RECURSO ESPECIAL Nº 1.824.133 - RJ (2018/0066379-3)
RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL
CIVIL. CPC/2015. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INTERESSE
PROCESSUAL. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO PEDIDO NA VIA
EXTRAJUDICIAL. DESCABIMENTO. EXEGESE DO ART.
216-A DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. RESSALVA
EXPRESSA DA VIA JURISDICIONAL.
1. Controvérsia acerca da exigência de prévio pedido de
usucapião na via extrajudicial para se evidenciar interesse
processual no ajuizamento de ação com o mesmo objeto.
2. Nos termos do art. 216-A da Lei 6.015/1973: "Sem prejuízo
da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento
extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente
perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que
estiver situado o imóvel usucapiendo [...]".
3. Existência de interesse jurídico no ajuizamento direto de
ação de usucapião, independentemente de prévio pedido na
via extrajudicial.
4. Exegese do art. 216-A da Lei 6.015/1973, em âmbito
doutrinário.
5. Determinação de retorno dos autos ao juízo de origem para
que prossiga a ação de usucapião.
6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro
(Presidente) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dr(a). DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
pela parte RECORRENTE: SELMA DA CUNHA
Brasília, 11 de fevereiro de 2020(data do julgamento)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
(Relator):
Trata-se de recurso especial interposto por SELMA DA CUNHA em
face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim
ementado:
Agravo Interno. Decisão monocrática que negou provimento à apelação
cível. Usucapião Extraordinária. Pretensão de reconhecimento do
domínio sobre o imóvel situado na Rua Professora Amélia Pinto Chagas,
n.º 09, Santa Cruz, nesta cidade, sob o fundamento, em suma, de que
preenche os requisitos legais para tanto. Sentença que julgou extinto o
processo, ante a ausência de interesse de agir. Inconformismo da autora.
De acordo com o artigo 216-A do Código de Processo Civil vigente, é
admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que
será processado diretamente perante o Cartório Imobiliário da Comarca
em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do
interessado, representado por advogado. Aplicação do Enunciado 108
do Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça. A ação de
usucapião é cabível somente quando houver óbice à pretensão na esfera
extrajudicial. Manutenção do decisum que se impõe. Recurso ao qual se
nega provimento. (fl. 176/7)
Em suas razões, alega a parte recorrente violação do art. 216-A da Lei
6.015/1973 (incluído pelo art. 1.071 do CPC/2015), sob o argumento de que o
procedimento extrajudicial de usucapião seria facultativo.
Contrarrazões dispensadas, em face da não angularização da relação
processual.
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL absteve-se de opinar sobre o mérito recursal, alegando disponibilidade do direito em questão (fls. 218/22).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
(Relator):
O recurso especial merece ser provido.
A controvérsia diz respeito ao interesse processual para ajuizamento
direto de ação de usucapião ante a recente ampliação das possibilidades de
reconhecimento extrajudicial da usucapião.
O reconhecimento extrajudicial da usucapião foi previsto, inicialmente,
no art. 60 da Lei do Programa "Minha Casa, Minha Vida" (Lei 11.977/2009),
com aplicação restrita ao contexto da regularização fundiária, conforme se
verifica no teor enunciado do referido enunciado normativo, litteris:
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida
anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5
(cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de
imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em
vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da
Constituição Federal.
§ 1º Para requerer a conversão prevista no 'caput', o adquirente
deverá apresentar:
I - certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência de
ações em andamento que caracterizem oposição à posse do imóvel
objeto de legitimação de posse;
II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural;
III – declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de
sua família; e
IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito
à usucapião de imóveis em áreas urbanas.
§ 2º. As certidões previstas no inciso I do § 1º serão relativas ao imóvel
objeto de legitimação de posse e serão fornecidas pelo poder público.
§ 3º. No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título
de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na
legislação pertinente sobre usucapião. (atualmente revogado pela Lei
13.465/2017)
Com o advento do CPC/2015, a usucapião extrajudicial passou a contar
com uma norma geral, não ficando mais restrita apenas ao contexto de
regularização fundiária.
Refiro-me ao enunciado normativo do art. 216-A da Lei 6.015/1973
(incluído pelo art. 1.071 do CPC/2015 e alterado pela Lei 13.465/2017), abaixo
transcrito:
Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de
reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado
diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em
que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do
interessado, representado por advogado, instruído com:
I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do
requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas
circunstâncias;
II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente
habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no
respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de
direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na
matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis
confinantes;
III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do
imóvel e do domicílio do requerente;
IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a
origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o
pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.
§ 1º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da
prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido.
§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares
de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na
matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis
confinantes, esse será notificado pelo registrador competente,
pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias,
interpretado o seu silêncio como discordância.
§ 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao
Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial
de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de
recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o
pedido.
§ 4º O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital
em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de
terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15
(quinze) dias.
§ 5º Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser
solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis.
§ 6º Transcorrido o prazo de que trata o § 4º deste artigo, sem
pendência de diligências na forma do § 5º deste artigo e achando-se em
ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos
titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados
na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis
confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do
imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de
matrícula, se for o caso.
§ 7º Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento
de dúvida, nos termos desta Lei.
§ 8º Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem,
o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido.
§ 9º A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de
ação de usucapião.
