RECURSO ESPECIAL Nº 1.749.812 - PR (2018/0152682-6)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA, COM BASE EM VIOLAÇÃO LITERAL DE LEI,
CONTRA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO EM AÇÃO DE COBRANÇA DE DÉBITOS
CONDOMINIAIS. TESE DE QUE O § 5º DO ART. 219 DO CPC/1973 IMPUNHA AO JUIZ O
RECONHECIMENTO, DE OFÍCIO, DA PRESCRIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. PRESCRIÇÃO É
MATÉRIA CIRCUNSCRITA AO DIREITO MATERIAL DAS PARTES, RESTRITA À ESFERA DE
SUA DISPONIBILIDADE. RECONHECIMENTO. EXCEÇÃO SUBSTANCIAL NÃO SUSCITADA
PELA PARTE BENEFICIÁRIA. RENÚNCIA AO DIREITO DE DEFESA. PRECLUSÃO E COISA
JULGADA. VERIFICAÇÃO. MANEJO DE AÇÃO RESCISÓRIA, FUNDADA EM VIOLAÇÃO
LITERAL DE LEI, SEM QUE A QUESTÃO AFETA À PRESCRIÇÃO TENHA SIDO OBJETO DE
DELIBERAÇÃO NA AÇÃO ORIGINÁRIA. DESCABIMENTO. RECURSO ESPECIAL
IMPROVIDO.
1. A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em definir se é cabível o
ajuizamento de ação rescisória, fundada na alegação de violação literal de lei — especificamente dos arts. 206, § 5º, I do CC e 219, § 5º, do CPC/1973, que cuidam,
respectivamente, da prescrição quinquenal da pretensão de cobrança de dívidas líquidas e
da possibilidade de reconhecimento, de ofício, pelo juiz da prescrição —, a despeito de a
sentença rescidenda não ter esposado nenhum juízo de valor sobre a questão afeta à
prescrição, sendo incontroverso que a parte que aproveitaria de seu reconhecimento (o ora
insurgente) em momento algum dela cogitou.
2. A prescrição, compreendida como a perda da pretensão de exigir de alguém a realização
de uma prestação, em virtude da fluência de prazo fixado em lei, tangencia, diretamente,
como se pode perceber de sua definição, interesses adstritos exclusivamente às partes
envolvidas. Isso porque a prescrição, refere-se a direitos subjetivos patrimoniais e relativos,
na medida em que a correlata ação condenatória tem por finalidade obter, por meio da
realização de uma prestação do demandado, a reparação dos prejuízos suportados em razão
da violação do direito do autor. Não é por outra razão, aliás, que a prescrição, desde que
consumada, comporta, à parte que a favoreça, sua renúncia, expressa ou tácita (ao contrário
do que se dá com a decadência, que, diretamente, guarda em si, um interesse público).
2.1 Evidenciada a adstrição da prescrição aos interesses das partes e considerada a
natureza dos direitos a que se refere, a possibilidade de o juiz dela conhecer, de ofício, tal
como dispõe a lei adjetiva civil (de 1973, assim como a atual), refoge, em princípio, da lógica,
e somente se justifica em nome da celeridade, efetividade e economia processual.
3. O fato de o magistrado não reconhecer, de ofício, a prescrição — incumbência que
competia, necessariamente, à parte a que beneficiaria, caso quisesse valer-se da exceção
substancial —, não redunda na ofensa à literalidade do § 5º do art. 219 do CPC/1973, a
subsidiar ação rescisória, com fulcro no art. 485, V, CPC/1973 (art. 966, V, CPC/2015), pois
a norma processual não encerra ao juiz o dever de deliberar sobre a matéria de livre
disposição das partes litigantes.
4. Se ao magistrado não se impõe o dever de se manifestar sobre a prescrição, embora seja a ele possível, sob o signo da celeridade processual, à parte que se beneficiaria com a sua
declaração, ao contrário, caso seja sua intenção valer-se da exceção substancial em
comento, não é dado furtar-se de suscitá-la no processo, sob pena de sua inércia configurar
verdadeira renúncia a esse direito (de defesa à pretensão).
