RECURSO ESPECIAL Nº 1.833.824 - RS (2019/0251597-0)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C PEDIDO
DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. INADIMPLEMENTO. REGIME JURÍDICO APLICÁVEL.
DECRETO-LEI 911/69. INSCRIÇÃO DO NOME DO AVALISTA EM ÓRGÃOS DE
PROTEÇÃO AO CRÉDITO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. EXERCÍCIO REGULAR DO
DIREITO DE CRÉDITO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MAJORAÇÃO.
1. Ação ajuizada em 18/04/2016. Recurso especial interposto em 16/05/2019 e
concluso ao Gabinete em 26/08/2019. Julgamento: Aplicação do CPC/2015.
2. O propósito recursal consiste em definir se o credor fiduciário, na hipótese de
inadimplemento do contrato, é obrigado a promover a venda do bem alienado
fiduciariamente, na forma do art. 1.364 do CC/02, antes de proceder à inscrição dos
nomes dos devedores em cadastros de proteção ao crédito.
3. No ordenamento jurídico brasileiro, coexiste um duplo regime jurídico da
propriedade fiduciária: a) o regime jurídico geral do Código Civil, que disciplina a
propriedade fiduciária sobre coisas móveis infungíveis, sendo o credor fiduciário
qualquer pessoa natural ou jurídica; b) o regime jurídico especial, formado por um
conjunto de normas extravagantes, dentre as quais o Decreto-Lei 911/69, que trata
da propriedade fiduciária sobre coisas móveis fungíveis e infungíveis, além da
cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, restrito o
credor fiduciário à pessoa jurídica instituição financeira.
4. Hipótese dos autos que envolve cédula de crédito bancário com alienação
fiduciária de veículo em garantia firmada com instituição financeira, a atrair o regime
do DL 911/69.
5. Nos termos expressos do art. 5º do DL 911/69, é facultado ao credor fiduciário,
na hipótese de inadimplemento ou mora no cumprimento das obrigações
contratuais pelo devedor, optar pela excussão da garantia ou pela ação de
execução.
6. De todo modo, independentemente da via eleita pelo credor, a inscrição dos
nomes dos devedores solidários em bancos de dados de proteção ao crédito, em
razão do incontroverso inadimplemento do contrato, não se reveste de qualquer
ilegalidade, tratando-se de exercício regular do direito de crédito.
7. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração dos honorários
advocatícios.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e negar provimento ao
recurso especial, com majoração dos honorários advocatícios, nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas
Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 05 de maio de 2020(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por ODANIR BRUNO
SARTORI, com fundamento, exclusivamente, na alínea "a" do permissivo
constitucional.
Ação: declaratória c/c pedido de obrigação de fazer, ajuizada pelo
recorrente em face de BANCO VOLKSWAGEN S.A.
Em breve síntese, alega o autor que, na condição de então sócio da
empresa Concresart Tecnologia em Concreto LTDA, firmou com o Banco réu, em
30/08/2011, contrato de abertura de crédito fixo com garantia de alienação
fiduciária, no qual figurou como avalista.
No entanto, em fevereiro de 2016 – após a sua retirada do quadro
societário, em maio de 2013 –, a empresa entrou em recuperação judicial e se
tornou inadimplente com relação às parcelas do contrato, o que ocasionou a
inscrição do nome do autor em cadastros de restrição ao crédito.
Ante esses fatos, argumenta o autor que, por se tratar de contrato
garantido por alienação fiduciária, cabia ao Banco réu primeiramente efetivar a
venda do bem com vistas ao pagamento da dívida e, assim, apurar eventual saldo
devedor, na forma do art. 1.364 do CC/02, para só então proceder à negativação do nome do avalista.
Dessa maneira, requer a exclusão das anotações já realizadas e que
seja determinado ao réu que não efetue a inscrição do nome do autor em cadastro
de restrição ao crédito no tocante ao contrato em apreço antes de promovida a
venda do bem alienado fiduciariamente.
Sentença: julgou procedente o pedido, para declarar o direito do
autor, ora recorrente, de não ter o seu nome incluído em rol de inadimplentes
antes de observado o procedimento de excussão da garantia, confirmando a
decisão que, em sede de tutela antecipada, determinou a exclusão das anotações
negativas.
Acórdão: deu provimento à apelação interposta pelo recorrido para
julgar improcedentes os pedidos iniciais, nos termos da seguinte ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DECLARATÓRIA
E INDENIZATÓRIA. DANO MORAL. INEXISTÊNCIA DE ATO ILÍCITO.