§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento
extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares
de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na
matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis
confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro
interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo
competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente
emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. (sem grifos no original)
Como se verifica já abertura do caput desse enunciado normativo, o
procedimento extrajudicial de usucapião foi disciplinado "sem prejuízo da via
jurisdicional".
Apesar da aparente clareza desse enunciado normativo, o Tribunal de
origem julgou a demanda com base no Enunciado nº 108 do Centro de Estudos
e Debates - CEDES-RJ daquele sodalício, no sentido de que "a ação de
usucapião é cabível somente quando houver óbice ao pedido na esfera
extrajudicial".
Sobre esse ponto, merece transcrição o trecho do acórdão referente à
justificativa do referido enunciado do CEDES-RJ:
A usucapião, como todo e qualquer processo, precisa preencher
determinadas condições, dentre as quais o interesse processual, que é
exatamente a necessidade de a parte buscar na via jurisdicional o que
não poderia conseguir extrajudicialmente. Dessa forma, a usucapião
que não encontre óbice ou empecilho em sede administrativa não tem
acesso ao Poder Judiciário, exatamente como não tem, também,
qualquer outro ato que possa ser praticado nos tabelionatos.
(fl. 147/8)
Apesar de esse enunciado apontar no sentido da desjudicialização de
conflitos - uma louvável tendência dos dias atuais -, não é possível passar por
cima do texto do enunciado do já aludido art. 216-A por se tratar de expressa
ressalva quanto ao cabimento direto da via jurisdicional.
Ademais, como a propriedade é um direito real, oponível erga omnes, o
simples fato de o possuidor pretender se tornar proprietário já faz presumir a
existência de conflito de interesses entre este o atual titular da propriedade, de
modo que não seria possível afastar de antemão o interesse processual do
possuidor, como parece sugerir o enunciado do Tribunal de origem.
Nesse sentido de se reconhecer interesse processual no ajuizamento de ação de usucapião independentemente de prévio pedido da via extrajudicial,
mencionem-se, em âmbito doutrinário, os abalizados entendimentos de
CLAYTON MARANHÃO e DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES,
abaixo transcritos, respectivamente:
Apesar da criação do procedimento de usucapião extrajudicial, o
CPC/2015 não acabou com a ação de usucapião. Ainda que não tenha
mantido o rito especial de usucapião, há diversas referências no código
à ação de usucapião (conforme arts. 246, § 3.º,2 259, I,3 e 1.071, §§ 9.º
e 10,4 do CPC/2015), de modo que, doravante, deverá ser intentada
pelo procedimento comum. A par disso, o Enunciado 25 do Fórum Permanente de
Processualistas Civis aponta que “a inexistência de procedimento
judicial especial para a ação de usucapião e regulamentação da
usucapião extrajudicial não implicam vedação da ação, que remanesce
no sistema legal, para qual devem ser observadas as peculiaridades que
lhe são próprias, especialmente a necessidade de citação dos
confinantes e a ciência da União, do Estado, do Distrito Federal e do
Município”.
Assim, ao lado da ação judicial de usucapião passa a existir a
possibilidade genérica de alteração na titularidade do imóvel em razão
do reconhecimento extrajudicial da prescrição aquisitiva. Não é um
dever da parte eleger a via administrativa, podendo optar pela ação
judicial, ainda que preenchidos os requisitos da usucapião
extrajudicial, “a via extrajudicial é uma faculdade, e não uma
obrigação peremptória, o que confirma a tese antes defendida, de
viabilidade de todas as ações de usucapião, agora pelo rito comum”.
(Comentários ao Código de Processo Civil [livro eletrônico]: artigos.
1.045 ao 1.072. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016 - Comentários ao Código de Processo Civil; v. 17 / coordenação Luiz
Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero, sem grifos no
original)
Seguindo a tendência do direito nacional de desjudicialização do
direito, atribuindo-se as serventias notariais e registrais tarefas que
antes dependiam obrigatoriamente da intervenção jurisdicional, o art.
1.071 do Novo CPC, ao criar o art. 216-A da Lei 6.015/1973 (Lei de
Registros Públicos), passa a admitir a realização de usucapião
extrajudicial.
Não se tratar propriamente de uma novidade do sistema, já que o art. 60 da Lei 11.977/2009 (Lei do Programam Minha Casa, Minha
vida), já prevê tal possibilidade, desde que preenchidos os requisitos
legais. O art. 216-A da Lei 6.015/1973, entretanto, é mais amplo,
porque sua púnica exigência é a concordância das partes.
Registre-se que a novidade não cria um dever à parte que pretenda
adquirir um bem por usucapião, que mesmo preenchidos os requisitos
para o procedimento extrajudicial pode livremente optar pela
propositura de ação judicial. Sendo a via extrajudicial a opção da
parte, que deverá estar assistida de advogado, o procedimento
tramitará obrigatoriamente perante a serventia imobiliária da situação
do imóvel. (Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador:
JusPodvm, 2016, p. 1806, sem grifos no original)
Na linha desses entendimentos, é de rigor a reforma do acórdão recorrido
para se determinar o prosseguimento da ação de usucapião.
Destarte, o recurso especial merece ser provido.
Ante o exposto, voto no sentido de DAR PROVIMENTO ao
recurso especial para determinar o prosseguimento da ação de usucapião.
É o voto.