4.1 Com a superveniência da sentença transitada em julgado, opera-se, por conseguinte, a
preclusão máxima, mediante a conformação da coisa julgada, reputando-se "deduzidas e
repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento
como à rejeição do pedido" (art. 474 do CPC/1973; art. 508 do CPC/2015, com redação
similar).
5. A violação literal de lei, como fundamento da ação rescisória, pressupõe que o órgão
julgador delibere sobre a questão posta, conferindo indevida aplicação a determinado
dispositivo legal ou deixando de aplicar preceito legal que, supostamente, segundo a
compreensão do autor da rescisória, melhor resolva a matéria. Em uma ou outra situação, é
indispensável que a questão aduzida na ação rescisória tenha sido objeto de deliberação na
ação rescindenda, o que não se confunde com exigência de prequestionamento do
dispositivo legal apontado.
5.1. No particular, a questão relacionada à prescrição, embora fosse possível, não foi
tratada, de ofício, pelo juiz, tampouco foi suscitada, como seria de rigor, pela parte a que
beneficiaria com o seu reconhecimento, caso fosse de seu interesse, não havendo, assim,
nenhuma deliberação sobre a matéria no bojo da ação rescidenda. De todo inconcebível,
assim, o manejo de ação rescisória, sob a tese de violação literal de lei, se a questão — a
qual o preceito legal apontado na ação rescisória deveria supostamente regular — não foi
objeto de nenhuma deliberação na ação originária.
6. Recurso especial improvido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam
os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi, Paulo de Tarso
Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 17 de setembro de 2019 (data do julgamento).
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:
Anuar Abdul Tarabai interpõe recurso especial, fundado nas alíneas a e c do
permissivo constitucional, contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná.
Subjaz ao presente recurso especial ação rescisória, fundada no art. 966, V,
do CPC/2015, promovida por Anuar Abdul Tarabai contra Condomínio Residencial Villa
Mirafiori, tendo por propósito desconstituir a sentença transitada em julgado, proferida na
ação de cobrança de despesas condominiais que, verificada a revelia e demonstrada a
inadimplência, condenou o então requerido, Anuar Abdul Tarabai, ao pagamento da
importância de R$ 46.448,31 (quarenta e seis mil, quatrocentos e quarenta e oito reais e
trinta e um centavos, corrigidos pelo INPC/IGPM e juros moratórios de 1% ao mês,
contados da data da citação, referente ao período de dezembro de 2004 a março de 2015
(e-STJ, fl. 149-153).
Para tanto, argumentou que "a sentença proferida nos autos n.
0013091-27.2015.8.16.0030, ao condenar o Sr. Anuar ao pagamento de débitos
condominiais relativos ao período de dez/2004 a abr/2010, ou seja, passados mais de
cinco anos do vencimento da dívida (quando do ajuizamento da ação em abr/2015), deixou
de aplicar o prazo prescricional previsto expressamente na legislação civil, afinal,
prescreve em cinco anos, contados do vencimento de cada parcela, a pretensão, nascida
sob a vigência do CC/2002, de cobrança de cotas condominiais" (e-STJ, fl. 6).
Sustentou que, "segundo o entendimento do STJ, a pretensão, tratando-se
de dívida líquida desde sua definição em assembleia geral de condomínios e lastreada em
documentos físicos, adequa-se à previsão do art. 206, § 5º, I, do CC/2002, segundo o qual
prescreve em cinco anos 'a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de
instrumento público ou particular'" (e-STJ, fl. 7).
Esclareceu, ainda, que, quando da prolação da sentença (em 1º/8/2015) já
não mais remanescia nenhuma controvérsia no âmbito do STJ quanto à aplicação do
prazo quinquenal à pretensão de cobrança das taxas condominiais, o que afasta a incidência do enunciado n. 343 da Súmula do STF.
