado de direito positivo.17
Assim, os principais fundamentos do paradigma pós-positivista, a seguir demonstrados, procuram superar o paradigma positivista normativo, no qual a norma jurídica tem natureza semântica e o direito é aplicado por subsunção com o objetivo de revelar a vontade da lei. Tratam-se, portanto, de fundamentos que procuram ultrapassar as barreiras lançadas pelo positivismo, seja o primitivo, seja o normativista.
Como explica Lenio Streck: “O novo paradigma do direito instituído pelo Estado Democrático de Direito é nitidamente incompatível com a velha teoria das fontes, a plenipotenciariedade dos discursos da fundamentação, sustentada no predomínio da regra e no desprezo pelos discursos de aplicação, e, finalmente, com o modo de interpretação fundado (ainda) nos paradigmas aristotélicos-tomistas e da filosofia da consciência. Assim, a teoria positivista das fontes vem a ser superada pela Constituição; a velha teoria da norma dará lugar à superação da regra pelo princípio, e o velho modus, interpretativo subsuntivo-dedutivo – fundado na relação epistemológica sujeito-objeto – vem a dar lugar ao giro linguístico-ontológico, fundado na intersubjetividade”.18
As bases teóricas do pós-positivismo foram inicialmente formuladas por Friedrich Müller em sua obra Juristische Methodic, que teve a sua primeira edição lançada no ano de 1971.19 Aliás, deve-se ao próprio Friedrich Müller a criação do termo “pós-positivismo”, que serviu para identificar um novo paradigma do direito, instituído de acordo com metódica estruturante do direito.20
Na verdade, ao construir as bases teóricas do paradigma pós-positivista do direito, Friedrich Müller não teve a intenção de romper definitivamente ou criar um paradigma antipositivista. O que ele pretendeu foi identificar os equívocos do paradigma positivista e superá-los, propondo a sua adequação aos avanços alcançados pela filosofia da linguagem e da hermenêutica jurídica.21
Desse modo, a obra de Friedrich Müller, em especial a Teoria Estruturante do Direito, examina a norma jurídica mediante uma compreensão pós-positivista.22 O objetivo é corrigir as deficiências do positivismo normativista de postura kelseniana, isto é, superar o caráter semântico da norma e, consequentemente, a aplicação do direito pelo método subsuntivo.23 A norma deixa de ter caráter semântico, abstrato, não se confundindo mais com o próprio texto legal. Na verdade, a norma passa a ser o resultado concreto de um processo interpretativo-criativo.24
A criação do termo ‘pós-positivismo’ e a sistematização desse paradigma são oriundos da obra de Friedrich Müller, que constrói uma teoria do direito que não almeja se opor ao positivismo (daí ser pós e não anti positivista), mas complementá-lo, corrigindo os equívocos. Assim, podemos afirmar que o pós-positivismo tem dois grandes objetivos: (a) carrear as conquistas e as inovações filosóficas advindas do giro-linguístico para o direito e (b) sistematizar a teoria da norma atrelando a ao fenômeno decisório com o intuito de se superar a concepção de que decisão judicial seria mero ato de vontade ou uma operação mecânica de cariz silogístico.
De forma resumida, a obra de Friedrich Müller25 é fundamental para expor que a superação do positivismo (que nunca deve ser um fim em si mesmo) precisa passar ao menos pelos seguintes enfrentamentos: (a) a norma não pode mais ser reduzida ao seu texto; (b) o ordenamento jurídico positivo sem lacunas é uma verdadeira ficção puramente artificial; (c) a solução dos casos jurídicos não pode mais pretender ser realizada pelo silogismo, porquanto a decisão de cada caso deve ser estruturada e construída a partir dos dados linguísticos (programa da norma) e extralinguísticos (âmbito da norma), a fim de se alcançar a norma decisória do caso concreto (não há norma em abstrato – sem problema a se solucionar não há norma); (d) em suma, o pensamento pós-positivista não pode mais partir de uma cisão ficcional entre o jurídico e a realidade, ou seja, o pós-positivismo supera e transcende a clássica distinção entre questão de fato e de direito.
Estando compreendidas as bases do pós-positivismo, torna-se, no mínimo, ficção – ou até mesmo ingenuidade –, imaginar que o recrudescimento de decisões com efeito vinculante, ou mecanismos que almejam a solução, por meio do efeito cascata, seriam a solução adequada para racionalizar a atividade do Judiciário.
Hodiernamente, apostar em decisões dos Tribunais com efeito vinculante consiste em realizar a mesma forma de aposta ingênua que foi feita na Revolução Francesa. Contudo, no passado, acreditava-se que a lei conteria a infinidade de solução dos casos. Atualmente, essa mística tem sido depositada nas decisões dos tribunais superiores, a aposta é de que o STJ e o STF poderia criar superdecisões que, por si só, trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade de casos.
Sobre o ponto, já afirmamos: “Nesse novo paradigma, a norma deixa de ser um ente abstrato, ou seja, ela passa a inexistir ante casum, uma vez que não se equipara mais ao texto legal, consequentemente, a norma passa a ser coconstitutiva da formulação do caso concreto. Essa nova concepção de norma jurídica demanda uma visão do direito que abandone os dualismos irrealistas tais como norma/caso e direito/realidade, bem como o silogismo como mecanismo de aplicação do direito. Esses aspectos passarão a ser examinados nos itens subsequentes”.26
Assim, três elementos são essenciais para a compreensão do paradigma pós-positivista: (a) diferença entre texto e norma; (b) a interpretação do direito deixa de ser ato que desvenda a vontade da lei (volunta legis) ou do legislador (volunta legislatoris); e (c) a sentença deixa de ser processo silogístico (não se aplica mais a subsunção).27
A adequada compreensão das diferenças entre texto (enunciado) e norma e, consequentemente, a aceitação da superação do silogismo e da interpretação como ato revelador da vontade da lei ou do legislador permitem dizer, por exemplo, que as súmulas vinculantes e a ratio decidendi (ou, como dizem os norte-americanos, a holding) extraída dos precedentes judiciais são nada mais do que textos normativos, que também precisam ser interpretados para o caso concreto no qual serão aplicados.28
Em outras palavras: a súmula vinculante e a ratio decidendi extraída dos precedentes judiciais não se caracterizam per se como normas jurídicas aplicáveis por subsunção a outros casos, mas sim textos ou enunciados normativos que precisam ser interpretados e aplicados ao caso concreto, levando em consideração os elementos não linguísticos, isto é, o âmbito normativo constituído pelo recorte da realidade social, como a seguir será melhor explicado.29

