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5 de janeiro de 2022

É possível a existência de multiparentalidade, existindo equivalência entre os vínculos biológico e socioafetivo

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/11/info-712-stj.pdf


PARENTESCO: É possível a existência de multiparentalidade, existindo equivalência entre os vínculos biológico e socioafetivo 

Na multiparentalidade deve ser reconhecida a equivalência de tratamento e de efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva. STJ. 4ª Turma. REsp 1.487.596-MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 28/09/2021 (Info 712). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

Vitória é filha biológica de Carlos e Julia. Em 1994, Carlos faleceu quando Vitória tinha apenas 12 anos. Dois anos depois do falecimento, Julia passou a viver em união estável com Luiz, relacionamento que se mantém até os dias de hoje. Diante dessa realidade, Vitória e Luiz ajuizaram ação declaratória de multiparentalidade pedindo que ele fosse reconhecido como pai socioafetivo de Vitória, sem prejuízo da filiação biológica que deveria permanecer válida em relação a Carlos (já falecido). Assim, pediu-se o reconhecimento da multiparentalidade, ou seja, do duplo vínculo de filiação. 

O STJ concordou com o pedido formulado? SIM. 

O que é a multiparentalidade? 

“A pluriparentalidade é constituída meramente pela ocorrência do fato social de uma criança encarar mais de uma pessoa como pai e/ ou como mãe, inclusive tratando a ambos por pai e/ou por mãe (...) (...) O reconhecimento da multiparentalidade é mais um degrau nos avanços do reconhecimento do afeto enquanto um valor jurídico. Se a pessoa vivencia uma situação de variados vínculos afetivos em sua ancestralidade, não há como deixar de reconhecermos efeitos jurídicos nessa relação.” (ROSA, Conrado Paulina da. Direito de Família Contemporâneo. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 424-425). 

Possibilidade jurídica da multiparentalidade (pluriparentalidade ou duplo vínculo de filiação) 

A questão da multiparentalidade foi decidida em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 898.060/SC, tendo sido reconhecida a possibilidade da filiação biológica concomitante à socioafetiva, por meio de tese assim firmada: 

A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. STF. Plenário. RE 898060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21 e 22/09/2016 (Repercussão Geral – Tema 622) (Info 840). 

A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica está diretamente relacionada com o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF/88), sendo expressamente vedado qualquer tipo de discriminação e, portanto, de hierarquia entre eles. Assim, aceitar a concepção de multiparentalidade é entender que não é possível haver condições distintas entre o vínculo parental biológico e o afetivo. Isso porque criar status diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos, o que viola o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da do ECA, ambos com idêntico teor: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” 

Provimento nº 63/2017

 Por fim, anota-se que a Corregedoria Nacional de Justiça alinhada ao precedente vinculante do STF (Tema 622), editou o Provimento nº 63/2017, instituindo modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispondo sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e da maternidade socioafetivas, sem realizar nenhuma distinção de nomenclatura quanto à origem da paternidade ou da maternidade na certidão de nascimento - se biológica ou socioafetiva. 

Em suma: Na multiparentalidade deve ser reconhecida a equivalência de tratamento e de efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva. STJ. 4ª Turma. REsp 1.487.596-MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 28/09/2021 (Info 712). 

Veja como o tema já foi cobrado em prova: 

 (DPE/AP 2018 FCC) João, atualmente com onze anos de idade, é filho biológico de Rosana e Marcos, devidamente reconhecida a paternidade e constante em seu registro de nascimento. O genitor exerce direito de visitas e paga pensão alimentícia ao filho. Desde que João tinha um ano de idade, Rosana vive em união estável com Anderson, que trata a criança como seu próprio filho, havendo reciprocidade no tratamento. Anderson comparece à Defensoria Pública dizendo que gostaria de ser reconhecido como pai da criança, mas não gostaria de excluir a paternidade biológica, com o que concordam Rosana e João. Neste caso, o Defensor Público deverá (

A) ajuizar ação declaratória da paternidade socioafetiva de Anderson em relação a João, postulando o reconhecimento da multiparentalidade, com a preservação da paternidade biológica já reconhecida. 

(B) apenas orientar juridicamente as partes, explicando a inviabilidade da pretensão de Anderson tanto em via administrativa como judicial, por esbarrar em norma expressa no Código Civil que veda tal possibilidade. 

(C) encaminhar os interessados diretamente ao Cartório de Registro de Pessoas Naturais, a fim de reconhecer administrativamente a paternidade socioafetiva e, assim, acrescer o nome de Anderson como pai socioafetivo de João, sem excluir a paternidade biológica. 

(D) ajuizar ação de adoção unilateral proposta por Anderson, cumulada com destituição do poder familiar em relação ao genitor biológico, cumulando na inclusão do nome de Anderson como pai de João, sem a necessidade de excluir a paternidade biológica. 