Defendeu, ainda, que, independentemente da revelia havida nos autos
originais, o art. 219, § 5º, do CPC/1973, vigente à época, era claro em estatuir a
obrigatoriedade do juiz pronunciar, de ofício, a prescrição, já que se trata de matéria de
ordem pública. Concluiu, no ponto, ter o acórdão rescindendo, ao assim não proceder,
incorrido, também, na violação literal do referido dispositivo legal.
Requereu, ao final, "a rescisão da r. sentença proferida nos autos n.
0013091-27.2015.8.16.0030, pela violação literal dos arts. 206, § 5º, I do CC e 219 do
CPC/73, conforme determina o art. 966, V do CPC/15, com o consequente novo
julgamento do processo, dessa vez reconhecendo-se a prescrição dos débitos
condominiais referentes ao período de (com vencimento em) dez/2004 a abr/2010 e a
decorrente redistribuição dos ônus sucumbenciais" (e-STJ, fl. 12).
Citado, o Condomínio Villa Mirafiori infirmou, in totum, a pretensão posta na
exordial (e-STJ, fls. 688-698).
Aduziu que a violação de norma jurídica pressupõe manifestação expressa
sobre a norma violada no julgamento que se pretende rescindir, não sendo cabível a ação
rescisória quando a norma supostamente violada nem sequer foi invocada pela parte
interessada. Afirmou, assim, que a questão referente à prescrição não foi alegada no
momento apropriado.
Alegou, ainda, que a presente ação rescisória estaria sendo utilizada pelo
requerente como sucedâneo recursal, com o objetivo de obter a reforma do julgamento.
O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ao final, julgou improcedente a
ação rescisória, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fl. 726):
AÇÃO RESCISÓRIA – COBRANÇA DE COTAS CONDOMINIAIS EM
FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – VIOLAÇÃO DE NORMA
JURÍDICA – PRESCRIÇÃO – AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO SOBRE
O PRECEITO APONTADO COMO VIOLADO – AUSÊNCIA DE
ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO NO CURSO DA AÇÃO ORIGINÁRIA
QUE IMPOSSIBILITA A ARGUIÇÃO DA MATÉRIA EM SEDE DE AÇÃO
RESCISÓRIA – PRECEDENTES DO STJ – AÇÃO RESCISÓRIA
JULGADA IMPROCEDENTE.
Em seu apelo especial, fundado nas alíneas a e c do permissivo
constitucional, Anuar Abdul Tarabai aponta violação dos arts. 114 e 191 do Código Civil; 219, § 5º, e 474 do CPC/1973; e 966, V, do CPC/2015, além de dissenso jurisprudencial.
Afirma que o acórdão estadual, ao compreender que a ausência de alegação
de prescrição no processo originário redundaria em renúncia tácita, viola os arts. 114 e
191 do Código Civil. Argumenta, no ponto, que, de acordo com tais dispositivos legais, a
renúncia tácita somente ocorre quando o interessado pratica atos incompatíveis com a
prescrição, o que não se dá quando a parte a quem aproveita deixa de alegar, já que, em
sua compreensão, o juízo pode reconhecê-la de ofício ou ser arguida em grau de
jurisdição posterior. Suscita, ainda, dissídio jurisprudencial.
Alega, também, que o Tribunal de origem incorreu na afronta dos arts. 219, §
5º, e 474 do CPC/1973 e 966, V, do CPC/2015, ao compreender que não ocorre violação
literal de lei quando a decisão rescindenda não aborda o dispositivo legal tido por violado,
ainda que se trate de matéria de ordem pública cognoscível de ofício, no caso, a
prescrição.
Defende que "o simples fato de um juiz quedar silente quanto à ocorrência
de uma prescrição que deveria ter sido observada é suficiente para ferir a literalidade do
art. 219, § 5º, do CPC/73, afinal trata-se de um dever do magistrado, e não de uma
faculdade" (e-STJ, fl. 819). Corrobora esta assertiva com o argumento de que "em sede
recursal, o Tribunal ad quem poderia reformar de ofício tal sentença, decretando ele
mesmo a prescrição (ainda que ela não tenha sido abordada pelo Juízo a quo ou alegada
pelas partes, sem que com isso se configure supressão de instância, julgamento extra
petita etc)" — (e-STJ, fl. 819).
