Fonte: Dizer o Direito
Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/10/info-703-stj-1.pdf
PATENTE
A ANVISA, no exercício do “ato de anuência prévia” do art. 229-C da Lei 9.279/96, podia
adentrar no exame de quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos
Em se tratando de pedido de patente de fármacos, competia à Anvisa analisar - previamente à
análise do INPI - quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que
extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação
industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga de direito de exclusividade (de produção,
uso, comercialização, importação ou licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à
saúde pública.
Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da
prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. (Incluído pela Lei nº
10.196/2001) (Posteriormente revogado pela Lei nº 14.195/2021)
STJ. 4ª Turma. REsp 1.543.826-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 05/08/2021 (Info 703).
INPI
O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da
Economia, sendo responsável, no Brasil, pela concessão e garantia dos direitos de propriedade intelectual
para a indústria.
Patente
Patente é um título de propriedade temporária concedido pelo INPI para a pessoa que inventou um novo
produto, um novo processo ou para quem fez aperfeiçoamentos destinados à aplicação industrial.
A patente, concedida ao autor de uma invenção ou de um modelo de utilidade, é o direito de, durante
determinado tempo, só ele explorar economicamente essa invenção ou modelo de utilidade. Veja o que
diz o art. 6º Lei nº 9.279/96:
Art. 6º Ao autor de invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente
que lhe garanta a propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.
Existe, no Brasil, patente de produtos ou processos farmacêuticos?
Para responder isso, é importante fazermos um breve histórico:
• a concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos era proibida no Brasil, por força do art.
9º, letra “c”, da Lei nº 5.772/71 (antigo Código da Propriedade Industrial);
• no final dos anos 1980, em virtude da não patenteabilidade de produtos e processos farmacêuticos — o
que contrariava os interesses de muitos laboratórios internacionais —, o País passou a sofrer sanções
comerciais unilaterais, na forma de sobretaxa de 100% sobre a importação de produtos brasileiros dos
setores farmacêutico, eletroeletrônico e de papel e celulose. O impasse entre Brasil e Estados Unidos
gerou a abertura de processo de solução de controvérsia no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio
(GATT), sistema econômico multilateral de normas e concessões tarifárias criado em 1947, cujas regras e
princípios foram incorporados pela Organização Mundial de Comércio (OMC), fundada em 1995;
• a superação dessa controvérsia começou a se resolver em 1994, quando o Estado brasileiro assinou o
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (o chamado
Acordo TRIPS);
• o Decreto nº 1.355/94 incorporou no Brasil o Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio);
• O que foi o Acordo TRIPS? Em inglês: “Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property
Rights”. Em português: Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio. Foi um tratado Internacional, integrante do conjunto de acordos assinados por diversos países,
em 1994, que encerrou a “Rodada Uruguai” e criou a Organização Mundial do Comércio (OMC). O Acordo
TRIP estabeleceu, em seu artigo 27.1, a proibição de se discriminarem áreas tecnológicas para fins de
patente. Isso obrigou os Estados-membros a considerar patenteável qualquer invenção, de produto ou
processo, em todos os setores tecnológicos, sem restrições.
• O Brasil precisou se adaptar ao artigo 27.1 do Acordo TRIPS. Em razão desse compromisso assumido no
plano internacional, o Brasil precisou adaptar sua legislação para permitir a patente de produtos ou
processos nas áreas agroquímica e farmacêutica. Isso porque, como já mencionado, a Lei brasileira proibia
essa patente.
• em 1996, foi editada a Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), que revogou a Lei nº 5.772/71 e
incorporou as disposições protetivas dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio
previstas no Acordo TRIPS, passando, a partir de então, a se admitir, no Brasil, a patente de produtos e
processos farmacêuticos.
• em 1999, o Presidente da República editou a Medida Provisória 2.006, de 14 de dezembro de 1999 —
convertida, posteriormente, na Lei nº 10.196/2001 —, que introduziu o art. 229-C na Lei de Propriedade
Industrial, condicionando a concessão de patentes de fármacos à anuência prévia da ANVISA;
• em 2021, após o julgado do STJ que está sendo aqui comentado, a Lei nº 14.195/2021 revogou o art.
229-C da Lei nº 9.279/96.
Como era a concessão de patente de produtos e processos farmacêuticos com base no art. 229-C da Lei
nº 9.279/96?
O art. 229-C da Lei nº 9.279/96 dizia que a concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos
dependia da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Assim, a indústria farmacêutica pedia o registro do produto ou processo farmacêutico no INPI.
Em seguida, o INPI emitia parecer técnico sobre o pedido de patente.
