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21 de agosto de 2021

É cabível a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/08/info-700-stj.pdf

 

USUCAPIÃO - É possível a usucapião mesmo em uma área irregular (área na qual não houve regularização fundiária) 

É cabível a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística. 

STJ. 2ª Seção. REsp 1.818.564-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 09/06/2021 (Recurso Repetitivo – Tema 1025) (Info 700). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

João mora, há 20 anos, em uma casa no Setor Tradicional de Planaltina/DF. Ele não tem o título de propriedade dessa área, mas afirma ter a posse mansa, pacífica e ininterrupta. João ajuizou ação de usucapião extraordinária pedindo para se tornar proprietário do imóvel. O juiz julgou o pedido improcedente, argumentando que: 

- o imóvel em questão, embora situado em área particular, não tem matrícula individual no cartório de registro imobiliário; 

- esse imóvel pleiteado pelo autor, assim como vários outros que estão na mesma situação, é fruto de um “parcelamento de fato”, ou seja, um parcelamento feito de forma irregular (sem cumprir a legislação) há mais de 50 anos e que ainda não foi regularizado pelo Poder Público; 

- é impossível declarar a usucapião, porque isso representaria uma usurpação da função de planejamento e regularização urbanística da Administração; 

- a constituição do registro imobiliário pretendido iria atrapalhar o andamento do processo administrativo de regularização em curso; 

- o sistema jurídico não admite o fracionamento, loteamento ou desmembramento de imóvel por meio de usucapião. 

Desse modo, o juiz extinguiu a ação por ausência de interesse de agir, porque eventual sentença declaratória de usucapião não poderia ser levada a registro no Cartório de Registro de Imóveis. Ademais, o magistrado sustentou que seria atribuição exclusiva do Governo do Distrito Federal promover a regularização fundiária urbana, razão pela qual ficaria inviabilizado o reconhecimento da usucapião. A questão chegou até o STJ, que analisou e respondeu a seguinte pergunta: 

É cabível ação de usucapião que tem por objeto imóvel desprovido de registro e situado em loteamento no Setor Tradicional de Planaltina, o qual, embora consolidado há décadas, não foi autorizado nem regularizado pela Administração do Distrito Federal? SIM. 

Ausência de matrícula não impede o registro da usucapião

 Inicialmente, é importante ressaltar que a ausência de matrícula individual do imóvel não embaraça, por si só, o registro da usucapião reconhecida em juízo. Imagine-se, por exemplo, a situação em que parte de uma fazenda é ocupada por lavradores com animus domni pelo tempo necessário ao reconhecimento da prescrição aquisitiva, ali exercendo notórios atos de posse de boa-fé. A área ocupada não tem matrícula própria. Apesar disso, será possível o reconhecimento da usucapião. Basta, para tanto, que se faça o desmembramento da matrícula original, a fim de que a área usucapida possa contar com uma cadeia dominial própria. Ademais, o art. 216-A, § 6º, da Lei de Registros Públicos autoriza o Oficial do Registro a abrir uma nova matrícula nas hipóteses de usucapião administrativa, se necessário. Tratando-se de parcelamento do solo ou incorporação imobiliária, também há previsão legal expressa para abertura de novas matrículas (art. 237-A da Lei de Registros Públicos). A conclusão que se chega é a de que, se o bem imóvel é divisível, essa qualidade deve se refletir no Cartório de Registro de Imóveis com a abertura de tantas matrículas quantas forem necessárias para certificar a verdadeira propriedade das glebas. 

Pode haver direito de propriedade que ainda não está certificado no registro de imóveis 

É preciso distinguir o direito de propriedade da situação registrária de determinado imóvel. Assim, pode haver propriedade imobiliária que ainda não está certificada no Registro de Imóveis. O cartório de Registro de Imóveis fornece uma presunção relativa de veracidade (presunção iuris tantum), ou seja, admite prova em contrário. E, se admite prova em contrário, é porque o registro da propriedade não se confunde com a propriedade em si. Exemplo de situação na qual existe propriedade mesmo sem a informação adequada no registro imobiliário: o caso em que o imóvel comum do casal é registrado apenas no nome de um dos consortes. O cônjuge não mencionado no registro é proprietário, mesmo não constando seu nome nos assentamentos. Nas situações de aquisição originária, como é o caso da usucapião, o registro desempenha papel meramente coadjuvante. Considerando que a usucapião propicia o cumprimento da função social da propriedade e que esse objetivo tem previsão constitucional, não se pode querer criar esse outro requisito (existência de matrícula própria) como uma condição para o reconhecimento da prescrição aquisitiva (usucapião). Isso significa que as ações de usucapião relativas aos imóveis situados no Setor Tradicional de Planaltina não devem ser extintas com fundamento no art. 485, VI, do CPC por ausência de interesse de agir ou falta de condição de procedibilidade da ação. 

É possível a usucapião mesmo em uma área irregular (área na qual não houve regularização fundiária)? 

