RECURSO ESPECIAL Nº 1.683.419 - RJ (2017/0163137-0)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO.
PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. PENHORA DO IMÓVEL
GERADOR DOS DÉBITOS CONDOMINIAIS NO BOJO DE AÇÃO DE COBRANÇA NA
QUAL A PROPRIETÁRIA DO BEM NÃO FIGUROU COMO PARTE. POSSIBILIDADE.
OBRIGAÇÃO PROPTER REM. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MAJORAÇÃO.
1. Embargos de terceiro opostos em 28/04/2014. Recurso especial interposto em
17/05/2016 e concluso ao gabinete em 24/07/2017. Julgamento: CPC/2015.
2. O propósito recursal consiste em definir se a proprietária do imóvel gerador dos
débitos condominiais pode ter o seu bem penhorado no bojo de ação de cobrança,
já em fase de cumprimento de sentença, da qual não figurou no polo passivo, uma
vez que tramitou apenas em face de seu ex-companheiro.
3. A ausência de decisão do Tribunal de origem acerca da questão suscitada pela
recorrente – in casu, a preclusão – impede o conhecimento do recurso especial
quanto ao tema, pois não satisfeito o requisito do prequestionamento. Aplicação da
Súmula 211/STJ.
4. Segundo o reiterado entendimento deste Superior Tribunal de Justiça, a
obrigação de pagamento das despesas condominiais é de natureza propter rem, ou
seja, é obrigação “própria da coisa”, ou, ainda, assumida “por causa da coisa”. Por
isso, a pessoa do devedor se individualiza exclusivamente pela titularidade do
direito real, desvinculada de qualquer manifestação da vontade do sujeito.
5. Em havendo mais de um proprietário do imóvel, como ordinariamente ocorre
entre cônjuges ou companheiros, a responsabilidade pelo adimplemento das cotas
condominiais é solidária, o que, todavia, não implica a existência de litisconsórcio
necessário entre os co-proprietários, podendo o condomínio demandar contra
qualquer um deles ou contra todos em conjunto, conforme melhor lhe aprouver.
Precedente.
6. Hipótese dos autos em que, à época da fase de conhecimento, o imóvel
encontrava-se registrado em nome dos dois companheiros, mostrando-se válido e
eficaz, portanto, o acordo firmado pelo ex-companheiro da recorrente com o
condomínio.
7. Descumprido o acordo e retomada a ação, e em não sendo efetuado o
pagamento do débito, é viável a penhora do imóvel gerador das despesas, ainda
que, nesse novo momento processual, esteja ele registrado apenas em nome da
recorrente, que não participou da fase de conhecimento.
8. Sob o enfoque do direito material, aplica-se a regra do art. 1.345 do CC/02,
segundo o qual “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios”. Por outro lado, no
plano processual, a penhora do imóvel e a inclusão da proprietária no polo passivo
da lide é viável ante o disposto no art. 109, § 3º, do CPC/15, no sentido de que os
efeitos da sentença proferida entre as partes originárias se estendem ao adquirente
ou cessionário.
9. Ademais, a solução da controvérsia perpassa pelo princípio da instrumentalidade
das formas, aliado ao princípio da efetividade do processo, no sentido de se utilizar
a técnica processual não como um entrave, mas como um instrumento para a
realização do direito material. Afinal, se o débito condominial possui caráter
ambulatório, não faz sentido impedir que, no âmbito processual, o proprietário
possa figurar no polo passivo do cumprimento de sentença.
10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido, com
majoração de honorários advocatícios.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso
especial e, nesta parte, negar-lhe provimento, com majoração de honorários advocatícios,
nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva,
Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente,
justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Brasília (DF), 20 de fevereiro de 2020(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por MARIA EVELINE LEITE DE
OLIVEIRA, com fundamento nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional.
Ação: embargos de terceiro, opostos pela recorrente em face do
CONDOMINIO DO EDIFICIO MERLIN SUL, visando à preservação de sua posse e
propriedade sobre imóvel que foi penhorado nos autos da ação de cobrança de
cotas condominiais, em fase de cumprimento de sentença, proposta pelo
CONDOMINIO em desfavor de Orcínio Cardoso Inácio, ex-companheiro da
embargante.