(E) encaminhar as partes ao Cartório de Registro de Pessoas Naturais, a fim de solicitar a inclusão do sobrenome do padrasto no registro de nascimento do menor, conforme previsto na Lei de Registros Públicos. 

Gabarito: Letra A

8 de agosto de 2021

A divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o ato registral, dada a proteção conferida à paternidade socioafetiva

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/07/info-699-stj.pdf


PARENTESCO - A divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o ato registral, dada a proteção conferida à paternidade socioafetiva 

A anulação de ato registral, com base na divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento, apenas será possível se preenchidos os seguintes requisitos: 

a) Existência de prova robusta de que o pai foi induzido a erro ou coagido a efetuar o registro: o registro de nascimento tem valor absoluto, de modo que não se pode negar a paternidade, salvo se existentes provas de erro ou falsidade. 

b) Inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho registrado: para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o “pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho. 

A mera comprovação da inexistência de paternidade biológica através do exame do DNA não é suficiente para desconstituir a relação socioafetiva criada entre os indivíduos. A filiação deve ser entendida como elemento fundamental da identidade do ser humano, da própria dignidade humana. O nosso ordenamento jurídico acolheu a filiação socioafetiva como verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana. STJ. 3ª Turma. REsp 1.829.093-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 01/06/2021 (Info 699). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

Felipe nasceu em 01/01/2004, filho de Regina. Em 01/03/2004, ou seja, dois meses depois, João – na época namorado de Regina – registrou Felipe como sendo seu filho. Passaram-se alguns anos de convivência, inclusive com João tratando publicamente Felipe como filho. Todavia, com dúvidas acerca da paternidade, João fez, extrajudicialmente, um exame de DNA e constatou que Felipe não era seu filho biológico. De posse do exame, João ajuizou ação declaratória de inexistência de paternidade contra Felipe, cumulada com a desconstituição do registro. Durante a instrução processual não houve a produção de qualquer prova no sentido de que João teria sido induzido a erro ou coagido a registrar Felipe como seu filho. O juízo de 1º grau e o Tribunal de Justiça negaram o pedido do autor, que, então, interpôs recurso especial. 

O STJ concordou com o pedido de João? NÃO. 

Relações de filiação 

Atualmente, a doutrina e a jurisprudência admitem a existência de três diferentes vínculos de filiação: 

a) Civil ou registral: de acordo com o registro de nascimento; 

b) Biológico: baseado no vínculo genético; 

c) Socioafetivo: baseado na afetividade, na convivência, na criação de referencial entre pai e filho. 

É possível que tais vínculos existam isolada ou concomitantemente. Por exemplo, um indivíduo poderá ter, ao mesmo tempo, um pai biológico e um pai socioafetivo. Assim, em regra, para que haja o rompimento desta relação de filiação, é preciso que não exista qualquer um desses vínculos, seja cível, biológico ou socioafetivo. 

Se ficar constatado que o pai registral não é o pai biológico, isso acarretará, obrigatoriamente, a anulação do registro de nascimento? 

NÃO. Segundo a jurisprudência do STJ, a anulação do ato registral, com base na divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento, somente será possível se estiverem presentes dois requisitos cumulativos: 1) Prova robusta de que o pai foi induzido a erro ou coagido a efetuar o registro; e 2) Inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho registrado. 

1º requisito: vício de consentimento 

Para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, é necessária a comprovação do vício de consentimento. Não é possível ao juiz declarar a nulidade do registro de nascimento com base, exclusivamente, na alegação de dúvida acerca do vínculo biológico do pai com o registrado, sem provas robustas de que, no momento do registro, houve um erro escusável por parte do pai que fez o reconhecimento voluntário da paternidade. É o que se extrai do art. 1.604 do Código Civil: 

Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. 

O registro possui um “valor absoluto”. Logo, não é qualquer erro que justifica a desconstituição do registro. Para que fique caracterizado o vício de consentimento que autoriza a desconstituição do registro, o erro deve ser escusável. Se o erro decorreu de mera negligência de quem registrou, o registro não será anulado. Ademais, para que fique caracterizado o erro, é necessária a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar. Assim, no momento do registro, o pai registral deveria acreditar fielmente ser o verdadeiro pai biológico da criança. A existência de fundadas dúvidas sobre a paternidade da criança elimina a existência de erro escusável. No caso analisado, observa-se que João passou dois meses para registrar Felipe como seu filho. Tal fato corrobora o entendimento de que João já tinha dúvidas acerca da paternidade de Felipe, de modo que passou um tempo para refletir a respeito do registro. Ademais, não houve qualquer prova de que João tenha sido induzido em erro ou que tenha sido coagido. Desse modo, não restou preenchido o primeiro requisito para a anulação do ato registral, qual seja, a comprovação da existência de vício de consentimento. “Em processos relacionados ao direito de filiação, é necessário que o julgador aprecie as controvérsias com prudência, para que o Poder Judiciário não venha a prejudicar a criança pelo mero capricho de um adulto que, livremente, o reconheceu como filho em ato público, e posteriormente, por motivo vil pretende ‘livrar-se do peso da paternidade’.” (Min. Nancy Andrighi) Portanto, o mero arrependimento não pode aniquilar o vínculo de filiação estabelecido, e a presunção de veracidade e autenticidade do registro de nascimento não pode ceder diante da falta de provas insofismáveis do vício de consentimento para a desconstituição do reconhecimento voluntário da paternidade. 

