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19 de junho de 2021

É lícito o compartilhamento de dados bancários feito por órgão de investigação do país estrangeiro para a polícia brasileira, mesmo que, no Estado de origem, essas informações não tenham sido obtidas com autorização judicial, já que isso não é exigido naquele país

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/06/info-695-stj.pdf


DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVAS: É lícito o compartilhamento de dados bancários feito por órgão de investigação do país estrangeiro para a polícia brasileira, mesmo que, no Estado de origem, essas informações não tenham sido obtidas com autorização judicial, já que isso não é exigido naquele país 

Caso concreto: a Procuradoria de Nova Iorque (EUA) compartilhou com a Polícia Federal do Brasil uma relação de brasileiros que mantinham contas bancárias nos EUA. A partir dessa informação, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar os fatos e representou pela quebra do sigilo bancário dos investigados. O juiz federal deferiu o pedido e expediu um MLAT aos EUA solicitando todos os detalhes das contas bancárias mantidas naquele país. Esses dados foram enviados. O compartilhamento de dados feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal foi realizado sem autorização judicial. Mesmo assim, não há nulidade e tais elementos informativos podem ser utilizados no Brasil, já que, no Estado de origem, não era necessária autorização judicial. Assim, não viola a ordem pública brasileira o compartilhamento direto de dados bancários pelos órgãos investigativos, mesmo que, no Estado de origem, sejam obtidos sem prévia autorização judicial, se a reserva de jurisdição não é exigida pela legislação daquele local. Ainda neste mesmo caso concreto, o STJ decidiu que a cooperação internacional feita pelo MLAT não será nula, ainda que não tenha sido concretizada com a intermediação das autoridades centrais do Brasil e dos EUA. Respeitadas as garantias processuais do investigado, não há prejuízo na cooperação direta entre as agências investigativas, sem a participação das autoridades centrais. A ilicitude da prova ou do meio de sua obtenção somente poderia ser pronunciada se o réu demonstrasse alguma violação de suas garantias ou das específicas regras de produção probatória. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695). 

Imagine a seguinte situação adaptada: 

O Ministério Público federal ofereceu denúncia contra João pela prática do crime de evasão de divisas, delito tipificado no art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86: 

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente. 

O MPF alegou que o acusado manteve dinheiro em conta bancária nos EUA sem informar esse fato ao Banco Central do Brasil. 

Modo como foram obtidos os dados bancários 

A Procuradoria de Nova Iorque compartilhou com a Polícia Federal do Brasil uma relação de brasileiros que mantinham contas bancárias nos EUA. Uma dessas pessoas era João. A partir dessa informação, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar os fatos e representou pela quebra do sigilo bancário de João. O juiz federal deferiu o pedido e expediu um MLAT aos EUA solicitando todos os detalhes da conta bancária mantida por João naquele país. Esses dados foram enviados. 

O que é o MLAT? 

Na prática diária da Justiça Federal, é muito comum a utilização de provas emprestadas da Justiça norteamericana, por força de um acordo celebrado entre o Brasil e os EUA e que ficou conhecido pela sua sigla (MLAT). Em inglês, MLAT significa “Mutual Legal Assistance Treaty” e consiste em um acordo bilateral por meio do qual os EUA e o Brasil se comprometem a prestar auxílio jurídico direto em matéria processual. O MLAT foi a forma encontrada para desburocratizar e tornar mais célere e fácil a cooperação jurídica internacional, que antes era feita apenas por meio de cartas rogatórias que, no entanto, são caras e demoradas. As cartas rogatórias demoram mais para serem cumpridas porque exigem maiores formalidades e, para serem enviadas e recebidas, precisam passar pelos canais diplomáticos de cada país. No Brasil, para serem cumpridas, precisam ainda da autorização do STJ. O MLAT, por sua vez, é um instrumento de Auxílio Direto, permitindo que o pedido de auxílio seja formulado diretamente pelo juiz de 1ª instância, sendo desnecessário o juízo prévio de delibação do STJ. A tramitação desses pedidos é coordenada pela Autoridade Central brasileira designada em cada tratado firmado, conforme explica o Manual de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça editado em 2012 (www.portal.mj.gov.br). O MLAT entre o Brasil e os EUA foi assinado em 1997, mas promulgado apenas em 2001, por meio do Decreto nº 3.810/2001. Por meio desse acordo, as partes (Brasil e EUA) se obrigam a prestar assistência mútua, em matéria de investigação, inquérito, ação penal, prevenção de crimes e processos relacionados a delitos de natureza criminal. A assistência incluirá: a) tomada de depoimentos ou declarações de pessoas; b) fornecimento de documentos, registros e bens; c) localização ou identificação de pessoas (físicas ou jurídicas) ou bens; d) entrega de documentos; e) transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento ou outros fins; f) execução de pedidos de busca e apreensão; g) assistência em procedimentos relacionados a imobilização e confisco de bens, restituição, cobrança de multas; e h) qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado Requerido. Os EUA mantêm acordos semelhantes com diversos outros países do mundo. 