Na petição inicial, a embargante alegou, em síntese que: (i) 50% do
imóvel já lhe pertencia e os outros 50% lhe foram doados por seu ex-companheiro,
quando fora lavrada escritura pública de dissolução de sociedade de fato e outros
pactos; (ii) o acordo firmado entre Orcínio e o CONDOMÍNIO na fase de
conhecimento da ação de cobrança é fraudulento, pois ambos os contratantes
tinham conhecimento da partilha amigável realizada em 2005; (iii) não pode ser
atingida pela sentença, pois não participou da fase de conhecimento.
Sentença: rejeitou os embargos de terceiro, determinando o
prosseguimento da execução.
Acórdão: por maioria, deu provimento à apelação interposta pela ora recorrente, para determinar o levantamento da penhora, nos termos da seguinte
ementa (e-STJ fl. 256):
"APELAÇÃO CÍVEL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE
TERCEIRO. COTAS CONDOMINAIS. AÇÃO DE COBRANÇA PROPOSTA EM FACE DE
UM DOS COPROPRIETÁRIOS. ACORDO FIRMADO EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE
CONCILIAÇÃO DEVIDAMENTE HOMOLOGADO PELO JUÍZO. DESCUMPRIMENTO
QUE ENSEJOU O INÍCIO DA FASE EXECUTIVA. CERTIDÃO DO IMÓVEL QUE
CONSTOU A TRANSFERÊNCIA DA TITULARIDADE DO IMÓVEL PARA O OUTRO
COPROPRIETÁRIO, ORA EMBARGANTE, QUE NÃO PARTICIPOU DA FASE
COGNITIVA. JUÍZO A QUO QUE DETERMINOU A RETIFICAÇÃO DO POLO PASSIVO
PARA FAZER CONSTAR SOMENTE A EMBARGANTE, SOB A PREMISSA DE QUE A
NATUREZA DA DÍVIDA É PROPTER REM. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO
ELEMENTO SUBJETIVO DA COISA JULGADA. DISCUSSÃO ACERCA DA NATUREZA
DO DÉBITO QUE SE REVELA DESPICIENDA. NÃO SE PODE PRETENDER EXECUTAR
IMÓVEL, NO BOJO DE PROCESSO QUE NÃO CONTOU COM A PARTICIPAÇÃO DE
SUA PROPRIETÁRIA. NECESSIDADE DE SE OBSERVAR A CORRELAÇÃO ENTRE OS
POLOS ATIVO E PASSIVO DA DEMANDA. PRECEDENTES DO COLENDO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO PARA JULGAR
PROCEDENTES OS PEDIDOS E DETERMINAR O LEVANTAMENTO DA PENHORA DO
IMÓVEL".
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram
acolhidos, para a inversão dos ônus da sucumbência.
Embargos infringentes: opostos pelo condomínio recorrido, foram
acolhidos, para fazer prevalecer o voto vencido, que confirmava a sentença e
desprovia o recurso de apelação. O acórdão foi assim ementado (e-STJ fls.
321/322):
"EMBARGOS INFRINGENTES - COBRANÇAS DE COTAS
CONDOMINIAIS EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - PENHORA DO
IMÓVEL - EMBARGOS DE TERCEIRO OPOSTOS PELA EX-COMPANHEIRA E
COPROPRIETÁRIA - LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO - INEXISTÊNCIA – PRECEDENTES DO STJ - ESCRITURA DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO E
OUTROS PACTOS LAVRADA ANTES DO AJUIZAMENTO DA AÇÃO, PORÉM NÃO
REGISTRADA, NA QUAL COUBE A EMBARGADA A EXCLUSIVA TITULARIDADE DO
IMÓVEL - INOPONIBILIDADE A TERCEIROS.
1. Cuida-se de embargos infringentes interpostos em face de v.
acórdão que, por maioria de votos, deu provimento ao apelo da ora embargada,
para reformando a sentença de 1º grau, julgar procedente o pedido contido nos
embargos de terceiros por ela opostos, a fim de determinar o levantamento da
constrição judicial de imóvel de sua propriedade.