2.1 Diferenças entre texto e norma

A norma jurídica não se confunde com o texto normativo. A superação do paradigma positivista, decorrente de sua adequação aos avanços alcançados pela filosofia da linguagem e da hermenêutica jurídica, permite dizer que há diferenças entre o texto normativo e a norma jurídica. Ou seja, o texto normativo não traz nele próprio o significado da norma jurídica.
Segundo explica Müller: “o texto da norma não contém normatividade e a sua estrutura material concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do direito no âmbito de seu quadro. Conceitos jurídicos em textos de normas não possuem ‘significado’, enunciados não possuem sentido segundo a concepção de um dado orientador acabado”.30
Conforme o paradigma pós-positivista do direito, a norma jurídica não pode ser confundida com o mero texto normativo. Existe, assim, um processo concretizador da norma jurídica. Nos dizeres de Müller, “somente o positivismo científico-jurídico rigoroso pode fiar-se em ‘aplicar’ a lei, na medida em que tratou o texto literal desta como premissa maior e ‘subsumiu’ as circunstâncias reais a serem avaliadas aparentemente de forma lógica ao caminho do silogismo na verdade vinculado ao conceito e, assim, vinculado à língua”.31 Na verdade, o texto normativo é apenas o ponto de partida na estruturação da norma jurídica. O significado da norma jurídica apenas surge diante da problematização do caso concreto, seja real ou fictício.32
A teoria estruturante de Müller é, portanto, formada por duas entidades jurídicas:33o programa normativo e o âmbito normativo. O primeiro, o programa normativo, é composto pelos elementos linguísticos (texto normativo) do processo interpretativo e concretizador da norma jurídica. Esse teor literal do programa normativo é ante casum, isto é, preexiste abstratamente antes da problematização. Já a norma é sempre concreto-decisória nunca prescindindo da solução do caso concreto.
De outro lado, o âmbito normativo é formado pelos elementos não linguísticos, ou seja, pelos aspectos da realidade social que, no processo de interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, são apontados como estruturas básicas relevantes pelo programa normativo. O recorte da realidade é elemento integrante da composição da norma jurídica, juntamente com os dados linguísticos, no processo interpretativo.34
Assim, o programa normativo e âmbito normativo são entidades jurídicas que estruturam a concretização da norma jurídica, sendo ambos inseridos nela própria.35
Em suma: não se pode confundir o texto normativo com a própria norma jurídica. O texto normativo corresponde ao programa normativo, isto é, o elemento linguístico da norma jurídica (texto legal, súmula vinculante, ratio decidendi dos precedentes judiciais). Apenas o programa normativo preexiste abstratamente. Por outro lado, a norma jurídica é estruturada por um complexo processo de concretização constituído não apenas pelo programa normativo, mas também pelo âmbito normativo, ou seja, pelos elementos não linguísticos, o recorte da realidade social que, no processo de interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, é assinalada como estrutura básica relevante pelo programa normativo.36 Em suma, não há aplicação de textos normativos (lei, súmula, acórdão paradigma etc.) sem a atividade interpretativa. Daí a impossibilidade em se admitir o silogismo como mecanismo para aplicação de regras jurídicas ou de qualquer outro elemento jurídico.
O programa normativo é um limite intransponível para a atividade interpretativa. A norma jurídica concretizada deve se ater às balizas do enunciado normativo.37 Exemplo recente de decisionismo e arbitrariedade que ultrapassou os limites do programa normativo são as decisões do STJ proferidas no julgamento dos REsp 1.063.343/RS e REsp 1.308.830/RS. Em tais julgamentos restou decidido que as demandas representativas da controvérsia não podem ser objeto de pedido de desistência, tendo em vista a existência de interesse público na fixação da tese jurídica a ser aplicada aos demais casos repetitivos.
Acontece que o art. 501 do CPC/1973 (art. 998 do CPC/2015) prevê expressamente a possibilidade de o recorrente desistir do recurso, mesmo sem a anuência da parte contrária e a qualquer tempo. Eis o teor do dispositivo: “O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.
No julgamento dos recursos especiais acima referidos, o STJ deixou deliberadamente de aplicar o art. 501 do CPC/1973 (art. 998 do CPC/2015), sem que fosse declarada sua inconstitucionalidade – a qual não existe, deixe-se claro –, em flagrante violação ao art. 97 da Constituição da República e ao Enunciado 10 da súmula da jurisprudência vinculante do STF.38
Todavia, decisões dessa estirpe não devem ser admissíveis,39 já que desconsideram o teor literal do programa (texto) normativo (nos casos mencionados, o art. 501 do CPC/1973), configurando, portanto, decisionismo e arbitrariedade.
Enfim, o positivismo equivoca-se ao entender que a norma jurídica já existe abstratamente no enunciado normativo como, por exemplo, na leis, na súmula vinculante ou na ratio decidendi dos precedentes judiciai brasileiros.
Na realidade brasileira, a lei, a súmula e a ratio decidendi são textos normativos abstratos que preexistem à problematização do caso concreto e possuem o objetivo principal de resolver casos que venham a surgir futuramente. Por essa razão, é equivocado o entendimento de que os precedentes judiciais brasileiros possuem norma jurídica (ou, como alguns preferem, regra jurídica) a ser aplicada por simples subsunção aos casos repetitivos.
A norma jurídica não é preexistente, não é abstrata e somente deve ser compreendida quando problematizada diante do caso concreto no qual será aplicada após complexa atividade interpretativa que envolve a junção do programa normativo e do âmbito normativo. A interpretação, compreensão e aplicação da norma jurídica são atos que ocorrem simultaneamente diante da problematização de um caso concreto.40 Por isso é equivocado dizer que primeiro se decide para depois buscar o fundamento da decisão. Essa conduta constitui em verdadeira arbitrariedade do intérprete.41
O significado da norma jurídica deve ser extraído por uma interpretação criativa que leve em consideração os aspectos da realidade social, uma vez que o texto normativo não é a própria norma jurídica já definida a ser aplicada ao caso concreto.42
A correta captação da distinção entre texto normativo e norma jurídica é fundamental para compreender adequadamente como deve efetivar-se a interpretação e a aplicação dos precedentes judiciais brasileiros conforme o paradigma pós-positivista do fenômeno jurídico. A ideia de que a ratio decidendi extraída dos precedentes judiciais constitui regra jurídica finalizada e pronta para ser aplicada por subsunção ao caso concreto não se coaduna com o paradigma pós-positivista, pois parte da premissa de que ela é a própria norma jurídica já definida e que dispensa a problematização e a interpretação construtiva.