2º Requisito: Inexistência de filiação socioafetiva 

Mesmo diante da ausência de filiação biológica, é possível manter a paternidade com base na filiação socioafetiva. O êxito da ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, de dois requisitos: a) inexistência da origem biológica; b) não ter sido construída uma relação socioafetiva entre pai e filho registrais. 

A filiação socioafetiva trata-se de um fenômeno social. Apesar de não ter previsão legal, é amplamente acolhida pela doutrina e jurisprudência, buscando-se reconhecer os vínculos de afetividade criados entre a figura do pai e a figura do filho. A instabilidade das relações conjugais não deve impactar nas relações de natureza filial. A mera comprovação da inexistência de paternidade biológica através do exame do DNA não é suficiente para desconstituir a relação socioafetiva criada entre os indivíduos. A filiação deve ser entendida como elemento fundamental da identidade do ser humano, da própria dignidade humana. O nosso ordenamento jurídico acolheu a filiação socioafetiva como verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana. Assim, para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o “pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho (STJ. 4ª Turma. REsp 1.059.214-RS, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012). Na situação apresentada, João passou anos tratando Felipe como filho publicamente, o que corrobora a existência de filiação socioafetiva. Ressalta-se que a paternidade socioafetiva não exige que o pai seja carinhoso ou que a relação não seja conflituosa, mas sim que o filho construa esse referencial paterno. 

Em suma: A proteção da filiação socioafetiva impede a anulação do ato registral pela mera inexistência de paternidade biológica. STJ. 3ª Turma. REsp 1.829.093-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 01/06/2021 (Info 699). 

DOD PLUS – INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES 

Comprovado o erro escusável no registro do filho não biológico, poderia ser deferida a anulação do registro, caso o pai registral tenha se afastado do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo? SIM. 

Se o marido ou companheiro descobre que foi induzido em erro no momento de registrar a criança e que não é pai biológico do seu filho registral, ele poderá contestar a paternidade, pedindo a retificação do registro (arts. 1.601 e 1.604 do CC). Não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Vale ressaltar, no entanto, que, para que o pai registral enganado consiga desconstituir a paternidade, é indispensável que tão logo ele tenha sabido da verdade (da traição), ele tenha se afastado do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo. Se o pai registral enganado, mesmo quando descobriu a verdade, ainda manteve vínculos afetivos com o filho registral, neste caso ele não mais poderá desconstituir a paternidade. STJ. 3ª Turma. REsp 1330404-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 5/2/2015 (Info 555). 

Neste outro julgado, defendeu o Min. Relator, “o estabelecimento da filiação socioafetiva perpassa, necessariamente, pela vontade e, mesmo, pela voluntariedade do apontado pai, ao despender afeto, de ser reconhecido como tal. É dizer: as manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação, se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte daquele que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe daquela criança.” Para o Min. Marco Aurélio Bellizze, “não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Como assinalado, a filiação socioafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos.” 

 



Irmãos unilaterais possuem legitimidade ativa e interesse processual para propor ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural com irmã pré-morta, ainda que a relação paterno-filial com o pai comum, também pré-morto, não tenha sido reconhecida em vida

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/07/info-699-stj.pdf


PARENTESCO - Irmãos unilaterais possuem legitimidade ativa e interesse processual para propor ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural com irmã pré-morta, ainda que a relação paterno-filial com o pai comum, também pré-morto, não tenha sido reconhecida em vida 

Exemplo hipotético: Pedro e Paulo são irmãos. Eles são filhos de João e Regina. João já faleceu há alguns anos. Determinado dia, Regina estava assistindo televisão com Pedro e Paulo e viu uma reportagem noticiando a morte de uma mulher chamada Laís. Regina, então, contou que Laís era filha de João, apesar de ele não a ter registrado. Desse modo, Regina afirmou que Pedro e Paulo seriam irmãos unilaterais de Laís. Vale ressaltar que Laís nunca ajuizou qualquer ação contra João pedindo o reconhecimento de sua condição de filha. Diante disso, Pedro e Paulo ajuizaram ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural em face de Laís (irmã pré-morta), a fim de que fosse declarada a relação de irmandade biológica entre eles e Laís. A ação foi proposta contra o espólio de Laís. STJ. 3ª Turma. REsp 1.892.941-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 01/06/2021 (Info 699). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