2. Já decidiu o E. STJ que "os cônjuges, coproprietários de imóvel, respondem solidariamente pelas despesas de condomínio, mas esta
responsabilidade não implica litisconsórcio necessário em razão da natureza
pessoal da ação de cobrança de cotas condominiais (AgRg no AREsp 213.060/RJ,
Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/10/2012, DJe
06/11/2012).
3. No caso em tela, quando do ajuizamento da ação de cobrança
de cotas condominiais, constava da certidão do RGI como sendo proprietários
do imóvel a ora embargada e o seu ex-companheiro.
4. Deste modo, a ação poderia ser proposta ou mesmo
prosseguir em face de ambos ou de apenas um deles, por não se enquadrar a
hipótese na espécie de litisconsórcio passivo necessário.
5. A alegação da embargada de que o imóvel apenas lhe
pertencia, diga-se, por força de escritura de dissolução de sociedade de fato e
outros pactos lavrada já no ano de 2005, isto é, antes do ajuizamento da ação
de cobrança, afigura-se sem qualquer substrato legal, porquanto é regra
comezinha de Direito Civil, por determinação expressa do art. 1.245 do CC, que a
transferência da propriedade imobiliária somente ocorre com o registro do título
aquisitivo perante o Registro de Imóveis.
6. Não seria razoável a oponibilidade a terceiro, no caso o
condomínio, de pacto celebrado entre os ex-conviventes e coproprietários do
imóvel, ao qual não se havia dado publicidade através do competente registro
no RGI, pois o interesse prevalente é o da coletividade de receber os recursos
para o pagamento de despesas indispensáveis e inadiáveis.
7. Portanto, como bem pontuado no voto vencido, válido o
acordo do Senhor Orcinio com o Condomínio, ajuste este que se não foi
cumprido enseja o prosseguimento do feito, para execução do débito.
DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO".
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram
rejeitados.
Recurso especial: alega violação dos arts. 506 e 507 do CPC/15,
bem como dissídio jurisprudencial, sustentando que: (i) não é viável a inclusão da
recorrente no polo passivo do cumprimento de sentença, eis que não participou da
fase de conhecimento, que fora encerrada com homologação de acordo entre o
condomínio recorrido e seu ex-companheiro, Orcínio; (ii) o condomínio tinha
ciência de que a posse e propriedade sobre o imóvel eram exercidas
exclusivamente pela recorrente porém, a despeito disso, optou por desistir da
ação em relação a ela; (iii) o redirecionamento da execução contra a recorrente implica em violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório, ante a
ausência de oportunidade para questionar o débito exequendo; (iv) de todo modo,
tal questão encontra-se preclusa, pois o condomínio não recorreu contra o
acórdão do TJ/RJ que, nos autos da ação principal, excluiu a recorrente do polo
passivo.
Juízo de admissibilidade: o recurso foi admitido pelo TJ/RJ.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal consiste em definir se a proprietária do imóvel
gerador dos débitos condominiais pode ter o seu bem penhorado no bojo de ação
de cobrança, já em fase de cumprimento de sentença, da qual não figurou no polo
passivo, uma vez que tramitou apenas em face de seu ex-companheiro.
I. DA DELIMITAÇÃO FÁTICO-PROCESSUAL DA DEMANDA.
1. Com vistas à melhor compreensão da controvérsia, convém
pontuar brevemente os contornos fático-processuais da demanda, tais como
delineados pelas instâncias ordinárias.
2. As cotas condominiais que pleiteia o CONDOMINIO DO EDIFICIO
MERLIN SUL venceram entre dezembro de 2006 e outubro de 2008, período em
que o imóvel gerador das despesas encontrava-se registrado em nome da
recorrente, MARIA EVELINE, e de seu ex-companheiro, ORCINIO, na proporção de
50% para cada um, em que pese a existência de escritura pública de partilha de
bens lavrada em dezembro de 2005 – e à época não registrada –, atribuindo à
MARIA EVELINE a integralidade da propriedade do imóvel.
3. Embora inicialmente tenha o CONDOMÍNIO proposto a ação de
cobrança apenas em face da recorrente, o juízo a quo determinou a inclusão de ORCINIO no polo passivo da demanda, ante a informação contida no registro
imobiliário. Subsequentemente, houve a assinatura de acordo de pagamento entre
o CONDOMÍNIO e ORCINIO, com a desistência da ação em relação à recorrente
MARIA EVELINE, em especial porque restou infrutífera a tentativa de sua citação.