2.2 A interpretação como ato não revelador da vontade da lei ou do legislador

No positivismo, como decorrência da natureza semântica ou abstrata da norma jurídica, é possível admitir que a interpretação constitui-se em ato revelador do sentido normativo da lei (mens legis) ou da vontade do legislador (mens legislatoris), aplicáveis ao caso concreto pelo método subsuntivo.
O entendimento de que a interpretação é ato que revela a vontade da lei ou do legislador é facilmente identificado na seguinte passagem de Kelsen: “Que a chamada vontade do legislador ou a intenção das partes que estipulam um negócio jurídico possam não corresponder às palavras que são expressas na lei ou no negócio jurídico, é uma possibilidade reconhecida, de modo inteiramente geral, pela jurisprudência tradicional. A discrepância entre vontade e expressão pode ser completa, mas também pode ser parcial. Este último caso apresenta-se quando a vontade do legislador ou a intenção das partes correspondem pelo menos a uma das várias significações que a expressão verbal da norma veicula”.43
No positivismo, aceita-se essa ideia (a revelação da vontade) porque a norma preexiste abstratamente, cabendo ao intérprete apenas descobrir a vontade da lei ou do legislador pelo método subsuntivo. A norma, portanto, não é estruturada mediante a conjugação do programa normativo (dados linguísticos, o texto) e do âmbito normativo (elementos extralinguísticos, o recorte da realidade social). A norma jurídica é simplesmente encontrada e a sua vontade, que é preexistente, revelada pelo intérprete.
Contudo, no contexto do paradigma pós-positivista, a atividade interpretativa não pode ser entendida como ato que desvenda a vontade da lei ou do legislador. Isso porque, como visto anteriormente, a norma jurídica não existe antes da problematização. O seu significado apenas é extraído depois de complexa atividade interpretativa e construtiva que envolve não apenas os dados linguísticos do enunciado normativo mas também os elementos não linguísticos, isto é, o recorte da realidade social. Não se pode falar em revelação da vontade da lei ou do legislador exatamente porque o texto legal não possui qualquer significado jurídico antes da problematização e do processo concretizador do intérprete, que também envolve o exame da realidade social.
A interpretação, portanto, deve levar em consideração as variações históricas das condições jurídicas, culturais, políticas, sociais, econômicas etc. Na estruturação da norma jurídica, o intérprete precisa considerar o contexto histórico do momento da atividade interpretativa. A interpretação, portanto, não é um ato mecânico, automático, no qual se revela o sentido de alguma coisa preexistente. A atividade interpretativa e, consequentemente, a aplicação do direito se alteram a partir de cada realidade histórica também alterada.44
Assim, de acordo com a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico, a interpretação e a aplicação do direito ocorrem simultaneamente, integrando aquilo que se chama de “círculo hermenêutico”. Essa interpretação e aplicação do direito sofrem, portanto, a interferência direta do contexto histórico vivido pelo intérprete, motivo pelo qual não se pode aceitar a ideia de que preexiste uma vontade da lei ou do legislador.45
Por essa razão, já tivemos oportunidade de afirmar que: “Na realidade, a atividade interpretativa é sempre histórica porque o texto é abordado a partir da historicidade do intérprete. Portanto, o jurista não se torna um ser histórico apenas quando se desdobra sobre o produto da cultura no estudo da disciplina ‘história’, mas, mesmo quando efetua uma interpretação no nível de um campo, como é o direito, ali também operam com ele os efeitos da história”.46
Desse modo, na compreensão do paradigma pós-positivista, não é correto falar-se em vontade da lei ou do legislador. A norma jurídica sempre decorrerá de um complexo processo interpretativo e concretizador. Por essa razão, será sempre imprescindível a produção de uma nova norma jurídica, mesmo que o caso seja repetitivo e esteja abrangido pela eficácia vinculante de precedentes judiciais. A ratio decidendi, portanto, não deve ser compreendida como norma jurídica finalizada e pronta para ser aplicada independentemente de um processo interpretativo e concretizador. A ratio decidendi, em verdade, nada mais é do que mero texto normativo, ou seja, apenas é uma das entidades jurídicas (o programa normativo) que integra do processo estruturante da norma jurídica.

2.3 Superação do silogismo e do método subsuntivo

Para o positivismo, a norma jurídica tem natureza semântica, sendo esta preexistente à problematização jurídica. Diante desse paradigma, é possível aceitar-se a aplicação silogística e automática dos fatos (premissa menor) à norma (premissa maior), visto que esta última já preexiste no plano abstrato. A norma não é concretizada diante da problematização jurídica, mediante complexo processo interpretativo que envolve os dados linguísticos (enunciado normativo) e extralinguísticos (recorte da realidade social). A interpretação positivista pelo método subsuntivo apenas encontra e revela a vontade da lei ou do legislador, que é preexistente. Assim, a decisão judicial, na concepção positivista do fenômeno jurídico, é ato silogístico, isto é, trata-se de ato declaratório (e não criativo) do direito.47
A atribuição do caráter silogístico à sentença é equivocado, pois confunde o texto normativo com a norma jurídica. Como visto, a decisão judicial é ato criador do direito e não meramente declaratório. O silogismo dá a impressão de que a lei, a súmula vinculante e a ratio decidendi retirada dos procedentes judiciais são a própria norma jurídica finalizada e pronta para ser aplicada ao caso concreto, independentemente de qualquer processo interpretativo.
Acontece que, a partir do paradigma pós-positivista, no qual a norma jurídica não se confunde mais com o texto, o direito não é mais entendido como um sistema normativo sem lacunas – como queria o positivismo –, assim como não se aceita mais a exclusão dos elementos da realidade social do processo interpretativo e criativo das normas. O âmbito normativo passa a integrar o processo criativo de normas jurídicas. Além disso, a decisão judicial não é mais compreendida como mero resultado da aplicação do método subsuntivo. Conforme afirma Georges Abboud, “perante o paradigma pós-positivista, a sentença deixa de ser ato silogístico em que se aplica mecanicamente uma premissa maior (lei) para solução do caso concreto (premissa menor)”.48
Conforme a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico, a decisão judicial é construída de acordo com a metódica estruturante do direito, diante de uma problematização jurídica. Não há que se falar em método subsuntivo ou ato declaratório da vontade da lei ou do legislador. No pós-positivismo, a decisão judicial é produzida para dar significado à norma jurídica que resolverá a problematização do caso concreto. Por essa razão, entende-se como equivocado a afirmação no sentido de que a ratio decidendi é regra jurídica aplicável pelo método subsuntivo ao caso concreto, cabendo ao juiz tão somente assentar os fatos ao texto normativo. Como bem alerta Lenio Streck, “no paradigma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução”.49
Portanto, devem ser afastadas possíveis influências do silogismo e do método subsuntivo na interpretação e aplicação dos procedentes judiciais brasileiros, especialmente aqueles dotados de efeitos vinculante. Se assim não for, o texto normativo da ratio decidendi, indesejavelmente, será atemporal, isto é, não influenciável pelo âmbito normativo do processo interpretativo, cabendo ao intérprete a simples extração de significados da norma jurídica que já se encontram no interior do próprio texto.50
Assim, tendo em vista as novas reformas processuais, especialmente o Novo Código de Processo Civil, que introduziu novos mecanismos processuais geradores de decisões paradigmas, aplicáveis para o futuro e dotadas de efeito vinculante, o presente artigo tenta lançar algumas premissas sobre como devem ocorrer a interpretação e a aplicação dos precedentes conforme a compreensão pós-positivista do fenômeno jurídico.51

