RECURSO ESPECIAL Nº 1.878.043 - SP (2019/0384274-4)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE GUARDA. ANTERIOR SENTENÇA
TRANSITADA EM JULGADO QUE JULGOU PROCEDENTE PEDIDO DE
AFASTAMENTO DO CONVÍVIO FAMILIAR. AUSÊNCIA DE INTERESSE
PROCESSUAL DIANTE DA COISA JULGADA ANTERIORMENTE FORMADA.
INOCORRÊNCIA. PRETENSÕES DE GUARDA E DE AFASTAMENTO
AMBIVALENTES, IRRELEVANTE O NOMEN IURIS PARA DEFINIÇÃO DA
NATUREZA DA TUTELA JURISDICIONAL PLEITEADA. COISA JULGADA NAS
AÇÕES QUE VERSAM SOBRE GUARDA QUE SE FORMA DE ACORDO COM A
MOLDURA FÁTICO-TEMPORAL EXISTENTE AO TEMPO DE SUA PROLAÇÃO.
SUPERVENIENTE AÇÃO DE GUARDA AJUIZADA APÓS LAPSO TEMPORAL
CONSIDERÁVEL E QUE SE FUNDA EM DISTINTAS CAUSAS DE PEDIR E EM
MODIFICAÇÕES DO QUADRANTE FÁTICO. INOPONIBILIDADE DA COISA
JULGADA. FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO
DE AFASTAMENTO DE CONVÍVIO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA COM ORIGEM EM ADOÇÃO
À BRASILEIRA. REDISCUSSÃO DA QUESTÃO NA AÇÃO DE GUARDA.
POSSIBILIDADE. MOTIVOS QUE NÃO FAZEM COISA JULGADA. NECESSIDADE
DE ADEQUAÇÃO, SEMPRE CONCRETA E CASUÍSTICA, DA REALIDADE SOCIAL
E DA REALIDADE LEGAL. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DO MELHOR
INTERESSE DO MENOR E DA PROTEÇÃO INTEGRAL E PRIORITÁRIA DA
CRIANÇA. IMPRESCINDIBILIDADE DA OITIVA E PARTICIPAÇÃO DE TODOS OS
ENVOLVIDOS. IMPRESCINDIBILIDADE DOS ESTUDOS PSICOSSOCIAIS E
INTERDISCIPLINARES, INCLUSIVE NAS HIPÓTESES DE ADOÇÃO À BRASILEIRA,
DE MODO A PROMOVER A CONCRETIZAÇÃO DOS REFERIDOS PRINCÍPIOS.
1- Ação proposta em 27/04/2018. Recurso especial interposto em
20/05/2019 e atribuído à Relatora em 20/04/2020.
2- O propósito recursal consiste em definir se, transitada em julgado
sentença de procedência em ação de afastamento de convívio familiar para
determinar o acolhimento institucional de menor, há interesse processual
para o superveniente ajuizamento de ação de guarda por quem pretende
reavê-la.
3- As ações de guarda e de afastamento do convívio familiar veiculam
pretensões ambivalentes, pois, na primeira, pretende-se exercer o direito de
proteção da pessoa dos filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou a
proteção de quem, em situação de risco, demande cuidados especiais
(guarda sob a ótica assistencial), ao passo que, na segunda, pretende o
legitimado a cessação ou a modificação da guarda em razão de estar a
pessoa que deve ser preservada em uma situação de risco.
4- Da irrelevância do nomen iuris dado às ações que envolvam a guarda do
menor para fins da tutela jurisdicional pretendida se conclui que, por suas
características peculiares, a guarda é indiscutivelmente modificável a
qualquer tempo, bastando que exista a alteração das circunstâncias fáticas
que justificaram a sua concessão, ou não, no passado.
5- Transitada em julgado a sentença de procedência do pedido de
afastamento do convívio familiar de que resultou o acolhimento institucional
da menor, quem exercia irregularmente a guarda e pretende adotá-la
possui interesse jurídico para, após considerável lapso temporal, ajuizar
ação de guarda cuja causa de pedir seja a modificação das circunstâncias
fáticas que ensejaram o acolhimento, não lhe sendo oponível a coisa julgada
que se formou na ação de afastamento.