1. Inexiste obrigação de o credor buscar antes a garantia real e
depois a pessoal. Inaplicabilidade do artigo 1.364 do Código Civil no caso
concreto.
2. Em sendo o débito devido, pois, regular a inscrição em órgão(s)
de proteção ao crédito, inexistindo ato ilícito, razão pela qual não há falar-se em
indenização por danos morais. Exercício regular de direito. APELO PROVIDO”
(e-STJ fl. 92).
Recurso especial: alega violação do art. 1.364 do CC/02, reiterando
que, na hipótese de inadimplemento de contrato garantido por alienação
fiduciária, o credor, a fim de buscar a satisfação de seu crédito, deve
obrigatoriamente promover a venda do bem alienado e aplicar o preço obtido no
pagamento e/ou abatimento parcial da dívida. Defende que, antes desse
procedimento, que permite apurar eventual débito remanescente, não é lícita a
inclusão do nome do devedor em órgãos de restrição ao crédito.
Juízo de admissibilidade: o recurso foi admitido pelo TJ/RS.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal consiste em definir se o credor fiduciário, na
hipótese de inadimplemento do contrato, é obrigado a promover a venda do bem
alienado fiduciariamente antes de proceder à inscrição dos nomes dos devedores
em cadastros de proteção ao crédito.
I. DA DELIMITAÇÃO DA CONTROVÉRSIA
1. O debate trazido a julgamento gira em torno da interpretação do
art. 1.364 do CC/02, segundo o qual “vencida a dívida, e não paga, fica o credor
obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o
preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o
saldo, se houver, ao devedor”.
2. A partir de tal dispositivo legal, o ora recorrente defende que a
venda do bem alienado fiduciariamente é obrigatória, pois somente após
implementada é que se poderia constatar eventual saldo devedor remanescente,
que, de seu turno, legitimaria a inscrição do nome do devedor e seus avalistas em
cadastros de restrição ao crédito.
3. O Tribunal de origem, no entanto, rejeitou essa linha argumentativa, ao entendimento de que “inexiste obrigação de o credor buscar antes a garantia
real e depois a pessoal, até porque lhe é de direito promover a execução do crédito
da maneira que lhe pareça mais exitosa, restando inaplicável o referido artigo do
códex no caso presente” (e-STJ fl. 94).
II. DO DUPLO REGIME JURÍDICO DA PROPRIEDADE
FIDUCIÁRIA
4. Em linhas gerais, o negócio fiduciário é aquele mediante o qual um
sujeito (fiduciante), a fim de garantir uma obrigação, transmite a propriedade de
uma coisa ou a titularidade de um direito a outro (fiduciário), que, se cumprido o
encargo, devolve o bem ou o direito ao transmitente. Considera-se fiduciária,
assim, a propriedade resolúvel de coisa ou direito que o devedor fiduciante, com
escopo de garantia, transfere ao credor fiduciário.
5. No ordenamento jurídico brasileiro, a matéria é disciplinada pelo
Código Civil e por uma profusa legislação extravagante. Por isso, aponta a doutrina
a coexistência de um duplo regime jurídico da propriedade fiduciária: a) o
regime jurídico geral do Código Civil, que disciplina a propriedade fiduciária
sobre coisas móveis infungíveis, sendo o credor fiduciário qualquer pessoa
natural ou jurídica; b) o regime jurídico especial, formado por um conjunto
de normas extravagantes, basicamente divididas em: (b1) Decreto-Lei 911/69,
acrescido do art. 66-B da Lei 4.728/65 (Lei do Mercado de Capitais), atualizados
pela redação da Lei 10.931/2004, tratando de propriedade fiduciária sobre coisas
móveis fungíveis e infungíveis, além da cessão fiduciária de direitos sobre
coisas móveis ou de títulos de crédito, restrito o credor fiduciário à pessoa
jurídica instituição financeira; (b2) Lei 9.514/97, também modificada pela Lei
10.931/2004, que trata da propriedade fiduciária imobiliária, seja o credor instituição financeira ou não (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
Curso de Direito Civil: direitos reais, 14ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018, p.
557).
6. Aliás, a coexistência de ambos os regimes jurídicos e a solução de
eventual conflito de leis foi enfrentada pela Lei 10.931/2004, que acrescentou o
art. 1.368-A ao Código Civil para esclarecer que “as demais espécies de
propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária” (vale dizer, aquelas que não
tratam de negócio fiduciário envolvendo bem móvel infungível e firmado entre
quaisquer pessoas, naturais ou jurídicas) “submetem-se à disciplina específica das
respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código
naquilo que não for incompatível com a legislação especial”.