3. Consequências da interpretação e aplicação dos precedentes conforme o paradigma pós-positivista

O CPC/2015 cria uma forma de vinculação de decisões judiciais bastante problemática.52 Por agora, basta dizer que o CPC/2015, em seu art. 926, estabelece, com ótimas intenções, a necessidade de os tribunais uniformizarem sua jurisprudência e de mantê-la estável, íntegra e coerente.
Para dar efetividade à referida uniformização, estabilidade e coerência, o art. 927 do CPC/2015 estabelece um enorme rol de disposições que obrigatoriamente devem ser observadas pelos tribunais e/ou juízes. Conforme o dispositivo mencionado, os órgãos julgadores estarão obrigados a seguir de forma vinculada: (a) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (b) os enunciados de súmula vinculante; (c) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (d) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e (e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.
Sobre o tema, vale trazer o Enunciado 179 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos”.
Na verdade, o CPC/2015 tenta importar o sistema do stare decisis do common law, por meio da tendência desmesurada à hipertrofia das decisões dos tribunais, com sua imposição vinculante aos juízes de hierarquia inferior.53
Georges Abboud e Nelson Nery Junior explicam que a forma de vinculação proposta pelo CPC/2015 é bastante problemática no que se refere ao dinamismo do sistema.54 Para os autores, dentre os diversos riscos, pode-se citar a consolidação do entendimento a partir de um único caso pendente no tribunal. Como os demais processos ficarão suspensos e a decisão será aplicada de forma vinculada, inclusive para as causas futuras, a reapreciação da mesma questão pelos tribunais será praticamente impossível.55
O CPC/2015 cria enorme barreira ao reexame da matéria, através de diversos mecanismos processuais, tais como: a improcedência liminar; a inexistência do duplo grau obrigatório de jurisdição; a monocratização das decisões judiciais; etc. Há, dessa forma, um sério risco de engessamento da jurisprudência.56 Para se alterar um entendimento jurisprudencial no Brasil, uma das poucas alternativas restantes seria por lei. Nesse contexto, como observam Georges Abboud e Nelson Nery Junior, “o Brasil passaria a ser o único país em que a lei atualiza a jurisprudência e não o contrário”.57
Assim, o modo como o CPC/2015 tenta importar o sistema do stare decisis do common law é absolutamente inadequado.58 O precedente judicial nos países de tradição anglo-saxônica funciona como ponto de partida para a discussão e resolução da lide, função que, nos países do civil law, é desempenhada pela própria legislação. Sua aplicação exige intensa interpretação e realização do contraditório entre as partes.59 Segundo Lenio Streck, “também nos EUA – e não poderia ser diferente – texto e norma não são a mesma coisa”.60
No fundo, os precedentes judiciais, no sistema do CPC/2015, estão mais próximos das súmulas vinculantes do que do stare decisis do common law, já que são criados com a finalidade principal de resolver casos futuros.61 No caso dos precedentes há, porém, uma diferença agravante: a eficácia vinculante não tem autorização constitucional, o que configura a sua inconstitucionalidade.
Deixando de lado, por ora, algumas inconstitucionalidades presentes no sistema de decisões vinculantes do CPC/2015,62 deve-se entender, com a finalidade de evitar riscos ao sistema decisório, que a interpretação e aplicação dos precedentes judiciais sejam realizadas conforme o paradigma pós-positivistas do fenômeno jurídico.
Com a superação do paradigma positivista pelo pós-positivismo, principalmente em decorrência dos avanços alcançados pela filosofia da linguagem e da hermenêutica jurídica, a interpretação e aplicação dos precedentes judiciais devem ser realizadas de acordo com a metódica estruturante do direito, na qual não mais se confunde texto com norma e a decisão judicial não é mais tida como ato silogístico que revela a vontade da lei ou do legislador.
Premissas equivocadas, influenciadas pelo positivismo normativo, podem levar a entendimentos no sentido de que a ratio decidendi dos precedentes judiciais do CPC/2015 não serve de ponto de partida, mas de linha de chegada para resolução dos casos repetitivos. Conforme esse entendimento (equivocado, diga-se), a ratio decidendi seria, portanto, verdadeira regra decisória, dispensando as alegações das partes, a fundamentação e a problematização decisional. Afirmações assim podem levar a compreensões no sentido de que o CPC/2015 tornou desnecessária a interpretação da lei, do texto constitucional e da ratio decidendi, assim como o exame das alegações das partes para a resolução dos processos repetitivos sobrestados.
No contexto do paradigma pós-positivista, a ratio decidendi extraída dos procedentes judiciais nada mais é do que um dos elementos integrantes do processo interpretativo. A ratio decidendi é tão somente o programa normativo, o elemento linguístico, o texto normativo, o ponto de partida da atividade interpretativa, que não dispensa a problematização e a observância dos elementos não linguísticos da realidade social (o âmbito normativo).
Assim, o magistrado, antes da aplicação da tese jurídica ao caso concreto, deve sempre garantir às partes o direito de discutir e distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, por exemplo, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução jurídica diversa. Além disso, a simples existência de ratio decidendi não autoriza que a atividade interpretativa deixe de considerar outros textos normativos, tais como a lei e a própria constituição.
Deve-se observar, portanto, o disposto no art. 10 do CPC/2015, de acordo com o qual: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
A obrigação da observância do art. 10 do CPC/2015 quando da aplicação dos precedentes está positivada no § 1.º do art. 927.63 Ou seja, quando os juízos do caso concreto decidirem com base em precedentes vinculantes, antes prolatar a decisão, obrigatoriamente devem dar oportunidade às partes de se manifestarem sobre a aplicabilidade da tese jurídica.
Na verdade, a manifestação da parte sobre a aplicabilidade da tese jurídica abstrata ao caso concreto é uma conduta que colabora com a atividade interpretativa e criativa do magistrado. Assim, o contraditório, também no âmbito do próprio processo repetitivo, deve ser amplamente assegurado às partes, com a possibilidade prévia de debater a (in)aplicabilidade da tese jurídica ao caso concreto.
Caso assim não seja, o preço que os jurisdicionados pagarão será alto: de um lado, o engessamento da ordem jurídica, principalmente pela resistência dos tribunais pátrios a qualquer tentativa de revisão de suas decisões; e, de outro, o cerceamento do direito de defesa e do direito de influir eficazmente na atividade jurisdicional,64 especialmente pela falta de controle da representação adequada e pela impossibilidade de discutir previamente e contribuir com a interpretação e aplicação da tese jurídica ao caso concreto.
Outra consequência decorrente do paradigma pós-positivista é a possibilidade de qualquer magistrado, no caso concreto, superar o entendimento fixado no precedente vinculante, caso o contexto histórico tenha se alterado. Isso porque, como visto, no processo concretizador da norma jurídica a interpretação deve levar em consideração as variações históricas das condições jurídicas, culturais, políticas, sociais, econômicas etc.
Na estruturação da norma jurídica, o intérprete precisa considerar o contexto histórico do momento da atividade interpretativa. A interpretação, portanto, não é um ato mecânico, automático, no qual se revela o sentido de uma norma preexistente. A atividade interpretativa e, consequentemente, a aplicação do direito alteram-se a partir de cada realidade social também alterada. Portanto, o interessado na superação do procedente pode alegar, por exemplo, a revogação ou modificação de texto normativo em que se fundou a decisão; ou a alteração econômica, cultural, política ou social referente à matéria decidida. A vinculação se perde quando o âmbito normativo é alterado. E somente é possível verificar essa perda da vinculação quando o âmbito normativo também for confrontado diante de uma nova problematização.
Como o âmbito normativo é uma das entidades jurídicas integrantes do processo interpretativo, qualquer magistrado pode superar o procedente vinculante, desde que fundamente a sua decisão nas variações históricas das condições jurídicas, culturais, políticas, sociais, econômicas etc. É equivocada, portanto, a exigência de que seja instaurado perante o tribunal prolator da decisão vinculante um procedimento específico para revisão da tese jurídica, como faz o art. 986 do CPC/2015, que trata da revisão da tese jurídica no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.65
Exemplificando: se sobrevier legislação incompatível com o precedente, a tese jurídica firmada com base no texto normativo revogado não deve ser pelo juízo do caso concreto, mesmo que o magistrado não seja integrante do órgão prolator da decisão, salvo se no exame do caso concreto declarar a nova lei inconstitucional, realizar interpretação conforme ou declarar nulidade sem redução de texto.
Esse parece ser o entendimento firmado no Enunciado 324 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto”.
Por fim, vale fazer uma última observação: não se está aqui defendendo que a ratio decidendi deve ser interpretada de forma autônoma e isolada dos fatos que lhe deram origem. Conforme a exigência hermenêutica de Gadamer, somente é possível compreender o que esta mencionado no enunciado (texto) a partir da situação concreta (occasio) no qual foi pronunciado.66
Tratando das súmulas vinculantes, mas com posicionamento que se encaixa perfeitamente aos precedentes judiciais brasileiros, Lenio Streck afirma que: “os textos são fatos. Isto porque os textos são o dito de uma compreensão que se deu, necessariamente, como aplicação. Na verdade, temos que encontrar o fio condutor da tradição que se liga ao enunciado. Teremos que buscar – sempre, em face dos princípios da integridade e da coerência, que na hermenêutica denominados de tradição – os casos e o contexto em que esse enunciado foi produzido. Não é possível, portanto, continuarmos analisando os textos das súmulas como se ali fosse ‘o lugar da verdade’ e como se o sentido imanente desse texto nos desse as respostas para a sua futura aplicação”.67
Enfim, a ratio decidendi é o ponto de partida de um processo interpretativo e criativo que envolve outros elementos. No processo interpretativo, deve-se levar em consideração eventuais variações históricas das condições jurídicas, culturais, políticas, sociais, econômicas etc. Ademais, o intérprete também deve verificar a faticidade do caso concreto que deu origem ao surgimento do precedente, examinado se eles se assemelham com os do processo no qual a tese jurídica será aplicada. O precedente somente terá força vinculante ao caso concreto se as questões jurídicas forem homogêneas.