6- A fundamentação adotada pela sentença que julgou procedente o pedido
de afastamento do convívio familiar, no sentido de que seria juridicamente
impossível o reconhecimento da filiação socioafetiva que tenha em sua
origem uma adoção à brasileira, não impede o exame da questão na
superveniente ação de guarda, pois os motivos que conduziram à
procedência do pedido anterior, por mais relevantes que sejam, não fazem
coisa julgada, a teor do art. 504, I, do CPC/15.
7- A jurisprudência desta Corte, diante de uma ineludível realidade social,
mas sem compactuar com a vulneração da lei, do cadastro de adotantes e
da ordem cronológica, consolidou-se no sentido de que, nas ações que
envolvem a filiação e a situação de menores, é imprescindível que haja o
profundo, pormenorizado e casuístico exame de cada situação
concretamente considerada, a fim de que, com foco naquele que deve ser o
centro de todas as atenções – a criança – decida-se de acordo com os
princípios do melhor interesse do menor e da proteção integral e prioritária
da criança, sendo imprescindível, nesse contexto, que haja a oitiva e a
efetiva participação de todos os envolvidos e a realização dos estudos
psicossociais e interdisciplinares pertinentes, inclusive nas hipóteses de
adoção à brasileira.
8- Recurso especial conhecido e provido, com determinações.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso especial e
dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo
de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro
votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 08 de setembro de 2020(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por R V DA R e M DA G V DA
C, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do
TJ/SP que, por unanimidade, negou provimento ao recurso de apelação por eles
interposto.
Recurso especial interposto e m: 20/05/2019.
Atribuído ao gabinete e m: 20/04/2020.
Ação: de guarda ajuizada pelos recorrentes, por meio da qual
pretendem reaver a guarda fática irregularmente exercida sobre a menor B M R.
Sentença: indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem
resolução de mérito por litispendência (arts. 337, §3º e 485, V, ambos do CPC/15),
ao fundamento de que a ação de guarda repetiria todos os fundamentos e
questões que já haviam sido objeto de decisão de mérito em anterior ação de
afastamento de convívio familiar ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo em face dos recorrentes (fls. 409/410, e-STJ).
Acórdão: por unanimidade, afastou a ocorrência de litispendência,
mas negou provimento ao recurso de apelação interposto pelos recorrentes por
fundamentação distinta, nos termos da seguinte ementa:
APELAÇÃO – Pedido de guarda – Sentença que julgou extinto o
processo, sem julgamento de mérito, porque caracterizada a litispendência nos
termos do art. 485, V, c.c. art. 337, § 3º, do CPC, com outra ação de acolhimento
institucional – Alegado o desacerto do julgado, porque, entre outras questões,
se afirma ausente hipótese de litispendência – Inexistência de litspendência,
porquanto não coincidentes as ações – Extinção, todavia, do feito
motivada na falta de interesse processual – Autores que buscam
rediscutir questão de guarda já definida na ação para a aplicação de
medida protetiva – Ausente interesse e utilidade do provimento
judicial buscado – Hipótese que se amolda aos termos do art. 330, II, do CPC – Extinção do feito, sem resolução do mérito legitimado no art. 485, I e VI, do CPC
Sentença mantida – Apelação não provida. (fls. 527/534, e-STJ).
Recurso especial: alega-se violação aos arts. 100, parágrafo único, I,
II e XII, e 101, §4º e §5º, ambos do ECA (Lei 8.069/90), ao fundamento de que a
ação de guarda não pretende rediscutir as mesmas questões anteriormente
debatidas na ação de afastamento de convívio familiar, especialmente porque a
pretensão de guarda está fundada em modificação de situação fática do menor e
dos recorrentes cuja prova somente poderia ser produzida por intermédio de
estudo psicossocial que fora negado na hipótese (fls. 540/561, e-STJ).
Ministério Público Federal: opinou pelo não conhecimento do
recurso especial (fls. 653/659, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
O propósito recursal consiste em definir se, transitada em julgado
sentença de procedência em ação de afastamento de convívio familiar para
determinar o acolhimento institucional de menor, há interesse processual para o
superveniente ajuizamento de ação de guarda por quem pretende reavê-la.
DA POSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DA GUARDA DIANTE DA
ANTERIOR TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO
DE AFASTAMENTO DE CONVÍVIO FAMILIAR. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS
ARTS. 100, PARÁGRAFO ÚNICO, I, II E XII, E 101, §4º E 5º, AMBOS DO
ECA.