Aduz que, "se a prescrição era uma das defesas que a parte poderia invocar
para a rejeição do pedido e se a sentença nada falou sobre ela, presume-se que a
prescrição tenha sido rejeitada", sendo certo que o "'prequestionamento' exigido pelo v.
acórdão rescindendo dá-se de forma implícita, ou melhor, de forma legalmente presumida"
(e-STJ, fls. 820).
A parte adversa apresentou contrarrazões às fls. 868-878 (e-STJ).
O Tribunal de origem deu seguimento à insurgência (e-STJ, fls. 879-881),
razão pela qual o recurso especial ascendeu a esta Corte de Justiça.
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):
A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em
definir se é cabível o ajuizamento de ação rescisória, fundada na alegação de
violação literal de lei — especificamente dos arts. 206, § 5º, I do CC e 219, § 5º, do
CPC/1973, que cuidam, respectivamente, da prescrição quinquenal da pretensão de
cobrança de dívidas líquidas e da possibilidade de reconhecimento, de ofício, pelo juiz da
prescrição —, a despeito de a sentença rescidenda não ter esposado nenhum juízo
de valor sobre a questão afeta à prescrição, sendo incontroverso que a parte que
aproveitaria de seu reconhecimento (o ora insurgente) em momento algum dela
cogitou.
Nos termos relatados, o recorrente defende o cabimento da ação rescisória,
independentemente da revelia havida nos autos originais, sob o argumento, em síntese, de
que o art. 219, § 5º, do CPC/1973, vigente à época, impunha ao juiz a obrigatoriedade de
pronunciar, de ofício, a prescrição, já que se trata de matéria de ordem pública. Logo, em
sua compreensão, a sentença rescidenda, ao não declarar, de ofício, a ocorrência de
prescrição da pretensão de cobrar débitos condominiais em período superior aos 5 (cinco)
anos anteriores ao ajuizamento da ação, teria incorrido em violação literal do aludido
preceito legal, em conjunto com o art. 206, § 5º, I, do Código Civil.
O argumento, todavia, afigura-se meramente retórico, e, como tal, não
procede, conforme se passa a demonstrar a seguir.
Na sistemática do Código de Processo Civil de 1973, vigente à época em
que tramitava a ação rescindenda em comento, a Lei n. 11.280/2006 alterou a redação do
§ 5º do art. 219 — que preceituava, nestes termos: não se tratando de direitos
patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato —, para dispor que o "juiz pronunciará, de ofício, a prescrição".
A alteração da lei adjetiva civil, de viés unicamente instrumental, com o
exclusivo propósito de imprimir maior celeridade ao processo, não possui o condão de modificar a natureza do instituto da prescrição, atrelado, intrinsecamente, ao direito
material das partes. Trata-se, pois, de uma exceção substancial (defesa de direito
material).
O instituto da prescrição, considerado o fim a que se destina — conferir
segurança jurídica advinda da estabilização das relações sociais —, guarda, em si, ainda
que reflexamente, um interesse público. Seu tratamento legal, delineado no âmbito do
direito substancial, tem por escopo extirpar a intranquilidade social, no bojo das relações
jurídicas, gerada pelo potencial e indefinido exercício de uma ação destinada à realização
de prestação, fundada na lesão ou ameaça a um direito do autor, no que reside o aludido
interesse público.