4. Após, devido ao descumprimento do acordo firmado, o
CONDOMÍNIO deflagrou o cumprimento de sentença e, não efetuado o pagamento
da dívida por ORCINIO, foi determinada a penhora do imóvel. Ocorre que, nesse
momento, já constava na matrícula do imóvel o registro da escritura pública de
partilha de bens entre ORCINIO e MARIA EVELINE, razão pela qual o juízo
determinou a retificação do polo passivo da demanda, a fim de fazer constar
apenas a recorrente MARIA EVELINE, efetuando-se a penhora que é discutida nos
presentes embargos de terceiro.
II. DA AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
5. A recorrente alega que a questão relativa ao redirecionamento da
execução em seu desfavor encontra-se preclusa, haja vista que o CONDOMÍNIO
não apresentou recurso contra o acórdão do TJ/RJ que, nos autos do processo
executivo, determinou sua exclusão do polo passivo.
6. No entanto, da análise do presente processo, verifica-se que o
Tribunal de origem não se manifestou quanto à alegação de preclusão,
circunstância que impossibilita o exame da matéria por esta Corte, porquanto não
satisfeito o requisito do prequestionamento.
7. Tem aplicação na hipótese, destarte, o óbice da Súmula 211/STJ.
III. DA NATUREZA JURÍDICA DA OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO DAS DESPESAS CONDOMINIAIS.
8. Segundo o reiterado entendimento deste Superior Tribunal de
Justiça, respaldado em abalizada doutrina, a obrigação de pagamento das despesas
condominiais é de natureza propter rem, ou seja, é obrigação “própria da coisa”,
ou, melhor ainda, assumida “por causa da coisa”.
9. Outrora, muito se discutiu se as obrigações ditas propter rem
estariam contidas no universo dos direitos reais, ou se, por outro lado, seriam
afetas ao universo dos direitos obrigacionais. Referida diferenciação, ao fim e ao
cabo, restou suplantada pela constatação de que “a obrigação propter rem se
encontra no terreno fronteiriço entre os direitos reais e os pessoais” (RODRIGUES,
Silvio. Direito Civil, Parte Geral: das Obrigações, 9ª ed., Saraiva, vol. II, p. 108);
que se formam numa situação de imbricação entre os direitos reais e
obrigacionais, assimilando características de ambos (FARIAS, Cristiano Chaves de;
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais, 14ª ed., JusPodivm,
2018, p. 56).
10. SERPA LOPES, se aprofundando no estudo dessa espécie de
obrigação, concluiu que ela se caracteriza por decorrer da titularidade de um
direito real, impondo a satisfação de determinada prestação relativa à coisa. Assim,
as obrigações propter rem “recaem sobre uma pessoa por força de um
determinado direito real, com o qual se encontram numa vinculação tão estreita,
que o seguem a título de acessórios, inseparáveis” (Curso de Direito Civil,
Obrigações em Geral, 2ª ed, Freitas Bastos, vol. II, p. 66).
11. Em outros termos, caracteriza-se a obrigação propter rem pela
particularidade de a pessoa do devedor se individualizar única e exclusivamente
pela titularidade do direito real, desvinculada de qualquer manifestação da
vontade do sujeito.
12. Por isso é que, em havendo transferência da titularidade, a
obrigação é igualmente transmitida.
13. Diz-se, então, que a obrigação propter rem é dotada de
ambulatoriedade, ou, ainda, que se trata, ela mesma, de obrigação ambulatória.
Assim, independentemente da vontade dos envolvidos, a obrigação de satisfazer
determinadas prestações acompanha a coisa em todas as suas mutações
subjetivas.
14. Essa característica inerente às obrigações propter rem é bem
pontuada por Antônio Junqueira de AZEVEDO, segundo o qual, “justamente no fato
de que, nelas, o devedor somente é determinado pela sua condição de titular da
propriedade; mudando a coisa de dono, muda a obrigação de devedor. Por isso,
também se chamam obrigações ambulatórias; ambulant cum domino ou, como
seria possível dizer, ambulant cum dominio” (Restrições Convencionais de
Loteamento – Obrigações propter rem e suas Condições de Persistência. Revista dos Tribunais, nº 741, 1997, p. 116).