01) Para melhor contextualização da controvérsia, destaque-se que os
recorrentes ajuizaram a ação de guarda da qual se extrai o presente recurso
especial em 27/04/2018, pretendendo reaver a guarda que exerciam
irregularmente sobre a menor B M R no período compreendido entre 2014 e 2016,
quando, deferindo tutela antecipatória formulada pelo Ministério Público do
Estado de São Paulo em ação de afastamento de convívio familiar, foi a menor acolhida institucionalmente, situação que perdura até a presente data.
02) A ação de afastamento de convívio familiar foi julgada procedente
por sentença posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal de Justiça de
São Paulo, sendo que o recurso especial interposto pelos recorrentes, inadmitido
na origem e objeto de agravo, não foi conhecido por meio de decisão unipessoal
que transitou em julgado em 30/08/2018 (AREsp 1.279.731/SP).
03) O fundamento adotado pelas instâncias ordinárias para, em
definitivo, confirmar o acolhimento da menor B M R foi, essencialmente, a
ilegalidade das condutas dos recorrentes (afirmação falsa sobre infertilidade do
recorrente R V DA R e falsidade do registro civil por ele realizado, fraude ao
cadastro de adotantes e à ordem cronológica de inscrição).
04) Colhem-se da sentença os seguintes excertos que, em
carregadíssimas tintas, sintetizam a única razão de decidir:
Seguramente, o legislador teve por escopo por termo a
esse abominável e despudorado escambo de crianças ou, no mínimo,
ao indevido e inadequado acertamento direto entre interessados e
genitores, e, de outro lado, afirmar a imperiosa necessidade de se prestigiar o
cadastro de adotantes, em especial a ordem cronológica de inscrição, coibindo
as fraudes.
(...)
De outra banda, pesem aos judiciosos entendimentos contrários,
este Juízo sustenta que a integração em família substituta, em especial
na forma de adoção, é ato típico e exclusivo do órgão jurisdicional, porque, notada e destacadamente, o ECA, especialmente com as modificações
trazidas pela Lei n. 12.010/09, atribuiu ao Juiz toda a responsabilidade
pela asseguração da medida, estabelecendo, para tanto, o cadastro
de adotantes, criado para moralizar e organizar a chamada de
interessados.Fê-lo o legislador, decerto, pensando que a autoridade judiciária,
por sua imparcialidade, idoneidade e seriedade, seguirá fielmente o
texto legal e, nesse passo, prestigiará o cadastro e sua ordem
cronológica, de modo a garantir que somente pessoas previamente avaliadas e
aprovadas possam, na oportunidade devida, adotar.
(...)
O legislador, em boa hora, pôs cobro a essa vetusta e incômoda situação, moralizando ainda que tardiamente, depois de
vinte anos de vigência do ECA a integração em família substituta, via
adoção.
E, como cediço, dura lex sed lex, incumbindo ao Poder Judiciário,
que não pode tornar morta a letra da lei, o fiel cumprimento das
disposições legais, pena de se jogar por terra todo o esforço
moralizador do legislador, se se continuar permitindo as denominadas
“adoções prontas” com feição de intuitu personae, àqueles que burlam o
cadastro ou sua ordem cronológica.
(...)
Fazendo um breve parêntese, por relevante, depreende-se que
esses corréus tinham plena ciência dos pressupostos e requisitos para a adoção,
entretanto fizeram ouvidos moucos e acolheram ilegalmente a
criança em tela. Como corolário, não se sabe, nessa contemporaneidade,
se ainda reúnem as necessárias condições psicossociais e a
inafastável idoneidade para a realização de adoção futura, conforme rezam o
art. 29, a contrario sensu, c.c. art. 50, § 2º, ambos do ECA.
(...)
E no caso em concreto merece destacar que a genitora,
ao contestar a pretensão deixa claro o ardil perpetrado, além de
confirmar com todas as letras que entregou a filha, ainda
recém-nascida, ao corréu R e de afirmar textualmente que R e M da G
devem permanecer com a guarda da criança em comento, cumprindo
anotar que sequer esboçou um átimo de vontade de reassumir a
guarda da filha (fls. 458/463).
A propósito dessa concordância da genitora, não é
demais lembrar que sua validade depende, de lege lata, de ouvida
judicial precedida de orientação psicossocial, ex vi do disposto no art.
166, §§ 1º/4º, do ECA.
Contudo, no presente caso, não quadra colher o
consentimento da genitora na forma supramencionada, tendo em
vista a irrefutável ilegalidade da adoção, de sorte que, a esta altura,
sua anuência não merece perfunctória credibilidade. (...)