Todavia, não se deve perder de vista que a prescrição, compreendida como
a perda da pretensão de exigir de alguém a realização de uma prestação, em virtude da
fluência de prazo fixado em lei, tangencia, diretamente, como se pode perceber de sua
definição, interesses adstritos exclusivamente às partes envolvidas. Isso porque a
prescrição refere-se a direitos subjetivos patrimoniais e relativos, na medida em que a
correlata ação ressarcitória tem por finalidade obter, por meio da realização de uma
prestação do demandado, a reparação dos prejuízos suportados em razão da violação do
direito do autor. Não é por outra razão, aliás, que a prescrição, desde que consumada,
comporta, à parte que a favoreça, sua renúncia, expressa ou tácita (ao contrário do que se
dá com a decadência, que, diretamente, guarda em si, um interesse público).
Evidenciada, assim, a adstrição da prescrição aos interesses das partes e
considerada a natureza dos direitos a que se refere, a possibilidade de o juiz dela
conhecer, de ofício, tal como dispõe a lei adjetiva civil (de 1973, assim como a atual),
refoge, em princípio, da lógica, e somente se justifica em nome da celeridade, efetividade e
economia processual. Ainda que presentes essas motivações, a decretação da
prescrição, de ofício, sem a oitiva da outra parte, conquanto com ela se beneficie, por si,
encerra óbices insanáveis, em absoluta inadequação com a natureza do instituto.
Não se afigura possível ao juiz, assim, em substituição à parte que com a
prescrição venha a se beneficiar, supor que esta não se valeria do direito de renunciar à
prescrição consumada ou, de outro modo, a ela não se objetaria quando tiver, por
exemplo, o interesse que se reconheça a cobrança indevida de dívida, decorrente de pagamento já realizado, a gerar a repetição em dobro do indébito, nos termos do art. 940
do Código Civil.
Veja-se, portanto, que a possibilidade de o juiz conhecer, de ofício, da
prescrição, tal como previsto no diploma processual de 1973 e mantida no atual, não
encerra uma imposição ao magistrado, que, ainda que possa assim proceder, não retira
das partes interessadas, titulares que são do respectivo direito (seja o da pretensão, seja o
da exceção a ela referente), o dever de se manifestar sobre a questão afeta à prescrição.
Nessa linha de entendimento, destaca-se o escólio de Humberto Theodoro
Júnior, que, em comentário à possibilidade de o juiz conhecer, de ofício, da prescrição,
prevista no diploma processual de 1973, com a alteração conferida pela Lei n.
11.280/2006, bem esclarece o alcance da norma adjetiva:
A prescrição, porém, pode ser livremente renunciável pelo devedor
(Cód. Civil, art. 194), nunca pôde (segundo a tradição do direito
material) ser decretada de ofício pelo juiz (Cód. Civil de 2002, art.
194). Abria-se no direito material exceção apenas para os devedores
absolutamente incapazes, cujos interesses em torno da prescrição
eram tratados como indisponíveis e, por isso mesmo, tuteláveis pelo
juiz, independentemente da provação dos respectivos representantes
legais (Cód. Civil de 2002, art. 194, in fine). A pretexto de imprimir
maior celeridade ao processo, a Lei n. 11.280, de 16.02.2006, alterou
o texto do § 5º do art. 219 do CPC de 1973, para dispor, contra todas
as tradições do direito ocidental, que, em qualquer caso, "o juiz
pronunciará, de ofício, a prescrição".
A nosso sentir, essa revolucionária regra processual não teve o
alcance que o afoito legislador pretendeu, pois a sistemática da
prescrição é própria do direito material, e na sede que lhe é específica
não há, em regra, como fazer a vontade do juiz passar por cima da
autonomia da vontade das partes, quando o que está em questão é
um direito potestativo da livre disposição do respectivo titular (in Curso
de Direito Processual Civil - Teoria Geral do Direito Processual Civil,
Processo de Conhecimento e Procedimento Comum - Vol. I. 58ª
Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1.057).
Saliente-se, a propósito, que, à vista de tal incongruência, o Código de
Processo Civil de 2015 teve o mérito de, a par da possibilidade de reconhecimento, de
ofício, da prescrição pelo magistrado, impor a este, antes, a viabilização do indispensável
contraditório. Assim, o art. 10 é claro ao dispor que: “o juiz não pode decidir, em grau
algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às
partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva
decidir de ofício".