15. Especificamente no que concerne à obrigação dos condôminos de
contribuir para a conservação da coisa comum, o caráter da ambulatoriedade é
extraído do art. 1.345 do Código Civil de 2002, segundo o qual “o adquirente de
unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive
multa e juros moratórios”.
16. Conforme se depreende desse dispositivo legal, a transmissão da
obrigação ocorre automaticamente, isto é, ainda que não seja essa a intenção do
alienante e mesmo que o adquirente não queira assumi-la. Com efeito, “a
responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais acompanha a
pessoa do adquirente, que não pode eximir-se com alegação de que os encargos
foram gerados anteriormente à aquisição do imóvel” (LOPES, João Batista. Condomínio, 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 98).
17. O sentido dessa norma é intuitivo: fazer prevalecer o interesse da
coletividade dos condôminos, permitindo que o condomínio receba, a despeito da
transferência de titularidade do direito real sobre o imóvel, as despesas
indispensáveis e inadiáveis à manutenção da coisa comum, impondo ao
adquirente, para tanto, a responsabilidade, inclusive pelas cotas condominiais
vencidas em período anterior à aquisição.
18. Deveras, a disposição do art. 1.345 do CC/02 é indispensável para
a própria subsistência do condomínio, “cuja saúde financeira não pode ficar à
mercê das mudanças na titularidade dominial” (LOPES, op. cit.).
19. Mais do que isso, conforme salientou a 4ª Turma por ocasião do
julgamento do REsp 1.473.484/RS (DJe 23/08/2018), essa previsão legal intensifica
a prevalência da "solidariedade condominial", a fim de que seja permitida a
continuidade e manutenção do próprio condomínio, impedindo a ruptura da sua
estabilidade econômico-financeira, que prejudicaria a todos os comunheiros.
IV. DA RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DAS COTAS
CONDOMINIAIS.
20. Por se tratar de obrigação de natureza propter rem, ou seja,
decorrente da titularidade de um direito real sobre a coisa, a responsabilidade pelo
pagamento das despesas condominiais recai, por excelência, sobre o proprietário
da unidade imobiliária, podendo ainda se estender a outros sujeitos que tenham
relação jurídica material com o imóvel e que sobre ele exerçam algum dos
aspectos da propriedade, a exemplo de promissórios compradores, locatários,
arrendatários, dentre outros.
21. Outrossim, em havendo mais de um proprietário do imóvel, como ordinariamente ocorre entre cônjuges ou companheiros, a responsabilidade pelo
adimplemento das cotas condominiais é considerada solidária. Essa
responsabilidade solidária, contudo, não implica a existência de litisconsórcio
necessário entre os co-proprietários, podendo o condomínio, portanto, demandar
contra qualquer um deles ou contra todos em conjunto, conforme melhor lhe
aprouver.
22. Nesse sentido se firmou a jurisprudência desta Corte, consoante
se observa do seguinte precedente:
“AÇÃO RESCISÓRIA. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ALEGAÇÃO DA
EXISTÊNCIA DE ERRO DE FATO E VIOLAÇÃO MANIFESTA A NORMA JURÍDICA.
ARTS. 966, V E VIII, DO CPC/2015. AÇÃO DE COBRANÇA. COTAS CONDOMINIAIS.
EMBARGOS DE TERCEIRO OPOSTOS PELA COMPANHEIRA E MEEIRA. REGULAR
INTIMAÇÃO DA PENHORA. FATO EXISTENTE. ALEGAÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA.
IMPENHORABILIDADE. EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3º, IV, DA LEI 8.009/90.
OBRIGAÇÕES "PROPTER REM". LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO.
INEXISTÊNCIA. DÍVIDA SOLIDÁRIA. DECISÃO RESCINDENDA EM DISSONÂNCIA
COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. RESCISÃO DO JULGADO. PEDIDO RESCISÓRIO
PROCEDENTE.
1. Pedido desconstitutivo de decisão desta Corte que,
reformando acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conheceu do
agravo para dar provimento ao recurso especial, reconhecendo como "bem de
família a parte da meeira objeto de constrição e, por conseguinte, a
impenhorabilidade do imóvel em sua totalidade".