Pedro e Paulo são irmãos. Eles são filhos de João e Regina. João já faleceu há alguns anos. Determinado dia, Regina estava assistindo televisão com Pedro e Paulo e viu uma reportagem noticiando a morte de uma mulher chamada Laís. Regina, então, contou que Laís era filha de João, apesar de ele não a ter registrado. Desse modo, Regina afirmou que Pedro e Paulo seriam irmãos unilaterais de Laís. Vale ressaltar que Laís nunca ajuizou qualquer ação contra João pedindo o reconhecimento de sua condição de filha. 

O que fizeram, então, Pedro e Paulo? 

Ajuizaram uma ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural em face de Laís (irmã prémorta), a fim de que fosse declarada a relação de irmandade biológica entre eles e Laís. A ação foi proposta contra o espólio de Laís. 

O que o juiz decidiu? 

O magistrado indeferiu a petição inicial da ação de reconhecimento judicial de relação de parentesco, ao fundamento de que Pedro e Paulo, supostos irmãos unilaterais paternos de Laís, não seriam partes legítimas para pleitear o reconhecimento da existência de vínculo biológico entre eles e ela, uma vez que seria pressuposto lógico desse reconhecimento dizer antecedentemente se havia vínculo biológico paterno-filial entre a falecida Laís e o genitor deles João, o que não foi buscado em vida por Laís. O reconhecimento do vínculo biológico entre irmãos implicaria, por via oblíqua, em reconhecer que Laís seria filha de João. Ocorre que o reconhecimento do vínculo entre Laís e João somente poderia ocorrer por iniciativa de Laís, que já morreu. Logo, somente ela teria o direito personalíssimo de pleitear esse reconhecimento. O TJ manteve a sentença e os autores interpuseram recurso especial ao STJ. 

O que decidiu o STJ? Os autores são partes legítimas para essa ação? 

SIM. Os irmãos unilaterais possuem legitimidade ativa para propor ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural com irmã pré-morta, ainda que a relação paterno-filial com o pai comum, também prémorto, não tenha sido reconhecida em vida, pois a ação veicula alegado direito próprio, autônomo e personalíssimo em ver reconhecida a existência da relação jurídica familiar e, eventualmente, concorrer na sucessão da irmã falecida. O fato de o hipotético acolhimento da pretensão deduzida revelar a existência de outros vínculos biológicos não desvendados em vida por outros familiares não pode obstar o exercício de direito próprio e autônomo dos irmãos, que apenas seriam partes ilegítimas se pretendessem o reconhecimento, em caráter principal, do suposto vínculo biológico entre a falecida irmã e o pai comum. 

Os autores possuem interesse processual? SIM. Os autores necessitam da prestação jurisdicional para ver reconhecida a existência da relação jurídica de parentesco, valendo-se da via adequada - a ação declaratória - para tal finalidade. Assim, a pretensão de natureza declaratória deduzida pelos autores encontra fundamento no art. 19, I, do CPC/2015: 

Art. 19. O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I - da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica; (...) 

Não são necessárias quaisquer outras postulações ou finalidades que com ela se quisesse atingir, pois os autores possuem o direito autônomo de investigar os seus próprios vínculos familiares, a sua origem genética e a sua própria história. Para além disso, sublinhe-se que a necessidade do reconhecimento da existência da relação jurídica de irmandade também decorre de propósito específico, qual seja, concorrer, se porventura acolhido o pedido, na sucessão da suposta irmã falecida. 

O pedido dos autores é juridicamente impossível? 

NÃO. A impossibilidade jurídica do pedido, que era considerada condição da ação no CPC/1973, passou a ser considerada uma questão de mérito a partir da entrada em vigor do CPC/2015, como se depreende da exposição de motivos do novo Código, da doutrina majoritária e da jurisprudência do STJ. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação expressa ou implícita à pretensão de direito autônomo à declaração de existência de relação de parentesco natural entre pessoas supostamente pertencentes à mesma família, calcada nos direitos personalíssimos de investigar a origem genética e biológica e a ancestralidade (corolários da dignidade da pessoa humana) e do qual pode eventualmente decorrer direito de natureza sucessória, não se aplicando à hipótese a regra do art. 1.614 do CC/2002: 

Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação. 

Em suma 

Irmãos unilaterais possuem legitimidade ativa e interesse processual para propor ação declaratória de reconhecimento de parentesco natural com irmã pré-morta, ainda que a relação paterno-filial com o pai comum, também pré-morto, não tenha sido reconhecida em vida. STJ. 3ª Turma. REsp 1.892.941-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 01/06/2021 (Info 699).