Sob outro enfoque, dada a premissa de ilegalidade,
como corolário lógico, indevida a permanência da criança em
comento com os corréus M da G e R, quer por não preencherem os
pressupostos próprios para a adoção, quer, por força disso, a
irregular condição da criança, que remanescerá desassistida, ao
menos sob o prisma legal, quer mais e principalmente, por ser
absolutamente prejudicial à sua formação e ao seu desenvolvimento
permanecer irregularmente com quem não pode lhe propiciar a
necessária segurança jurídica, em face da impossibilidade de se
regularizar tal situação, diante da assentada má-fé e da ilegalidade
perpetrada, e também, repisando, por expressa vedação legal.
(...)
Lado outro, não há de se excogitar de paternidade socioafetiva, porquanto seu reconhecimento pressupõe,
necessariamente, a legalidade e a boa fé na origem da relação
paternal-filial, a permitir com o transcorrer do tempo a formação dos
vínculos afetivos e de afinidade, não sendo demais acrescer que não
se constitui regra nem tampouco garantia ou certeza. No caso em questão, o pretendido reconhecimento
dessa modalidade de paternidade encontra óbice no limiar da
relação, dada a premissa de ilegalidade, ante a falsa assunção da
paternidade, o conluio entre os réus para burlar o cadastro de
adotantes e sua ordem cronológica e a impossibilidade jurídica de se
concretizar a adoção proposta por Maria da Guia, como suso
examinado.
Inadmissível e imoral transmudar atos ilegais em lícitos,
por via reflexa, como pretendido.
Nesse prisma, convicto das ilegalidades perpetradas
pelos réus, da burla ao cadastro de adotantes e violação de sua
ordem cronológica e da impossibilidade de concretização da adoção
unilateral pretendida pela corré M da G, afigura-se, no nosso sentir,
inexorável situação de risco em que estava inserida a criança em
comento lamentavelmente, objeto de ilicitudes praticadas por quem
deveria protegê-la e preservar sua integridade psíquica,
considerando as condutas ilícitas e temerárias dos réus. Os tempos são outros. Com as informações correndo na
velocidade da luz, tem-se como reprováveis, para se dizer o mínimo,
as condutas ilegais e nocivas perpetradas pelos réus, que,
indubitavelmente, agiram conscientes das ilicitudes praticadas
rememorando, passaram, neste Juízo, pelo Curso de Preparação Jurídica e
Psicossocial para pretendentes à adoção e empregaram meio ardiloso que
vem se tornando prática repetitiva para burlar a ordem cronológica
do cadastro de adotantes e obter a adoção. Não podem nem devem beneficiar-se da própria
torpeza. Bem por isso, concessa venia, há de se modificar o
entendimento de que, na proteção da criança, as ilegalidades devem
ser relevadas, pena de perpetuação do ilícito no consciente coletivo
das pessoas que pretendem adotar. O Brasil não pode ser mais o País do “jeitinho”, como
acreditam e querem alguns. A ordem jurídica deve se sobrepor aos
interesses escusos e ilegais.
05) No mesmo sentido caminhou o acórdão proferido na ação de
afastamento de convívio familiar, acrescentando ainda, mais especificamente
quanto à impossibilidade de reconhecimento da relação socioafetiva entre os
recorrentes e a menor:
Tampouco socorre a defesa alusão a caracterização de suposta
família socioafetiva, pois além de decorrer tal entidade de construção
doutrinária e mesmo de alguns poucos entendimentos
jurisprudenciais, o fato é que tal família não tem previsão legal,
muito menos eventual modalidade de adoção, nos moldes pretendidos,
conta com previsão no estatuto menorista.
06) É importante destacar que, na referida ação, somente houve a
produção de prova pericial de investigação de vínculo genético em relação ao
recorrente R V DA R, não tendo havido, contudo, a produção de nenhuma
prova que melhor elucidasse as circunstâncias em que se deu a entrega
da criança e a tentativa de adoção à brasileira, a existência de vínculos
entre a menor e os pretensos adotantes e a verdadeira aptidão do casal
para o exercício da guarda do menor.