Especificamente sobre a prescrição (e a decadência), o art. 487 do Código
de Processo Civil preceitua que “haverá resolução de mérito quando o juiz: (...) II – decidir
de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição". E, em seu
parágrafo único, assentou-se que: “ressalvada a hipótese do § 1º do art. 332
[improcedência liminar do pedido], a prescrição e a decadência não serão reconhecidas
sem que antes seja dada às partes oportunidade de se manifestar-se.
Em que pese o avanço da disposição legal sob comento (que, como visto,
viabiliza o imprescindível contraditório), a ressalva contida no preceito legal não se
compatibiliza com a natureza do instituto. Assim, mesmo em se tratando de
reconhecimento liminar da improcedência do pedido com base na prescrição consumada,
imprescindível que se confira às partes, inclusive, à que, com ela, venha a se beneficiar, a
oportunidade de sobre ela se manifestar, necessariamente.
A exceção legal, como se constata, parte da errônea presunção de que a
improcedência liminar do pedido com base na prescrição — decisão de mérito que é — somente prejudicaria ou diria respeito ao demandante, ao qual, para se opor a tal decisão,
seria conferido a via recursal. Mais uma vez, não caberia (agora) à lei supor que a parte
demandada (a quem, em tese, o reconhecimento da prescrição beneficiaria) não se valeria
do direito de renunciá-la ou de objetá-la, para, no curso do próprio processo, por exemplo,
buscar a repetição em dobro do indébito, em razão de anterior pagamento, com esteio no
art. 940 do Código Civil.
Tem-se, por conseguinte, que, mesmo na hipótese de improcedência liminar
do pedido, com fulcro no reconhecimento da prescrição da pretensão, há que se conferir
às partes, antes, oportunidade de se manifestarem sobre a matéria, com fulcro no art. 10
do Código de Processo Civil, consentâneo com o instituto em questão, a despeito da
expressa ressalva contida no parágrafo único do art. 487 do referido diploma legal.
Nessa linha de entendimento e coerente com a natureza do instituto da
prescrição, agora na sistemática do CPC/2015, o ilustre processualista mineiro, já citado,
obtempera:
O legislador, ao tratar da sentença de mérito (art. 487), estabeleceu
que, no caso de prescrição ou decadência, o juiz, embora possa atuar
de ofício, não as reconhecerá "sem que antes seja dada às partes
oportunidade de manifestar-se" (art. 487, parágrafo único). Contudo,
ressalvou que, no caso da improcedência liminar do pedido (art. 332, § 1º), a oitiva das partes não será exigível.
Malgrado o Código dispense a manifestação prévia dos litigantes na
hipótese em análise, nenhum juiz tem, na prática, condições de, pela
simples leitura da inicial, reconhecer ou rejeitar uma prescrição. Não
se trata de uma questão apenas de direito, como é a decadência, que
se afere por meio de um simples cálculo do tempo ocorrido após o
nascimento do direito potestativo de duração predeterminada. A
prescrição não opera ipso iure; envolve necessariamente fatos
verificáveis no exterior da relação jurídica, cuja presença ou ausência
são decisivas para a configuração da causa extintiva da pretensão do
credor insatisfeito. Sem dúvida, as questões de fato e de direito se
entrelaçam profundamente, de sorte que não se pode tratar a
prescrição como uma simples questão de direito que o juiz possa, ex
officio, levantar e resolver liminarmente, sem o contraditório entre os
litigantes. A prescrição envolve, sobretudo, questões de fato, que, por
versar sobre eventos não conhecidos do juiz, o inibem de
pronunciamentos prematuros e alheios às alegações e conveniências
dos titulares dos interesses em confronto (ob. cit.; p. 785)
Feitas tais digressões afetas à prescrição, e, retornando ao caso dos
autos, pode-se concluir que a norma processual que possibilita sua declaração, de ofício,
pelo juiz, estabelecida no Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 219, § 5º,
(inclusive com a redação conferida pela Lei n. 11.280/2006), não encerra um dever do
magistrado, como quer fazer crer a parte ora insurgente.