4. Conclusões

Em função da compreensão hermenêutica do tema, o precedente deve ser vislumbrado em dois níveis de análise: em um primeiro momento, o precedente é uma decisão de um Tribunal com aptidão a ser reproduzida-seguida pelos tribunais inferiores, entretanto, sua condição de precedente dependerá dele ser efetivamente seguido na resolução de casos análogos-similares.68
O mecanismo de decisão por precedentes é naturalmente e funcionalmente de caráter hermenêutico em razão de dois aspectos principais. O primeiro é porque a decisão por precedentes não se articula com textos pré-definidos, vale salientar: o precedente, e mais especificamente a ratio decidendi, não pode ser capturado e limitado por um texto, súmula etc., sob risco de deixar de ser ratio decidendi. O segundo aspecto é a necessária individualização do caso: questão a ser decidida por um precedente, não abarca previamente uma questão fática, o que torna necessária a demonstração da singularidade de cada caso, para que se evidencie a possibilidade ou não de submetê-lo à solução por precedentes.
Portanto, não há aplicação mecânica ou subsuntiva na solução dos casos mediante a utilização do precedente judicial. Do contrário, não será decisão por precedente. Em outros termos, não existe uma prévia e pronta regra jurídica apta a solucionar por efeito cascata diversos casos futuros, pelo contrário, a própria regra jurídica (precedente) é fruto de intenso debate e atividade interpretativa, e, após ser localizada, passa-se a verificar se na circunstância do caso concreto que ela virá solucionar é possível utilizá-la sem que ocorram graves distorções, porque se elas ficarem caracterizadas, ela, isto é, o precedente, deverá ser afastada.
Em termos simples, o precedente genuíno no common law nunca nasce desde-sempre precedente.
Se ele tiver coerência, integridade e racionalidade suficientes para torná-lo ponto de partida para discussão de teses jurídicas propostas pelas partes, e, ao mesmo tempo, ele se tornar padrão decisório para os tribunais e demais instâncias do Judiciário é que ele poderá com o tempo vir a se tornar precedente.
Ou seja, no common law, o que confere essa dimensão de precedente à decisão do Tribunal Superior é sua aceitação pelas partes e pelas instâncias inferiores do Judiciário. Daí ele ser dotado de uma aura democrática que o precedente à brasileira, não possui, uma vez que, os provimentos vinculantes do CPC/2015 já nascem dotados de efeito vinculante – independentemente da qualidade e da consistência da conclusão de suas decisões.
Por consequência, no common law, os Tribunais Superiores, quando decidem um leading case, não podem impor seu julgado determinando que ele se torne um precedente. Paradigmático nesse sentido é o caso Marbury vs. Madison. Isso porque o Justice Marshall quando o decidiu, não podia prever que aquele caso se tornaria efetivamente o caso modelo para a realização do controle difuso de constitucionalidade. Aliás, Justice Marshall não poderia nem ao menos prever que o caso Marbury vs. Madison adquiriria a importância que teve, até mesmo porque por quase três décadas após seu julgamento o precedente oriundo do caso Marbury vs. Madison manteve-se em estado dormente. No que diz respeito à jurisprudência dotada de efeito vinculante, seu âmbito de vinculação é determinado após o julgamento do caso piloto (paradigma), e opera-se o efeito cascata, para posterior resolução de todos os casos que estavam sobrestados até o julgamento do paradigma.
Vale dizer, por força legislativa (art. 927 do CPC/2015), no Brasil, diversas decisões judicias já nascem vinculantes independentemente da sua própria qualidade. Ou seja, ainda que não coerentes ou íntegras do ponto de vista da cadeia decisional, elas nascerão vinculantes. Essa constatação é fundamental para compreendermos a importância do fator hermenêutico para tratarmos da aplicação do CPC/2015, com o escopo de impedirmos qualquer tentativa de aplicação mecânica, ou meramente subsuntiva, de qualquer provimento vinculante.69
Os provimentos postos no art. 927 do CPC/2015 ao serem aplicados pelas demais instâncias nos casos subsequentes não dispensam atividade interpretativa por parte do julgador, bem como o contraditório para assegurar a manifestação dos litigantes acerca da forma correta para sua aplicação no caso concreto.
Portanto, a leitura correta (constitucionalmente adequada) é no sentido de que, quando o CPC/2015 afirma a obrigatoriedade de juízes e tribunais observarem súmula vinculante e acórdão vinculante, não há nesse ponto uma proibição de interpretar. O que fica explícito é a obrigatoriedade de os juízes e tribunais utilizarem os provimentos vinculantes na motivação de suas decisões para assegurar não apenas a estabilidade, mas a integridade e a coerência da jurisprudência.
   