[...]
6. "Com relação à legitimidade passiva, observa-se que, em se
tratando de obrigação 'propter rem', o pagamento de taxas condominiais deve
ser exigido de quem consta na matrícula do imóvel como seu proprietário" (AgRg
no REsp 1510419/PR, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado
em 01/12/2016, DJe 19/12/2016).
7. "Os cônjuges, co-proprietários de imóvel, respondem
solidariamente pelas despesas de condomínio, mas esta
responsabilidade não implica litisconsórcio necessário em razão da
natureza pessoal da ação de cobrança de cotas condominiais" (AgRg
no AREsp 213.060/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado
em 16/10/2012, DJe 06/11/2012).
8. DEMANDA RESCISÓRIA JULGADA PROCEDENTE PARA, EM
JUÍZO RESCINDENDO, DESCONSTITUIR A DECISÃO PROFERIDA NO AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL N. 490.442/SP E, EM JUÍZO RESCISÓRIO, CONHECER DO
AGRAVO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.
(AR 5.931/SP, 2ª Seção, DJe 21/06/2018)
V. DA RESPONSABILIDADE DA RECORRENTE QUANTO À
DÍVIDA CONDOMINIAL SUB JUDICE.
23. À luz das diretrizes anteriormente fixadas, verifica-se que, na
hipótese dos autos, a responsabilidade da recorrente pelo pagamento da dívida
condominial sub judice é inafastável.
24. Ab initio, é de se ressaltar que a própria recorrente confessa que
exerce a posse exclusiva do imóvel desde 2005, ou seja, antes mesmo do período
em que se venceram as cotas condominiais pleiteadas, sendo, portanto, quem
primariamente se beneficiou dos serviços de conservação da coisa. Dessa maneira,
ainda que a fase de conhecimento da ação de cobrança tenha tramitado apenas
em face de seu ex-companheiro ORCINIO – em razão da titularidade que à época
constava no registro imobiliário –, não se pode perder de vista que a recorrente,
de fato, é a devedora principal da dívida.
25. Por outro lado, sob um enfoque formal, é certo que, apesar do
acordo firmado entre ORCÍNIO e o CONDOMÍNIO, houve modificação da
titularidade do domínio no curso do processo, passando a recorrente a deter 100%
da propriedade do imóvel.
26. Dessa maneira, ante a aquisição da titularidade plena da unidade
condominial – o que se dá, frise-se, apenas com o ato do registro, na forma do art.
1.245 do CC/02 –, deve recair sobre a recorrente a responsabilidade pelo
pagamento dos débitos sobre o imóvel, mesmo aqueles em nome do “alienante”.
27. A propósito, convém pontuar que não há qualquer irregularidade
no acordo firmado pelo CONDOMÍNIO, eis que, à época da fase de conhecimento,
ORCINIO, na qualidade de proprietário de 50% do imóvel, tinha legitimidade
passiva para a lide e podia transacionar sem qualquer restrição.
28. Nesse passo, uma vez descumprido o acordo validamente firmado, mostra-se correta a retomada da ação em face de ORCÍNIO. E, ausente o
pagamento voluntário do débito, a penhora do imóvel gerador das despesas é
inexorável, ainda que conste, nesse novo momento processual, registro em nome
de terceiro.
29. Aliás, no que concerne à argumentação deduzida pela recorrente
acerca dos limites da coisa julgada, impõe salientar que, realmente, nos termos do
art. 506 do CPC/15, os efeitos da coisa julgada, como regra, apenas se operam inter
partes, não beneficiando nem prejudicando estranhos à relação processual em que
se formou.
30. No entanto, essa regra não é absoluta e comporta exceções. Em
determinadas hipóteses, a coisa julgada pode atingir, além das partes, terceiros
que não participaram de sua formação.
31. É o que ocorre, deveras, na hipótese de alienação da coisa ou do
direito litigioso.
32. A respeito, o art. 109, § 3º, do CPC/15 dispõe expressamente que
“estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao
adquirente ou cessionário”.
33. Trata-se de previsão legal que, verdadeiramente, faz irradiar a
terceiros os efeitos da coisa julgada, em virtude da modificação da situação jurídica
da coisa ou bem litigioso.