Trata-se, pois, de matéria circunscrita à disposição das partes, sobre a qual
o juiz não pode se sobrepor, ainda que motivado pela propugnada celeridade/efetividade
processual, sob pena de incorrer em manifesto desvirtuamento do instituto, o qual se
relaciona, como visto, intrinsecamente ao direito material das partes interessadas.
Se ao magistrado não se impõe o dever de se manifestar sobre a
prescrição, embora seja a ele possível, sob o signo da celeridade processual, à parte que
se beneficiaria com a sua declaração, ao contrário, caso seja sua intenção valer-se da
exceção substancial em discussão, não é dado furtar-se de suscitá-la no processo, sob
pena de sua inércia configurar verdadeira renúncia a esse direito (de defesa à pretensão).
Aliás, a matéria afeta à prescrição, caso não reconhecida de ofício pelo juiz,
há de ser suscitada pela parte a que beneficia —, caso queira valer-se dessa exceção
substancial —, necessariamente, até o exaurimento das instâncias ordinárias, não sendo
mais possível o conhecimento da matéria na instância especial.
Veja-se, portanto, que, a despeito de a prescrição ser passível de ser reconhecida de ofício, pode precluir no bojo do processo em que a pretensão de exigir a
realização de uma prestação é exercida pela parte lesada. Com mais razão, ante a
superveniência da sentença transitada em julgado, opera-se, por conseguinte, a preclusão
máxima, mediante a conformação da coisa julgada, reputando-se "deduzidas e repelidas
todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à
rejeição do pedido" (art. 474 do CPC/1973; art. 508 do CPC/2015, com redação similar).
Desse modo, o fato de o magistrado não reconhecer, de ofício, a prescrição — incumbência que competia, necessariamente, à parte que a beneficiaria, caso quisesse
valer-se da exceção substancial —, não redunda na ofensa à literalidade do § 5º, do art.
219 do CPC/1973, a subsidiar ação rescisória, com fulcro no art. 485, V, CPC/1973 (art.
966, V, CPC/2015), pois, como assentado, ao juiz não se impõe o dever de deliberar sobre
a matéria de livre disposição das partes litigantes.
Por fim, não se pode deixar de reconhecer que a violação literal de lei, como
fundamento da ação rescisória, pressupõe que o órgão julgador, ao deliberar sobre a
questão posta, confira má aplicação a determinado dispositivo legal ou deixe de aplicar
dispositivo legal que, supostamente, segundo a compreensão do autor da rescisória,
melhor resolveria a controvérsia. Em uma ou outra situação, é indispensável que a
questão aduzida na ação rescisória tenha sido objeto de deliberação na ação rescindenda.
Não se está a exigir, para efeito de ação rescisória, o
prequestionamento do artigo cuja literalidade se repute violado. Impõe-se, para
efeito de cabimento de ação rescisória, fundada na alegação de ofensa à literalidade de
dispositivo legal, que a questão tenha sido objeto de decisão na ação rescindenda, seja
conferindo incorreta aplicação a determinado dispositivo legal, seja deixando de aplicar
preceito legal, que, segundo a convicção do autor da ação rescisória, melhor regularia a
matéria.
Nesse sentido, posiciona-se a jurisprudência mais recente do Superior
Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA.
VIOLAÇÃO LITERAL A DISPOSITIVO DE LEI. QUESTÃO ESTRANHA
AO CONTEÚDO DA DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO.
INVIABILIDADE.
1. Trata-se, na origem, de Ação Rescisória ajuizada pelo INSS com a
finalidade de desconstituir parcialmente o trânsito em julgado de
sentença que condenou a autarquia ao pagamento de benefício previdenciário.