João foi condenado e a defesa recorreu alegando duas teses. A primeira delas foi a de que o compartilhamento de dados feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal foi realizada sem autorização judicial. Logo, seria nula. O STJ concordou com essa tese? NÃO. 

Não viola a ordem pública brasileira o compartilhamento direto de dados bancários pelos órgãos investigativos mesmo que, no Estado (país) de origem, essas informações tenham sido obtidas sem prévia autorização judicial, se a reserva de jurisdição não é exigida pela legislação local. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695). 

Como os valores estavam depositados em conta bancária de instituição financeira localizada em Nova Iorque, a licitude do compartilhamento deve ser examinada à luz da legislação daquele Estado: 

A provas obtidas por meio de cooperação internacional em matéria penal devem ter como parâmetro de validade a lei do Estado no qual foram produzidas, conforme a previsão do art. 13 da LINDB. STJ. Corte Especial. APn 856/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/10/2017. 

No caso concreto, a obtenção dos dados cadastrais, do contrato de abertura da conta e dos extratos de sua movimentação ocorreu em conformidade com a legislação vigente no Estado de Nova Iorque. Logo, o compartilhamento dessas informações feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal obedeceu à legislação daquele Estado. No direito brasileiro, como se sabe, a quebra do sigilo de tais informações se submete à reserva de jurisdição, na forma dos arts. 1º, § 4º, e 3º da Lei Complementar 105/2001. Essa exigência do ordenamento brasileiro, contudo, não existe na legislação nova-iorquina. Em Nova Iorque, ainda na década de 1970, a Suprema Corte daquele Estado afirmou que a acusação tem a prerrogativa de encaminhar, ela própria, intimação (subpoena) para a entrega de documentos bancários (Shapiro v. Chase Manhattan Bank, 53 A.D. 2d 542, julgado em 15/6/1976); este entendimento, inclusive, tem sido confirmado em casos mais recentes (por exemplo: People v. Lomma, 35 Misc. 3d 396, julgado em 1/2/2012). Por conseguinte, na forma do art. 13 da LINDB, não é possível declarar nulidade pela falta de prévia decisão judicial quando da obtenção do documento no qual foram elencadas as contas de brasileiros no Delta National Bank, de Nova Iorque: 

Art. 13. A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça. 

No presente caso, não há afronta à ordem pública brasileira, mas apenas a existência de um tratamento jurídico diferente sobre a produção de prova no Brasil e nos EUA. Para a obtenção das provas em análise, não foi violada qualquer norma cogente de direito internacional, não se agrediu a soberania brasileira e não se violou a dignidade do investigado. Logo, não se aplica, na situação, o art. 17 da LINDB: 

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. 

Situação diferente existiria se a obtenção da prova tivesse ocorrido, por exemplo, mediante tortura, ou em procedimento eivado de perseguição político-ideológica. Nestes casos, por certo, nem mesmo eventual permissão judicial poderia convalidar a prova, porquanto violada profundamente a dignidade do investigado. Isso mostra que, para avaliar a admissibilidade de uma prova à luz do art. 17 da LINDB, mais decisivo é o respeito à condição humana do indivíduo do que, propriamente, a reserva de jurisdição. 

Vamos agora tratar do segundo questionamento. A defesa alegou a nulidade do compartilhamento mais detalhado que foi feito por meio do MLAT 

Para a defesa, a decisão do juiz federal não poderia ter sido cumprida imediatamente no exterior. Em sua ótica, caberia à autoridade central brasileira (Ministério da Justiça) solicitar à autoridade central norteamericana (Procurador-Geral) o envio dos dados almejados pelo aparato investigador, conforme o procedimento previsto no MLAT. 

Essa segunda tese da defesa foi acolhida pelo STJ? 

NÃO. De fato, o art. 4º do MLAT firmado entre Brasil e EUA institui um procedimento específico para as solicitações de cooperação, com a participação das autoridades centrais de cada país (o Ministério da Justiça e o Procurador-Geral, respectivamente). Não obstante, o descumprimento deste rito, por si só, não é causa suficiente para declarar a nulidade das provas decorrentes da colaboração. É necessário interpretar sistematicamente o art. 4º, cotejando-o com as demais normas extraídas do MLAT, para que uma leitura isolada do dispositivo não conduza a resultados não contemplados no escopo do Tratado. O MLAT busca desburocratizar a cooperação internacional em matéria penal, pois permite a utilização de qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado requerido. Tratar o procedimento formal do art. 4º como impositivo, sob pena de nulidade das provas obtidas por formas atípicas de cooperação, desconsideraria o teor destes textos normativos e violaria frontalmente o art. 1º, n. 5, do MLAT. A veiculação de pedidos pelas autoridades centrais não é a única forma válida de compartilhamento - pelo menos no âmbito do Acordo de Assistência firmado entre Brasil e EUA -, que não veda a cooperação direta entre os órgãos investigadores de cada país. 

Em suma: Respeitadas as garantias processuais do investigado, não há prejuízo na cooperação direta entre as agências investigativas, sem a participação das autoridades centrais. A ilicitude da prova ou do meio de sua obtenção somente poderia ser pronunciada se o réu demonstrasse alguma violação de suas garantias ou das específicas regras de produção probatória. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695).