07) De outro lado, é igualmente relevante destacar que a situação da
menor B M R foi examinada nesta Corte no estrito âmbito do habeas corpus. Com
efeito, por ocasião do julgamento do HC 409.623/SP, esta 3ª Turma, em acórdão
unânime publicado no DJe de 02/03/2018, ressaltou, como razões de decidir:
Anote-se que a sentença foi mantida pelo TJ/SP essencialmente
pelos mesmos fundamentos, conforme se verifica no acórdão de fls. 146/152
(e-STJ), sendo que o recurso especial interposto pelos impetrantes (fls. 190/200,
e-STJ) ainda não foi sequer distribuído perante esta Corte, não se podendo
olvidar, ademais, que os fatos descritos no acórdão do TJ/SP são
demasiadamente graves, sobretudo no que diz respeito a existência de
provável fraude no registro de nascimento da menor e no aparente
conluio engendrado pelos envolvidos acerca do destino da menor. De outro lado, verifica-se que ainda se encontra em
tramitação a ação de destituição de poder familiar cumulada com
adoção ajuizada pelos impetrantes em face da genitora biológica (fls.
223/233, e-STJ). A despeito de não se ter ciência detalhada acerca do
andamento atualizado da referida demanda, especialmente no que diz respeito
aos argumentos de defesa deduzidos pela genitora, fato é que a existência
de litígio acerca da destituição do poder familiar, adoção, guarda e
afastamento do convívio familiar, não é recomendável que se promova, por ora, absolutamente nenhuma alteração da guarda da
menor.
Isso porque não pode a menor, enquanto tramitam as
ações judiciais que lhe envolvem e não há juízo definitivo e de certeza
em relação ao seu destino, ser sucessivamente encaminhada do
abrigo à residência de sua genitora biológica, da residência de sua
genitora biológica à residência do casal de pretensos adotantes e,
então, novamente retornar ao abrigo, o que, se porventura
ocorresse, certamente causaria danos irreparáveis à sua formação
humana, ética e social diante da impossibilidade de construção e de
consolidação dos laços essenciais ao infante de tenra idade. É preciso, aliás, que se decidam conjuntamente as
questões em debate – a destituição do poder familiar, a adoção, a
guarda e o afastamento do convívio familiar – inclusive para evitar a
prolação de decisões conflitantes acerca da mesma questão. Ademais, acerca do alegado vínculo socioafetivo entre
os impetrantes e a menor, assim se pronunciou a sentença:
Lado outro, não há de se excogitar de paternidade socioafetiva,
porquanto seu reconhecimento pressupõe, necessariamente, a legalidade e a
boa fé na origem da relação paternal-filial, a permitir com o transcorrer do
tempo a formação dos vínculos afetivos e de afinidade, não sendo demais
acrescer que não se constitui regra nem tampouco garantia ou certeza. No
caso em questão, o pretendido reconhecimento dessa modalidade de
paternidade encontra óbice no limiar da relação, dada a premissa de
ilegalidade, ante a falsa assunção da paternidade, o conluio entre os réus para
burlar o cadastro de adotantes e sua ordem cronológica e a impossibilidade
jurídica de se concretizar a adoção proposta por M, como suso examinado.
Inadmissível e imoral transmudar atos ilegais em lícitos, por via reflexa, como
pretendido (fls. 89/90, e-STJ).
Embora se possa examinar, oportunamente, se a
solução dada até o momento acerca deste tema é adequada e
efetivamente atende ao melhor interesse do menor, fato é que a
retomada do convívio entre a menor e os impetrantes, nesse
contexto e quando ainda pendente de admissibilidade, nesta Corte, o recurso
especial por eles interposto, seria medida extremamente temerária e
desprovida da indispensável cautela.
Isso porque a convivência da menor com os impetrantes
pelo período de Junho/2014 a Junho/2016, a despeito de, em tese,
poder ser suficiente para a construção de vínculos aptos a configurar
uma relação de cunho socioafetivo, foi efetivamente interrompida
após a busca, apreensão e acolhimento institucional da menor – que,
destaque-se, perdura por aproximadamente 20 (vinte) meses. Assim, havendo ampla litigiosidade sobre a vida, a
família e o destino desta criança, não há mais nenhum espaço para
súbitas mudanças. Apenas a segurança proporcionada por um juízo
de certeza permitirá que o desenvolvimento do menor ocorra, assim que possível, de forma plena, completa e feliz, motivo pelo qual a
manutenção do status quo ante é a medida que melhor atende aos
interesses da menor.