2. A demanda foi ajuizada com base no art. 485, V, do CPC/1973,
tendo sido apontado como violado o art. 219, § 5º, daquele diploma
legislativo.
3. O Tribunal local corretamente julgou improcedente o pedido,
adotando como fundamento a inviabilidade desta demanda
para discutir matéria estranha ao conteúdo do acórdão cuja
rescisão era almejada.
4. "Ainda que não se exija que a lei tenha sido invocada no
processo originário, tendo em vista que o requisito do
prequestionamento não se aplica em sede de ação rescisória,
mostra-se inviável o pedido de rescisão, com base no art. 485,
V, do CPC, fundado em suposta violação a disposição de lei,
quando a questão aduzida na ação rescisória não foi tratada em
nenhum momento em tal processo" (AgRg na AR 4.741/SC, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe
6/11/2013).
5. Recurso Especial não provido.
(REsp 1648617/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA
TURMA, julgado em 04/05/2017, DJe 17/05/2017) - sem grifo no
original.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. SERVIDOR PÚBLICO.
VIOLAÇÃO LITERAL DE DISPOSITIVO LEGAL (ART. 485, V,
CPC/1973). AÇÃO RESCISÓRIA COMO SUCEDÂNEO RECURSAL.
IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO RESCISÓRIA NÃO PROVIDA.
1. Pela disposição normativa prevista tanto no art. 485, V, do
CPC/1973 quanto no art. 966, V, do CPC/2015, observa-se que a
concretização do vício rescisório está na manifesta divergência
entre o julgado e o legislado. Ou seja, a não observação de
preceito legal deve ser clara e inequívoca.
2. No caso dos autos, os dispositivos indicados como expressamente
violados são: I) arts. 3º, VI, e 267, ambos do CPC/1973 e art. 1º do
Dec.-Lei n. 1.110/1970, porque a ilegitimidade da União não foi
declarada; II) do art. 1º do Dec.-Lei n. 20.910/1932 e dos arts. 219, §
5º, e 618, ambos do CPC/1973, porquanto não houve a extinção da
execução, apesar da ocorrência da prescrição da pretensão
executória.
3. Não se vincula a existência de vício rescisório a uma prévia
indicação precisa do dispositivo na fundamentação do julgado
rescindendo. Contudo, a inexistência de prequestionamento
como requisito de ação rescisória não significa que essa possa
ser utilizada como sucedâneo recursal, em face de seu caráter
excepcional consequente da proteção à coisa julgada e à
segurança jurídica. Assim, a deliberação contrária a disposição
legal deve se apresentar no julgado rescindendo, mesmo
quando não apresentada expressamente, de forma relevante.
4. A decisão rescindenda limitou-se a examinar questão relacionada
ao excesso de execução. Tanto que deu provimento aos embargos à
execução para abater R$ 15.568,69 do requerido inicialmente na
execução do título firmado em mandado de segurança. Não houve
análise de teses relacionadas à ilegitimidade ou à prescrição, até mesmo porque essas questões sequer foram elencadas na
petição de embargos à execução. Portanto, verifica-se que
esta ação rescisória foi manejada com o fim de substituir
recurso e de discutir questões novas, que poderiam ter sido
analisadas antes do trânsito do julgado rescindendo.
5. Ação rescisória não provida.
(AR 5.581/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/11/2018, DJe 12/12/2018)
Na hipótese dos autos, a questão relacionada à prescrição, embora fosse
possível, não foi tratada, de ofício, pelo juiz, tampouco foi suscitada, como seria de rigor,
pela parte a que beneficiaria com o seu reconhecimento, caso fosse de seu interesse, não
havendo, assim, nenhuma deliberação sobre a matéria no bojo da ação rescidenda.
De todo inconcebível, assim, o manejo de ação rescisória, sob a tese de
violação literal de lei, se a questão — a qual o preceito legal apontado na ação rescisória
deveria supostamente regular — não foi objeto de nenhuma deliberação na ação
originária.
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, nego
provimento ao presente recurso especial.
É o voto.