III. DO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À HIPÓTESE DOS AUTOS:
DECRETO-LEI 911/69
7. Essa distinção acerca da disciplina legal da propriedade fiduciária
segundo a sua natureza mostra-se relevante no presente julgamento pois permite
concluir, de início, que o dispositivo legal invocado pelo recorrente, a saber,
o art. 1.364 do CC/02, não é aplicável à relação jurídica travada entre as
partes.
8. Com efeito, verifica-se que a hipótese dos autos trata de aval
prestado pelo recorrente em cédula de crédito bancário com alienação fiduciária
de veículo em garantia, que fora firmada junto ao Banco recorrido (e-STJ fl. 65).
9. Dessa maneira, em se tratando de alienação fiduciária de coisa
móvel infungível envolvendo instituição financeira, o regime jurídico aplicável
é aquele do Decreto-Lei 911/69, devendo as disposições gerais do Código Civil
incidir apenas em caráter supletivo.
10. Essa aplicação supletiva do Código Civil, todavia, não se faz
necessária na espécie, haja vista que o DL 911/69 contém disposição expressa que
faculta ao credor fiduciário, na hipótese de inadimplemento ou mora no
cumprimento das obrigações contratuais pelo devedor, optar por recorrer
diretamente à ação de execução, caso não prefira retomar a posse do bem e
vendê-lo a terceiros.
11. Nesse sentido é o contido no art. 5º do DL 911/69, in verbis:
Art. 5º. Se o credor preferir recorrer à ação executiva, direta ou a convertida na forma do art. 4º, ou, se for o caso ao executivo fiscal,
serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos bastem
para assegurar a execução” (grifou-se).
12. Logo, já se constata que não prospera o argumento do recorrente
quanto à obrigatoriedade de o credor proceder à excussão da garantia na hipótese
de inadimplemento do contrato garantido por alienação fiduciária.
IV. DO EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO PELO CREDOR
13. Não obstante, cabe salientar que, independentemente de optar o
credor pela venda do bem alienado fiduciariamente a terceiros ou pela execução
direta, a inscrição do nome dos devedores solidários em bancos de dados de
proteção ao crédito, na hipótese de inadimplemento, não se reveste de qualquer
ilegalidade, tratando-se de exercício regular de direito do credor.
14. Com efeito, a partir do inadimplemento das obrigações pactuadas
pelo devedor, nasce para o credor uma série de prerrogativas, não apenas
atreladas à satisfação do seu crédito em particular – do que é exemplo a excussão
da garantia ou a cobrança da dívida –, mas também à proteção do crédito em geral
no mercado de consumo.
15. Inclusive, destaca a doutrina, o próprio CDC, ao invés de proibir, aceita e disciplina as atividades desenvolvidas pelos bancos de dados de proteção
ao crédito, sinalizando, ademais, a sua relevância para a atividade econômica no
país, tão dependente do crédito.
16. Nesse sentido, veja-se a precisa lição de Leonardo ROSCOE
BESSA:
“Como evidenciado nos itens anteriores, coletar, armazenar e
divulgar informações pessoais são atos, em tese, ofensivos à privacidade. Do
mesmo modo, difundir, por qualquer meio, a notícia de que alguém não cumpre
pontualmente com suas obrigações caracteriza ofensa à honra.
Admite-se, excepcionalmente, que os bancos de dados
de proteção ao crédito, considerando a presença de outros valores
em jogo – em síntese, a importância do crédito para o indivíduo e
para a economia nacional, bem como o direito à informação –,
realizem, observados determinados requisitos legais, o tratamento
de informações pessoais negativas. Desde que atendidos
rigorosamente os limites impostos pelo ordenamento jurídico, há
exercício regular de direito. O direito brasileiro aceita – e controla – a existência dos bancos de
dados de proteção ao crédito. Desse modo, os atos praticados pelas entidades
que os administram, desde que atendidos, rigorosamente, os limites impostos
pelo ordenamento jurídico, são lícitos, não configurando ofensa à dignidade do
consumidor (direito à privacidade e à honra)” (Manual de Direito do
Consumidor, 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 320).
17. Assim, em conclusão, independentemente da via eleita pelo
credor para a satisfação de seu crédito, não há ilicitude na inscrição do nome do
devedor e seu avalista nos órgãos de proteção ao crédito, ante o incontroverso
inadimplemento da obrigação.
Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial e NEGO-LHE
PROVIMENTO.
Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/15, considerando o trabalho
adicional imposto ao advogado da parte recorrida em virtude da interposição deste
recurso, majoro os honorários advocatícios fixados anteriormente em R$ 2.000,00 (e-STJ fl. 95) para R$ 3.000,00.