34. Em certa medida, essa disposição legal reflete a visão da moderna
processualística brasileira no sentido de que a alteração da situação das partes no
plano do direito material tem inegável influência sobre o processo, que não pode
ser desconsiderada, sob pena de se esvaziar de eficácia a própria tutela
jurisdicional.
35. Nessa toada, na hipótese em julgamento, a conclusão que se alcança é que, sendo a recorrente responsável pelo pagamento das despesas
condominiais pela aquisição da plena propriedade, não há necessidade de o
CONDOMÍNIO promover nova ação contra ela, na medida em que a sentença
prolatada na fase de conhecimento lhe é eficaz.
36. Outrossim, não se vislumbra qualquer óbice na inclusão da
recorrente no polo passivo do cumprimento de sentença em curso, em
substituição a ORCÍNIO, ex-proprietário, pois, conquanto o disposto no art.
109, § 3º, do CPC/15 não implique automática sucessão processual, é
certo que, por outro lado, não a impede.
37. Aqui, novamente, a solução da controvérsia perpassa pelo
princípio da instrumentalidade das formas, aliado ao princípio da efetividade do
processo, no sentido de se utilizar a técnica processual não como um entrave, mas
como um instrumento para a realização do direito material. Afinal, se a norma de
direito material contida no art. 1.345 do CC/02 atribui ao débito condominial
caráter ambulatório, impondo o pagamento ao adquirente do bem, inclusive das
parcelas vencidas, não faz sentido impedir que, no âmbito processual, se considere
o adquirente o sucessor do anterior proprietário, com vistas à plena satisfação da
dívida já consolidada. Não se pode olvidar que, em última análise, o próprio imóvel
gerador das despesas constitui garantia ao pagamento da dívida, dada a natureza
propter rem da obrigação.
38. A fim de corroborar o real espírito da obrigação de adimplemento
das despesas condominiais, cita-se recente precedente julgado por esta 3ª Turma,
em que se admitiu a sucessão processual do antigo executado pelo arrematante
do imóvel em hasta pública, que não participou da relação jurídica originária:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
(CPC/73). AÇÃO DE COBRANÇA. COTAS CONDOMINIAIS. CUMPRIMENTO DE
SENTENÇA. IMÓVEL ARREMATADO EM HASTA PÚBLICA. INFORMAÇÃO NO
EDITAL ACERCA DA EXISTÊNCIA DE DÉBITOS CONDOMINIAIS. CARÁTER 'PROPTER REM' DA OBRIGAÇÃO. RESPONSABILIDADE DO ARREMATANTE.
SUCESSÃO NO POLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. CABIMENTO.
1. Controvérsia em torno da possibilidade de inclusão do
arrematante no polo passivo da ação de cobrança de cotas condominiais na
fase cumprimento de sentença.
2. Em recurso especial não cabe invocar ofensa à norma
constitucional.
3. Os arts. 204 e 206, § 5º, I, do CC não contêm comandos
capazes de sustentar a tese recursal, atraindo o óbice da Súmula 284/STF.
4. Não há violação aos arts. 489, § 1º, IV e 1.022, II e § único, II,
do CPC quando a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal
de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em
sentido contrário à pretensão da parte recorrente.
5. Em se tratando a dívida de condomínio de obrigação
"propter rem", constando do edital de praça a existência de ônus
incidente sobre o imóvel, o arrematante é responsável pelo
pagamento das despesas condominiais vencidas, ainda que estas
sejam anteriores à arrematação, admitindo-se, inclusive, a
sucessão processual do antigo executado pelo arrematante. 6. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO (REsp 1.672.508/SP, 3ª
Turma, DJe 01/08/2019).
39. Sob esse espeque, a manutenção da improcedência dos embargos
de terceiro é medida que se impõe.
Forte nessas razões, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e,
nessa extensão, NEGO-LHE PROVIMENTO.
Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/15, considerando o trabalho
adicional imposto ao advogado da parte recorrida em virtude da interposição deste
recurso, majoro os honorários fixados anteriormente em 10% sobre o valor da
causa (e-STJ fl. 64) para 15%, observada a concessão da gratuidade de justiça à
recorrente.