1 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 296.

2 Idem, p. 284.

3 Idem, p. 296.

4 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 04.

5 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 298.

6 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonsa da Silva. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 60.

7 Idem, p. 90.

8 Idem, p. 91.

9 Idem, p. 85.

10 Idem, ibidem.

11 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 299.

12 Idem, p. 32.

13 Conforme explica Dworkin: “As teorias semânticas mais influentes sustentam que os critérios comuns levam a verdade das proposições jurídicas a depender de certos eventos históricos específicos. Essas teorias positivistas, como são chamadas, sustentam o ponto de vista do direito como simples questão de fato, aquele segundo o qual a verdadeira divergência sobre a natureza do direito deve ser uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 45-46).“Vou concentrar-me no positivismo jurídico porque, como acabei de dizer, essa é a teoria semântica que sustenta o ponto de vista do direito como simples questão de fato e a alegação de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empírico, não teórico” (idem, p. 41).


14 Dworkin rebate as teorias semânticas afirmando que estas foram infectadas pelo aguilhão semântico (semantic sting), uma vez que os advogados e juízes não compartilham obrigatoriamente dos mesmos critérios linguísticos: “Devo agora definir mais amplamente o aguilhão: esse conceito inscreve-se no pressuposto de que todos os conceitos dependem de uma prática linguísticas convergente do tipo que descrevi na Introdução: uma prática que demarca a extensão do conceito ou por meio de critérios comuns de aplicação ou pela vinculação do conceito a um tipo natural distinto. A infecção provocada pelo aguilhão semântico, devo dizê-lo agora, consiste no pressuposto de que todos os conceitos de direito, inclusive o doutrinário, dependem de uma prática convergente em uma dessas duas formas” (DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 318-319).

15 DWORKIN, Ronald. O império… cit., p. 63-64.

16 Nesse sentido, transcrevem-se as lições da doutrina: “Portanto, normas não são coisas com um caráter significativo pré-determinado e nem tampouco categorias semânticas que operam deônticamente de uma maneira prévia, descolada da existência. Daí ser fundamental a presença de caso concreto (real ou fictício), pendente de solução, para que se possa vislumbrar a manifestação da norma jurídica” (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. cit., p. 300).

17 ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 55.

18 STRECK, Lenio Luiz. Constituição e constituir: da interpretação de textos à concretização de direitos – a incindibilidade entre interpretar e aplicar a partir da diferença entre texto e norma. Democracia, direito e política: estudos em homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito Editorial, Fundação Boiteux, 2006, p. 436-437.

19 MÜLLER, Friedrich. Juristische methodic. Berlin: Duncker & Humblot, 1971.

20 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 54.

21 Idem, p. 55.

22 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. 2. ed. rev. e ampl. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. São Paulo: Ed. RT, 2009.

23 São cabíveis as palavras de Lenio Streck: “O positivismo que aqui se combate funciona como um discurso que submete o texto e a ele se submete, fundindo-se coisas, essências e a consciência de si do pensamento pensante. Ignora, assim, a diferença (ontológica) entre texto e norma e vigência e validade, condição de possibilidade da filtragem e do controle de constitucionalidade. E é nesse locus que se concretiza o crime positivista do sequestro da temporalidade do direito! Novamente aqui a problemática relacionada às três frentes de batalha que o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito enfrentou para superar o positivismo: a teoria das fontes, da norma e da interpretação” (STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 465).

24 Friedrich Müller faz a seguinte crítica ao pensamento de Kelsen: “No ponto decisivo da Teoria Pura do Direito, que trata da sua fecundidade para a concretização prática do direito, o dualismo abstrato, mantido sem quebra de convicção, volta-se contra o enfoque positivista. São momentos da decisão volitiva, que conclui a interpretação autêntica, os aspectos da justiça, as normas da moral, os juízos do valor social, sobre cuja vigência não se pode dizer nada do ponto de vista do direito positivo. O alcance da positividade consiste apenas em abandonar no âmbito de várias soluções logicamente possíveis a decisão volitiva à sentença judicial ou a um outro ato de geração de uma norma individual, a ser instituído ainda. O fato da norma ‘aplicanda’ ou o sistema de normas deixarem em aberto várias possibilidades, é compreendido por Kelsen como pressuposto da possibilidade de interpretação. O seu enfoque aqui esboçado permite compreender porque a teoria pura do direito não pode dar nenhuma contribuição para uma teoria aproveitável da interpretação. Kelsen deixa expressamente em aberto como a ‘vontade da norma’ deve ser concretamente determinada no caso de um sentido da norma linguisticamente não-unívoco. Por intermédio de uma cadeia de postulados dualistas, os problemas materiais da concretização da norma são liminarmente eliminados. Em muitos casos pode-se defender, lado a lado, várias soluções, não só ‘em termos lógicos’, mas também em termos material-jurídicos. No entanto, o vazio de conteúdo da compreensão kelseniana da norma é mantido mesmo diante da plurivocidade de textos de normas. Também o positivismo reconhece que uma norma genérica formulada em linguagem permite quase sempre várias interpretações. Mas também aqui a separação de ser e dever ser, do conhecimento e do ato volitivo, de pontos de vista do direito positivo e de pontos de vista da ‘política jurídica’ elimina toda e qualquer possibilidade de desenvolver meios concretos de interpretação e aplicação. Os critérios de aferição da decisão volitiva são empurrados na direção da dimensão metajurídica. Silencia-se sobre os critérios de aferição do conhecimento tanto no quadro da interpretação autêntica quanto no da interpretação não-autêntica, a não ser que se considere a referência global ao procedimento ‘lógico’ com ponto arquimédico suficiente para a verdade científica. Não só esta, mas também o direito são concretos. Com vistas ao caso individual prático, a teoria pura do direito fica devendo todo e qualquer auxílio para saber como determinar o quadro em si logicamente equivalente da ordem aplicanda da norma. Ex negativo evidencia-se mais uma vez o nexo entre epistemologia, compreensão da norma e questões práticas de direito, do qual trata a presente publicação. Como ciência no sentido de Kelsen, a teoria geral do direito não pretende contribuir em nada para a concretização de um determinado ordenamento jurídico positivo como ordenamento com determinados conteúdos” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 28-29).