08) Essa inicial e longa contextualização da controvérsia é, todavia,
necessária para solver a questão em debate, sobretudo porque, examinando-se a
petição inicial da ação de guarda (que, aliás, foi ajuizada pelos recorrentes menos
de 02 meses após o julgamento do referido habeas corpus), constata-se
que as causas de pedir são, justamente, modificações de circunstâncias fáticas,
quais sejam, a proximidade da menor com os 04 anos (idade que, segundo se alega,
tornaria inviável ou muito difícil a adoção por terceiros) e o não rompimento dos
vínculos de socioafetividade entre a menor B M R e os recorrentes, a despeito do
longo período de albergamento ao tempo da propositura da ação – 02 anos, cuja
constatação somente seria possível mediante a produção de prova pericial que foi
expressamente requerida pelos recorrentes.
09) Não obstante, foi proferida sentença de extinção da ação de
guarda sem resolução de mérito e in initio litis, ao equivocado fundamento de que
haveria litispendência entre a ação de guarda e a ação de afastamento de
convívio familiar.
10) Por oportuno, anote-se que alegada litispendência era, por óbvio,
inexistente, quer seja porque, quando proferida a sentença na ação de guarda, já
havia trânsito em julgado da ação de afastamento, quer seja ainda porque a ação
de guarda possuía causas de pedir distintas e não pretendia, como se
depreende da simples leitura da petição inicial, apenas rediscutir os fundamentos
fáticos e jurídicos da sentença proferida na ação de afastamento.
11) O acórdão recorrido, por sua vez, embora tenha acertadamente
afastado a ocorrência de litispendência, manteve a sentença por fundamentação distinta, entendendo que, na hipótese, careceriam os recorrentes de
interesse processual, na modalidade utilidade, para rediscutir as mesmas
questões que já haviam sido objeto de decisão na ação de afastamento. Embora
não se tenha usado exatamente esse termo, percebe-se, da ratio
decidendi, que o acórdão recorrido, na realidade, opôs a coisa julgada
que se formou na ação de afastamento aos recorrentes.
12) Ocorre que, respeitada a convicção expendida no acórdão
recorrido, não há que se falar em ausência de interesse processual,
tampouco em pré-existência de coisa julgada oponível aos recorrentes
na hipótese.
13) Com efeito, sublinhe-se, desde logo, que as ações de guarda e de
afastamento do convívio familiar veiculam pretensões ambivalentes, na medida
em que, na primeira, pretende-se exercer o direito de proteção da pessoa dos
filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou a proteção de quem, em situação de
risco, demande cuidados especiais (guarda sob a ótica assistencial), ao passo que,
na segunda, pretende o legitimado a cessação ou modificação da guarda em razão
de estar a pessoa que deve ser preservada em uma situação de risco.
14) Nesse contexto, sendo certo que o nomen iuris dado às ações que
envolvam a guarda é irrelevante, não se pode olvidar que a guarda, por suas
características peculiares, é indiscutivelmente modificável a qualquer tempo,
bastando que exista a alteração das circunstâncias fáticas que justificaram a sua
concessão, ou não, no passado.
15) De fato, conquanto se verifique, em um determinado momento
histórico, que certas pessoas possuíam a aptidão para o regular e adequado
exercício da guarda de um menor, é absolutamente factível que, em outro e futuro
momento histórico, não mais subsistam as razões que sustentaram a conclusão de outrora. A alternância e a volatividade, embora indesejáveis no âmbito da guarda
que se pauta na constância e na segurança, são ínsitas à natureza humana e social,
podendo ser causadas, inclusive, por circunstâncias fáticas alheias à vontade de
quem a exercia.
16) É por esse motivo que, em comezinha lição, a coisa julgada
material, em determinadas hipóteses (como na ação de guarda, nos termos do art.
35 do ECA) sequer se forma ou, ao menos, fica sujeita à moldura fática que lhe
serviu de base e à estritas limitações de natureza temporal. Acerca dessas
posições, sublinhem-se as lições de Flávio Tartuce e Rennan Thamay, respectivamente:
Por fim, sem qualquer alteração, determina o art. 35 da Lei
8.069/1990 que a guarda poderá ser revogada a qualquer tempo, mediante ato
judicial fundamento, ouvido o Ministério Público, sempre tendo como
parâmetro o princípio de proteção integral ou de melhor interesse da criança.
Justamente por isso é que a jurisprudência tem apontado que a
decisão quanto à guarda não faz coisa julgada material. (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil Vol. 5: direito de família. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019, p. 754).
(...)
