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5 de maio de 2021

Filigrana doutrinária: Impossibilidade jurídica do pedido - Adroaldo Furtado Fabrício

 Antes de qualquer outra dúvida suscitada pela possibilidade jurídica da demanda, uma primeira sempre inquietou a doutrina: seria mesmo logicamente possível apartar do mérito essa questão? Ainda antes: faria sentido, a respeito de qualquer objeto, indagar se ele é possível ou não, para só depois dirimir a questão de como ele é e o que é? E, sobretudo, seria razoável afirmar-se que, quando se diz que a coisa não pode ser, continua viva a questão de apurar se ela é? Algo assim como, em debate sobre haver o homem posto o pé na Lua, perguntar-se previamente, e sem responder àquela outra questão, se esse feito era ou não possível. Ora, se ele foi, era possível; se não foi, toda indagação sobre ser ou não possível cai no vazio da mais absoluta inutilidade. O impossível é aquilo que não se fez. A imprestabilidade do conceito é patente. Concluindo-se que sim, o pedido é compatível com o sistema, mas não se afirma desde logo sua procedência, ter-se-á um fútil exercício acadêmico, a brigar com o escopo prático do processo. Se a conclusão é negativa, frustram-se o esforço e o passivo processual já acumulado e tudo retorna à estaca zero, permanecendo aberta a porta à mesma demanda. Em um e outro caso, nada se ganhou ou progrediu; ao contrário, perde-se o que já se haja feito e retorna-se à situação existente antes da formação do processo. Argumentar-se que o exame prévio da possibilidade economizaria dispêndios talvez necessários à outra resposta seria inconclusivo: há todo um juízo de admissibilidade, com abrangência muito maior, a ser exercitado. A verificação prévia da razoabilidade da postulação (não apenas jurídica), permitindo o eventual indeferimento liminar, assim como as muitas hipóteses de julgamento sem resolução do mérito, asseguram ao julgador amplo instrumental de filtragem das demandas inviáveis. Não há razão para destacar-se desse conjunto o requisito em menção. Por que não, por exemplo, a impossibilidade material, física, que também se pode expor prima facie? É arbitrário o critério que erige em condição de existência (ou mesmo de regular exercício) da ação (como direito, faculdade) um requisito de sua procedência, vale dizer, do acolhimento à pretensão. O brilhante alvitre de restringir-se a verificação dessa condição ao pedido imediato (de prestação jurisdicional) não soluciona o impasse. Por certo, parcela considerável das objeções que oponho ao conceito resultaria afastada. Mas, de outra banda, esse mesmo conceito, assim desfigurado, já não corresponderia ao laboriosamente construído pela doutrina anterior e, o que é mais grave, o descaracterizaria como requisito ao qual se pretende subordinar o conceito de ação. À parte essas considerações, não há como sustentar-se que a decisão declaratória da impossibilidade jurídica seja estranha ao meritum causae – salvo, talvez, na modalidade atenuada que só contempla a inviabilidade da pretensão processual. Essa negativa envolve necessariamente a afirmação de que o autor não tem razão. Mais enfaticamente até do que ocorre na sentença de improcedência, que declara a inexistência em concreto do direito subjetivo invocado pelo autor: responde-lhe o juiz que esse pedido não se poderia atender em qualquer caso ou circunstância, porque contrário ao próprio sistema. Qualquer que seja o momento processual, e sem importar a extensão e natureza do material com que trabalhou o julgador, o resultado final é de improcedência da demanda porque estabelecido o convencimento judicial da sem-razão do autor. O ser impossível o objeto da postulação é apenas um dos motivos pelos quais ela pode ser repelida. Se dizemos ser impossível o homem ir à Lua, já fica dito que o homem não foi à Lua. Por outro lado, se afirmada a possibilidade jurídica, sem avaliar-se ainda a procedência, nada de útil se terá adiantado. Apenas estaria excluído um dos motivos possíveis de improcedência, em exercício estéril de raciocínio. Em regra, aliás, os juízes, sabiamente, não costumam entregar-se a esse onanismo intelectual: se não é caso de improcedência prima facie da demanda (entre cujos fundamentos cogitáveis está a impossibilidade), com evidência então já suficiente, remetem o exame da matéria à sentença final de mérito – sua sede natural 


FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. O interesse de agir como pressuposto processual in Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, nº 1, jan./abr. 2018, p. 174/176.