25 MÜLLER, Friedrich. Postpositivismo, Cantabria: Ediciones TGD, 2008, n. 3, p. 188-189.

26 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 56.

27 Idem, p. 75.

28 Idem, p. 56.

29 Em sentido contrário, entendendo que o precedente é aplicável por subsunção, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira explicam que: “A norma em que se constitui o procedente é um regra. A ratio é o fundamento normativo da solução de um caso; necessariamente, será uma regra. Não por acaso, a norma do procedente é aplicável por subsunção” (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 10. ed. Salvador: JusPosivm, 2015, vol. 2, p. 451).

30 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 41.

31 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 192.

32 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 67-68.

33 Conforme explica Müller: “À luz da concretização da norma deve-se proceder à distinção entre programa normativo e âmbito normativo, sendo que este último deve ser igualmente visto como entidade jurídica e não extrajurídica” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 258).

34 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 68.

35 Conforme explica Müller: “Nos direitos fundamentais e em outras disposições legais do direito de Estado e direito constitucional, os âmbitos normativos são, em geral, especialmente produtivos, fazendo com que tais normas apareçam, então, como particularmente ‘abstratas’ ao serem equiparadas a seu texto normativo. Somente o texto normativo é de fato abstrato. Ao lado dele e da norma de decisão concludente, a noção estruturante de norma deve ser tipologicamente elaborada, sendo que seu âmbito normativo, possível no real, potencialmente, visto que estruturalmente engloba os casos que se subordinam à norma. Também na teoria da norma, o tipo se mostra como o ‘meio-termo’ entre o geral e o particular’. O âmbito normativo designa como figura intermediária tipológica um âmbito estrutural possível no real para os casos reais, potencialmente reunidos e subordinados à disposição legal. A metódica racional, ultrapassando o estágio intermediário da tipologia da concretização articulada de acordo com programa normativo e âmbito normativo, une o caso à norma, os quais formam os dois polos não isolados da concretização, sendo integralmente inseridos nela” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 254-255).

36 Sobre como deve ser compreendido o âmbito normativo Müller explica que: “O âmbito normativo continua sendo, também nesse contexto que engloba valores, um elemento constitutivo da normatividade materialmente determinada e continua permanecendo a seu serviço e não a serviço do sociologismo ou do existencialismo jurídico. Ele não é uma mera soma de fatos, mas um conjunto de elementos estruturais, obtidos a partir da realidade e que em geral já aparecem tradicionalmente formados ou coformados pelo direito, sendo formulado como algo possível no mundo real. Os âmbitos normativos são, assim, esferas da liberdade ‘natural’, nem devem ser utilizados como natureza das coisas desvinculada de normas, corregedora da norma ou simplesmente superpositiva. A ‘natureza’ das coisas a serem aqui apreendidas pela teoria da norma significa apenas estrutura material básica das circunstâncias reais do mundo social normatizadas, apreendidas pela norma e cofundadoras da normatividade concreta da disposição legal. Por causa da formação jurídica existente, o âmbito normativo não se limita ao puro empirismo de um recorte da realidade. Ele não engloba a totalidade absoluta dos fatos a serem concretamente inseridos nesse recorte, porque, como parte integrante da norma estruturante vista, ele só aparece quando o programa normativo assinala, no processo de interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, as estruturas básicas relevantes desse âmbito normativo, considerando o caso particular” (idem, p. 248-249).

37 Nelson Nery Junior, tratando sobre a mutação constitucional, leciona que: “Hodiernamente, a mutação constitucional deve ser entendida como adaptação interpretativa entre o texto constitucional e a realidade a ser operada principalmente pelos Tribunais Constitucionais. Contudo, a mutação possui limites, a fim de se evitar decisionismos e arbitrariedades, e ultrapassar esses limites implica violação do poder constituinte e da soberania popular. O texto constitucional, ou seja, o teor literal da CF, demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, isto é, funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis. Decisões que passam claramente por cima do teor literal não são admissíveis” (NERY JR., Nelson. Prefácio. In: ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 16).

38 Nesse sentido, Nelson Nery Junior e Georges Abboud: “O STJ, a quem cabe garantir o respeito à lei federal e à uniformização do entendimento da lei federal no Brasil, com as decisões ora analisadas negou vigência ao CPC 501. Não existe em nosso ordenamento vigente previsão constitucional ou legal que autorize o STJ a julgar tese jurídica subjacente quando aquele que recorreu por meio de recurso especial desiste do recurso. No Estado Constitucional ao Judiciário somente é lícito afastar a aplicação da lei em relação ao caso concreto quando reconhece, incidenter tantum, a inconstitucionalidade dessa lei, tarefa que faz mediante o controle difuso de constitucionalidade. A possibilidade de declarar inconstitucional a lei federal em abstrato é atribuição do Supremo Tribunal Federal” (NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges. Ativismo judicial como conceito natimorto para consolidação do Estado Democrático de Direito: as razões pelas quais a justiça não pode ser medida pela vontade de alguém. In: DIDIER JR., Fredie; RAMOS, Glauco Gumerato; NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.).Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 540).

39 MÜLLER, FRIEDRICH. Métodos de trabalho… cit., p. 64.

40 Conforme explica Lenio Streck: “A incindibilidade entre interpretar e aplicar representa a ruptura com o paradigma representacional-metodológico. Não interpretamos por partes. Na verdade, quando interpretamos, aplicamos. É o círculo hermenêutico que vai se constituir em condição de ruptura do esquema (metafísico) sujeito-objeto, nele introduzindo o mundo prático, que serve para cimentar essa travessia, até então ficcionada na e pela epistemologia. Não há como isolar a pré-compreensão. Há um sentido que está com o intérprete desde sempre e que se constitui na antecipação do sentido, circunstância que transforma o ato de compreensão em uma espécie de vetor de racionalidade estruturante e não meramente explicitativo. A procura de elementos de racionalidade que garantam um orientação de validade intersubjetiva transforma esta racionalidade em um vetor de segundo nível” (STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 467). Em sentido contrário, Kelsen afirma: “Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (KELSEN, Hans. Op. cit., p. 387).