Dessarte, Sérgio Gilberto Porto compreende que a ideia parte da
premissa de que a relação jurídica é somente normada nos limites da
situação substancial posta à apreciação, vez que pode, com o
transcurso do tempo, sofrer alterações fáticas. Portanto, por essa razão,
para o autor, é possível afirmar que a autoridade da coisa julgada tem sua
capacidade eficacial, também, limitada pelo tempo da decisão e
tempo dos fatos, que foram considerados ou que deveriam ter sido
considerados pela decisão, portanto, pré-existentes a esta. Assim, os limites temporais estão ligados ao tempo pelo
qual a coisa julgada imperará com sua imutabilidade e
indiscutibilidade do conteúdo da decisão de mérito. A coisa julgada
que se forma em relação às partes, por exemplo, está vinculada ao
conteúdo meritório da decisão de mérito que será imutável em
relação ao tempo em que a lide fora decidida, espraiando seus efeitos
somente para o tempo determinado na decisão, não chegando a
questão e a fatos futuros. (THAMAY, Rennan. Coisa julgada. São Paulo:
Thomson Reuters, 2018, p. 112).
17) Estabelecidas essas premissas, verifica-se que a sentença de
mérito da ação de afastamento de convívio familiar foi proferida em 2016 (quando
a menor possuía menos de 2 anos, logo após o seu albergamento provisório) e
reputou desnecessário, naquele momento e contexto fático, a dilação probatória
relacionada às circunstâncias em que se deu a entrega da criança e a tentativa de
adoção à brasileira, a existência de vínculos entre a menor e os pretensos
adotantes e a verdadeira aptidão do casal para o exercício da guarda do menor.
18) Entretanto, tendo sido a ação de guarda ajuizada após lapso
temporal considerável, no ano de 2018, assentada em causas de pedir
distintas e em possíveis modificações fáticas que em princípio parecem
críveis, é absolutamente inadequado, diante desse novo possível cenário, opor a
coisa julgada que se formou na ação de afastamento do convívio familiar aos
recorrentes, que, pois, tem o direito de ver as novas questões por eles suscitadas
examinadas em seu mérito na ação de guarda.
19) De outro lado, quanto aos fundamentos adotados pela sentença
que julgou procedente o pedido de afastamento do convívio familiar, no sentido de
que seria juridicamente impossível o reconhecimento da filiação
socioafetiva que tenha em sua origem uma adoção à brasileira, anote-se
não haver impedimento para que a questão seja examinada na presente ação de
guarda.
20) Com efeito, por mais relevantes que sejam, os motivos que
conduziram à procedência do pedido de afastamento do convívio familiar não
fazem coisa julgada, a teor da regra expressa contida no art. 504, I, do CPC/15.
21) Assim, a concepção prévia das instâncias ordinárias, no sentido de
que a burla ao cadastro de adoção ou à ordem cronológica tornaria, por si só,
absolutamente inviável a adoção pelos recorrentes, porque se trataria, para usar as exatas palavras dos julgadores, de um ato abominável, nocivo, ardil, torpe,
despudorado e imoral, tomado por pessoas inidôneas, sem credibilidade,
de má-fé, movidas por interesses escusos e incapazes de dar segurança
jurídica à criança, deve ser objeto de profunda revisitação, quer seja na presente
ação de guarda, quer seja nas ações de destituição de poder familiar em trâmite.
22) A esse respeito, sublinhe-se, em primeiro lugar, a precisa lição de
Rolf Madaleno:
A adoção à brasileira não é instituto regulado pelo Direito
brasileiro, sendo fruto da prática axiológica, com respaldo doutrinário e
jurisprudencial, decorrente de paternidade ou maternidade socioafetiva,
criada pelas pessoas que se declaram perante o Cartório de Registro Civil das
Pessoas Naturais como genitor ou genitora de filho biológico de outrem.
São, em verdade, registros de falsidade ideológica, de acordo com
o artigo 299 do Código Penal, cuja prática tipificada, em tese, como crime no
ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente como crime contra o estado
de filiação, consoante artigo 242 do Código Penal, mas cujo mote de dar
afeto e ascendência à prole rejeitada constrói a paternidade ou
maternidade socioafetiva e retira por sua intenção altruísta a
conotação pejorativa e ilícita, porque trata dos pais do coração. (...)