Se este fosse favorável, ainda se tinha que aguardar a manifestação da ANVISA, que era exigida com base
no art. 229-C da Lei nº 9.279/96, que dizia o seguinte:
Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da
prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA.
(Incluído pela Lei nº 10.196/2001)
(Posteriormente revogado pela Lei nº 14.195/2021)
Existia uma gigantesca discussão jurídica sobre a abrangência desse art. 229-C. Qual era o grau de
análise da ANVISA a respeito do pedido? A agência tinha uma atuação restrita avaliando apenas
eventuais riscos do produto à saúde humana ou fazia uma análise ampla, que incluía outros aspectos?
O exame feito pela ANVISA era amplo. Conforme decidiu o STJ:
Em se tratando de pedido de patente de fármacos, compete à Anvisa analisar - previamente à análise
do INPI - quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos
requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam
inferir se a outorga de direito de exclusividade (de produção, uso, comercialização, importação ou
licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à saúde pública.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.543.826-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 05/08/2021 (Info 703).
A ANVISA, mesmo sendo uma agência detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, quando
fazia a análise para esse “ato de anuência prévia” do art. 229-C da Lei nº 9.279/96, podia adentrar no exame
de quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos, ainda que relacionados com a análise dos
requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial). Isso porque essa análise
era fundamental para a ANVISA examinar se a outorga do direito de exclusividade representaria potencial
prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população.
A atuação da ANVISA neste caso tinha, portanto, uma função redistributiva, na qual se procurava conciliar
o interesse privado (relacionado com o direito de exclusividade da exploração lucrativa da invenção) com
as metas e os objetivos de interesses públicos relacionados com as políticas de saúde.
O mister institucional da ANVISA no processo de concessão de patentes farmacêuticas não se confunde
com o controle sanitário de medicamentos, drogas e insumos farmacêuticos, realizado no âmbito do
procedimento de registro.
Interpretação baseada na conjugação das Leis 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), 9.782/99 (Lei da
ANVISA) e 10.742/2003 (Lei do setor farmacêutico)
O art. 18, I, da Lei nº 9.279/96 afirma que não pode ser patenteado aquilo que for contrário à saúde
pública.
A expressão “saúde pública” tem significado mais amplo que “saúde individual”. Não se resume a
tratamento ou a recuperação de doença, mas sim compreende o conjunto de medidas preventivas e de
controle de enfermidades destinadas a garantir o bem-estar físico, mental e social de todos e de cada um
dos membros da coletividade, o que inclui ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica
e a formulação de política de medicamentos.
O art. 6º da Lei nº 9.782/99 prevê que a finalidade institucional da ANVISA é a de promover a proteção da
saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das
tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.
O art. 7º também da Lei nº 9.782/99 afirma que compete à ANVISA a correção de falhas de mercado do
setor de fármacos, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos, podendo a
agência reguladora, para tanto, requisitar informações, proceder ao exame de estoques ou convocar os
responsáveis para explicarem conduta indicativa de infração à ordem econômica, tais como a imposição
de preços excessivos ou aumentos injustificados (inciso XXV).
A Lei nº 10.742/2003, por sua vez, estabelece normas de regulação do setor farmacêutico, com a
finalidade de promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem
a oferta de medicamentos e a competitividade do setor.
ANVISA fazia a regulação econômico-social do setor de medicamentos
Nessa perspectiva, a estipulação da “anuência prévia” da autarquia especial, como condição para a
concessão da patente farmacêutica, tem por base o seu papel de regulação econômico-social - ou
socioeconômica - do setor de medicamentos, que se justifica pelos mandamentos extraídos da Carta
Magna, no sentido da necessária harmonização do direito à propriedade industrial com os princípios da
função social, da livre concorrência e da defesa do consumidor, assim como o interesse social encartado
no dever do Estado de, observada a cláusula de reserva do possível, conferir concretude ao direito social
fundamental à saúde (arts. 5º, incisos XXIII, XXIX, 6º, 170, incisos III, IV e V, e 196).
O parecer negativo da ANVISA era meramente opinativo ou tinha caráter vinculativo?
Tinha caráter vinculativo.
À luz da norma legal analisada (art. 229-C da Lei nº 9.279/96), a exigência de anuência prévia da ANVISA
constituía pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico. Logo,
o parecer negativo da ANVISA, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde
pública, não deveria ser considerado como um simples “subsídio” à tomada de decisão do INPI. Essa recusa
da ANVISA tinha caráter vinculativo.
Nas palavras do Min. Luis Felipe Salomão:
“Desse modo, reconhecendo-se a anuência prévia da Anvisa como pressuposto de validade da
concessão de patente de produto ou processo farmacêutico, é certo que o respectivo parecer
negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, não pode
ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa
de anuência é, portanto, indubitável.”