41 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 67.

42 Nesse sentido, Cassio Scarpinella Bueno: “O direito precisa ser interpretado para ser aplicado. Ele serve para ser interpretado e aplicado. É como se dissesse, sem muito exagero, que não há, propriamente ‘direito’ sem sua específica aplicação aos casos concretos. Há, no máximo, texto que representa o direito, mas não as normas jurídicas propriamente ditas. Estas precisam, sempre, ser interpretadas e aplicadas para existirem como tais” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, vol. 1, p. 105).Também sobre o ponto, Lenio Streck leciona: “Não basta dizer, pois, que o direito é concretude, e que ‘cada caso é um caso’, como é comum na linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente que o direito é concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não é evidente é que o processo interpretativo é applicatio e que o direito é parte integrante do próprio caso e uma questão de fato é sempre uma questão de direito e vice-versa. Hermenêutica não é filolofia. Lembremos a todo o momento a advertência de Müller: da interpretação de textos temos que saltar para a concretização de direitos. Uma coisa é ‘deduzir’ de um topos ou de uma lei o caso concreto; outra é entender o direito como aplicação: na primeira hipótese, estar-se-á entificando o ser; na segunda, estar-se-á realizando a aplicação de índole hermenêutica, a partir da ideia de que o ser é sempre ser-em (in Sein)” (STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 444).


43 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 390.

44 De acordo com a teoria estruturante de Müller: “A realidade da convivência histórica entre os seres humanos, a qual precisa ser sempre novamente regulada e mantida em ordem, não é objeto, mas sim fundamento e parte integrante da estrutura normativa. […] O âmbito normativo fornece ao programa normativo alternativas estruturais, fundadas em dados reais, para seus modelos, os quais se confirmam ou se alteram” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante… cit., p. 259, 262).

45 Sobre a necessidade de se considerar no processo interpretativo as alterações históricas, importante trazer o seguinte exemplo de Georges Abboud: “No caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte havia admitido a raça como fato de discrímen em benefícios dos brancos durante o transporte ferroviário, tal voto consolidou a equivocada premissa (separados, mas iguais). Ou seja, a Suprema Corte admitiu como razoável a segregação racial em locais públicos. O entendimento da Suprema Corte Norte-americana modificou-se totalmente, posteriormente, no julgamento do caso Brown vs. Board of Education, que revogou a possibilidade de discrímen racial, declarando inconstitucional o ‘regime Jim Crow’, que eram leis estaduais e locais decretadas nos estados sulistas e limítrofes nos Estados Unidos, em vigor entre 1876 e 1965, e que discriminavam afro-americanos, asiáticos e outros grupos minoritários” (ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 77)

46 Idem, ibidem.

47 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 69.

48 ABBOUD, Georges. Discricionariedade… cit., p. 83.

49 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes em terrae brasilis: necessitamos de uma “teoria para a elaboração de precedentes”? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Ed. RT, 2009, n. 78, maio-jun., p.302.

50 ABBOUD, Georges. Discricionariedade… cit., p. 84.

51 Lenio Streck faz a seguinte observação: “Penso que, em tempos de pós-positivismo, tentativas de estabelecer ‘exatidões de linguagem’ e ‘interpretações isomórficas’ devem ser enfrentadas de imediato, mormente quando o dia-a-dia do Judiciário cada vez mais se torna refém de proposições jurídicas com pretensões universalizantes” (STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 287).

52 NERY JR., Nelson. ABBOUD; Georges. Stare decisis vs. direito jurisprudencial. In: FREIRE, Alexandre et al (coords.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 503.

53 GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: SOUZA, Márcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (coords.). O novo Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 14.

54 NERY JR., Nelson. ABBOUD; Georges. Stare decisis… cit., p. 503.

55 Idem, ibidem.

56 Eis as lições de Georges Abboud e Nelson Nery Junior: “A atribuição desmedida de efeitos vinculantes às decisões das Cortes Superiores impede a formação da própria jurisprudência, que se torna engessada. Afinal, a jurisprudência para se constituir como fonte do direito – na legítima acepção da palavra, tem que ser fruto de históricas e reiteradas decisões dos tribunais, com as contradições e evoluções que são ínsitas a todo processo histórico. Contudo, se utilizarmos o efetivo efeito vinculante para os processos repetitivos, apesar de se obter o aumento da velocidade dos processos, corre-se o risco de sepultar a própria jurisprudência, que seria delimitada e fixada a partir de uma única decisão dos tribunais superiores” (idem, p. 503-504).

57 Idem, p. 503.

58 GRECO, Leonardo. Op. cit., p. 14.

59 NERY JR., Nelson; ABBOUD; Georges. Stare decisis… cit., p. 503.

60 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 290.

61 Explicando as diferenças entre os precedentes do common law e as súmulas vinculantes, Lenio Streck afirma: “Tudo isso, pode ser resumido no seguinte enunciado: casos julgados e precedentes são formados para resolver casos concretos e, no caso dos precedentes, eventualmente influenciam decisões futuras; as súmulas, ao contrário são enunciados gerais e abstratos – características presentes na lei – que são editados visando a solução de casos futuros. No fundo, o caso paradigma é o que menos importa para a edição de uma súmula” (STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… cit., p. 291).

62 Para estudo das inconstitucionalidades do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, ver ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos. Inconstitucionalidades no incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo. n. 240. p. 221-242. São Paulo: Ed. RT, fev. 2015.

63 CPC/2015: “Art. 927: Os juízes e os tribunais observarão: (…) III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas. § 1.º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1.º, quando decidirem com fundamento neste artigo”.

64 GRECO, Leonardo. Op. cit., p. 14.

65 CPC/2015: “Art. 986: A revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 977, III”.

66 Como explica Gadamer: “Fica claro que um enunciado jamais tem seu pleno conteúdo de sentido a partir de si mesmo. Na lógica, essa questão ficou conhecida como o problema da ocasionalidade. A característica especial das chamadas expressões ‘ocasionais’, recorrentes em todos os idiomas, é não conterem seu pleno sentido em si mesmas, como ocorre com outras expressões. Quando digo, por exemplo, ‘aqui’, essa palavra não é compreensível para todos pelo simples fato de ser pronunciada ou escrita. É preciso saber onde ocorreu ou onde ocorre. Para sua própria significação, a palavra ‘aqui’ deve ser complementada pela ocasião, a occasio, em que foi pronunciada” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 230).

67 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes… Cit., p. 316.

68 Confira-se a obra Georges Abboud e Lenio Streck. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes, 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 42 et seq.

69 Confira-se a obra em conjunta com Lenio Streck. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes cit., p. 42 et seq.