São as perfilhações de complacência, adotadas com
frequência e suportadas por uma espécie de tradição popular de
respeito ao afeto como valor jurídico na construção de um vínculo
social de filiação. Não há, realmente, como distinguir um ato de adoção
jurídica da denominada adoção à brasileira, consistente no registro
direto da pessoa, como se fosse filho biológico, posto que uma e
outra refletem um desejo de aproximação afetiva entre duas pessoas,
e neste posicionamento o filho adotivo (de fato ou de direito) em
nada diverge da filiação natural. (MADALENO, Rolf. Direito de família. 8ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 689).
23) Esta Corte, atenta a essa ineludível realidade, já consignou que
“não se descura que a higidez do processo de adoção é um dos objetivos
primordiais a ser perseguido pelo Estado, no que toca à sua responsabilidade com
o bem-estar de menores desamparados, tampouco que, na busca desse desiderato, a adoção deve respeitar rígido procedimento de controle e fiscalização estatal...”
(HC 274.845/SP, 3ª Turma, DJe 29/11/2013). Na mesma assentada, igualmente se
assentou:
Contudo, o fim legítimo não justifica o meio ilegítimo
para sancionar aqueles que burlam as regras relativas à adoção,
principalmente quando a decisão judicial implica evidente prejuízo
psicológico para o objeto primário da proteção estatal para a
hipótese: a própria criança.
24) Não se está aqui, é preciso registrar textualmente, sendo
condescendente com a transgressão ao cadastro de adotantes e à ordem
cronológica. Não se está aqui, sublinhe-se, romantizando uma ilegalidade. Ao
revés, somente se está reafirmando que, nas ações que envolvem a filiação e a
situação de menores, é imprescindível que haja o profundo, pormenorizado
e casuístico exame dos fatos da causa, pois quando se julgam as pessoas,
e não os fatos, normalmente há um prejudicial distanciamento daquele
que deve ser o maior foco de todas as atenções: a criança.
25) Nesse contexto, a aplicação das medidas protetivas e de
acolhimento devem, sempre, ser examinadas à luz do princípio da proteção
integral e prioritária da criança (art. 100, parágrafo único, II, do ECA), sendo
igualmente imprescindível a oitiva e a efetiva participação de todos os envolvidos
(art. 100, parágrafo único, XII, do ECA) e a realização dos estudos psicossociais e
interdisciplinares pertinentes para que se possa, ao final, serenamente encontrar a
solução que atenda ao melhor interesse do menor.
26) Na específica hipótese em exame, é relevante novamente
destacar que, por ocasião do julgamento do habeas corpus impetrado pelos
recorrentes, reconheceu-se que, naquele momento, não havia a segurança necessária para se conferir a guarda aos pretensos adotantes diante da gravidade
dos atos que deveriam ser apurados em todas as suas circunstâncias e da
simultaneidade de ações que envolviam a menor B M R (uma ação de afastamento
de convívio familiar, uma ação de guarda e duas ações de destituição de poder
familiar, bem como inquérito policial para investigação de ato tipificado como
crime).
27) Com isso se pretendeu, tão somente, impedir a ocorrência de
sucessivas modificações de guarda aptas a causar graves traumas e prejuízos à
formação social e humana da menor, relegando-se ao tempo oportuno – a
sentença conjunta de todos os processos, após cognição e instrução exauriente – a
deliberação definitiva acerca do destino de B M R.
28) Entretanto, não tendo havido a adequada instrução das causas que
envolvem a menor, porque não produzida nenhuma prova que melhor elucidasse
as circunstâncias em que se deu a entrega da criança e a tentativa de adoção à
brasileira, a existência de vínculos entre a menor e os pretensos adotantes e a
verdadeira aptidão do casal para o exercício da guarda do menor, é preciso que
haja uma imediata correção de rumo, especialmente porque se trata de criança
que atualmente conta com mais de 06 anos e que se encontra acolhida há mais de
04 anos sem nenhuma perspectiva concreta de sair do albergamento.
CONCLUSÃO.
29) Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso
especial, a fim de anular o acórdão recorrido e a sentença, determinando-se que
lhe seja dado regular prosseguimento à ação de guarda, bem como para
determinar que sejam reunidas e sentenciadas todas as ações relacionadas à menor B M R que ainda se encontrem pendentes de julgamento no juízo de
origem, a quem caberá, em até 90 dias, realizar todos os estudos psicossociais e
interdisciplinares pertinentes com a menor, a família biológica e os pretensos
adotantes, os quais, obrigatoriamente, deverão ser levados em consideração por
ocasião do julgamento conjunto das ações que envolvem a referida menor,
deixando de majorar os honorários por se tratar de anulação da sentença e do
acórdão.