SIM. Existem três dimensões envolvendo a regularização fundiária: 

a) a dimensão urbanística, relacionada aos investimentos necessários para melhoria das condições de vida da população; 

b) a dimensão jurídica, que diz respeito aos instrumentos que possibilitam a aquisição da propriedade nas áreas privadas e o reconhecimento da posse nas áreas públicas; e 

c) a dimensão registrária, com o lançamento nas respectivas matrículas da aquisição destes direitos, a fim de atribuir eficácia para todos os efeitos da vida civil. (NALINI, José Renato. Direitos que a Cidade Esqueceu. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 167) 

Isso, contudo, não interfere no direito de propriedade. A forma como determinado imóvel se apresenta no contexto urbano não se confunde com o direito de propriedade. Se o imóvel é assistido por vias públicas, se conta com sistemas de água e esgoto, se foi edificado com respeito aos recuos e gabarito previsto nas posturas municipais, nada disso é capaz de criar ou suprimir o direito de propriedade ou os reflexos desse direito no registro imobiliário. Da mesma maneira se o imóvel é utilizado de forma irregular, com desrespeito à sua função social e urbanística, isso tampouco é suficiente para interferir com o direito de propriedade. Não há, portanto, como negar o direito à usucapião sob o pretexto de que o imóvel está inserido em loteamento irregular, porque o direito de propriedade declarado pela sentença (dimensão jurídica) não se confunde com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística). O reconhecimento da usucapião não impede a implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano. Ao contrário, isso representa, em várias hipóteses, o primeiro passo para restabelecer a regularidade da urbanização. Se a utilização do imóvel desrespeita o interesse público, isso continuará a acontecer independentemente do reconhecimento da prescrição aquisitiva. Eventual construção irregular, supressão de nascente ou risco à saúde pública continuarão a existir independentemente de o juiz, na sentença, deferir ou indeferir o pedido de usucapião, sendo certo que tais irregularidades devem ser corrigidas por remédios próprios, a cargo do Poder Público, pelo poder de polícia que lhe é inerente. A declaração da usucapião, vale dizer, é incapaz de causar prejuízo à ordem urbanística, sendo certo, da mesma forma, que o indeferimento do pedido de usucapião não é capaz, por si só, de evitar a utilização indevida da propriedade. 

Decisão do STF no RE 422.349/RS 

O Pleno do STF, ao julgar o RE 422.349/RS, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, fixou a tese de que: 

Se forem preenchidos os requisitos do art. 183 da CF/88, a pessoa terá direito à usucapião especial urbana e o fato de o imóvel em questão não atender ao mínimo dos módulos urbanos exigidos pela legislação local para a respectiva área (dimensão do lote) não é motivo suficiente para se negar esse direito, que tem índole constitucional. Para que seja deferido o direito à usucapião especial urbana basta o preenchimento dos requisitos exigidos pelo texto constitucional, de modo que não se pode impor obstáculos, de índole infraconstitucional, para impedir que se aperfeiçoe, em favor de parte interessada, o modo originário de aquisição de propriedade. STF. Plenário. RE 422349/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 29/4/2015 (repercussão geral) (Info 783). 

No caso concreto julgado pelo STF, os autores propuseram ação de usucapião tendo por objeto imóvel de metragem inferior ao módulo mínimo definido pelo Plano Diretor para lotes urbanos. Isso significa que o imóvel, segundo se pode concluir, não possuía matrícula individual, nem podia ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis por mero requerimento da parte interessada, configurando, por isso, sob o ponto de vista da norma municipal, verdadeira ocupação irregular. A despeito disso, o STF reconheceu a usucapião. Admitindo-se que aquele não era o único imóvel da região com metragem inferior ao módulo mínimo legal, parece razoável sustentar que o STF, ao fim e ao cabo, reconheceu a possibilidade de usucapião de glebas inseridas em loteamentos não regularizados. Desse modo, admite-se a ação de usucapião de imóveis inseridos em loteamentos irregulares. 

Nem todas as ocupações irregulares atentam contra o interesse público 

Não é correto afirmar que todas as ocupações irregulares do solo atentam contra o interesse público. O que atenta contra o interesse público é a inércia do Estado em promover e disciplinar a ocupação do solo. No caso, essa omissão estatal é mais do que flagrante. A ocupação da área está sedimentada há décadas e contou com a anuência implícita do Poder Público, que fingiu não ter visto nada, tolerou durante todos esses anos e ainda providenciou a instalação de vários serviços e equipamentos públicos, como pavimentação de ruas, iluminação pública, linhas de ônibus, praça pública, posto do DETRAN; etc. Não por outro motivo, a região é conhecida como Setor Tradicional de Planaltina, o que bem denota a idade do parcelamento do solo. 

Em suma: É cabível a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística. STJ. 2ª Seção. REsp 1.818.564-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 09/06/2021 (Recurso Repetitivo – Tema 1025) (Info 700).