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9 de maio de 2021

HERANÇA JACENTE. LEGITIMIDADE ATIVA DO PRÓPRIO MAGISTRADO. PODERES DE INSTAURAÇÃO E INSTRUÇÃO DO PROCEDIMENTO CONFERIDOS PELA LEI PROCESSUAL. PODER-DEVER DO JUIZ.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.812.459 - ES (2018/0299798-8) 

RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE 

 RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. HERANÇA JACENTE. LEGITIMIDADE ATIVA DO PRÓPRIO MAGISTRADO. PODERES DE INSTAURAÇÃO E INSTRUÇÃO DO PROCEDIMENTO CONFERIDOS PELA LEI PROCESSUAL. PODER-DEVER DO JUIZ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO. 

1. O propósito recursal consiste em definir se a instauração do procedimento especial de herança jacente por um ente municipal, mas sem a devida instrução com os documentos indispensáveis, ainda que desatendida a intimação para emendar a petição inicial, enseja o indeferimento da exordial e, por conseguinte, a extinção do processo sem resolução do mérito. 

2. A ausência de demonstração, nas razões recursais, da forma pela qual se deu a violação ao art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015 pelo Tribunal de origem implica deficiência na fundamentação, a impossibilitar o conhecimento da insurgência no ponto, dada a incidência da Súmula 284 do Supremo Tribunal Federal. 

3. A herança jacente, prevista nos arts. 738 a 743 do CPC/2015, é um procedimento especial de jurisdição voluntária que consiste, grosso modo, na arrecadação judicial de bens da pessoa falecida, com declaração, ao final, da herança vacante, ocasião em que se transfere o acervo hereditário para o domínio público, salvo se comparecer em juízo quem legitimamente os reclame. 

4. Tal procedimento não se sujeita ao princípio da demanda (inércia da jurisdição), tendo em vista que o CPC/2015 confere legitimidade ao juiz para atuar ativamente, independente de provocação, seja para a instauração do processo, seja para a sua instrução. Por essa razão, ainda que a parte autora/requerente não junte todas as provas necessárias à comprovação dos fatos que legitimem o regular processamento da demanda, deve o juiz, antes de extinguir o feito, diligenciar minimamente, adotando as providências necessárias e cabíveis, visto que a atuação inaugural e instrutória da herança jacente, por iniciativa do magistrado, constitui um poder-dever. 

5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido. 

ACÓRDÃO 

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Moura Ribeiro, Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente) e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. 

Brasília, 09 de março de 2021 (data do julgamento). 

RELATÓRIO 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE: Trata-se de recurso especial interposto por Município de Água Doce do Norte contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. 

Compulsando os autos, constata-se que o respectivo ente federativo requereu ao Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de Água Doce do Norte - ES a instauração do procedimento especial de jurisdição voluntária de herança jacente, em virtude do falecimento de Maria Leopoldina de Cruz, da existência de imóvel de que esta era possuidora na municipalidade e do desconhecimento da existência de herdeiros. 

O Juízo de primeiro grau, todavia, indeferiu a petição inicial, extinguindo o processo, sem resolução do mérito, porquanto não apresentadas provas mínimas a respeito do falecimento da autora da herança e dos bens por ela deixados, mesmo tendo sido intimado o requerente para emendar a exordial. 

O feito foi remetido ao Tribunal de Justiça, diante da interposição de apelação pelo postulante e da ocorrência de hipótese de remessa necessária. Na oportunidade, foi desprovido o recurso, confirmando-se, com isso, a sentença terminativa. 

O aresto está assim ementado (e-STJ, fl. 102): 

RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. DIREITO CIVIL. PROCESSO CIVIL. ARRECADAÇÃO DE HERANÇA JACENTE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ÓBITO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA CONHECIDA. SENTENÇA CONFIRMADA. I. O artigo 1.819 do CC/02, estabelece que, uma vez constatado o falecimento de particular sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância. II. Apesar de os artigos 738/743, do CPC/15, não elencarem, expressamente, a documentação exigida que deverá acompanhar o petitório exordial da arrecadação de herança jacente, deverá a parte autora observar os requisitos minimamente indispensáveis à propositura da demanda, tal como previsto nos artigos 320 e 434, do CPC/15. III. Na hipótese, após verificada a ausência de comprovação da morte de pessoa indicada como falecida e da existência de bens que constituiriam a herança, fora a municipalidade intimada, nos termos do artigo 321, do CPC/15, para suprir os vícios indicados, tendo, contudo, permanecido silente, circunstância que impõe a manutenção do comando sentencial. IV. Recurso conhecido e improvido. V. Remessa necessária conhecida. Sentença confirmada. 

Os embargos de declaração opostos pelo demandante foram rejeitados. 

Nas razões do recurso especial (e-STJ, fls. 124-133), interposto com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, o ente político recorrente aduz afronta aos arts. 321, 438, 489, § 1º, IV, 738 e 740, todos do Código de Processo Civil de 2015. 

Sustenta, em síntese, que a herança jacente, por se tratar de um procedimento de jurisdição voluntária e por conferir a lei legitimidade ao juiz para instaurá-la, inclusive, de ofício, descabe falar em extinção do processo por ausência de provas, uma vez que a própria norma impõe ao magistrado o dever de diligenciar para se obter os documentos e informações necessários ao seu regular processamento. 

Denegado o apelo especial na origem, foi interposto o correlato agravo e convertido em recurso especial. 

É o relatório. 

VOTO 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR): O propósito recursal consiste em definir se a instauração do procedimento especial de herança jacente por um ente municipal, mas sem a devida instrução com os documentos indispensáveis, ainda que desatendida a intimação para emendar a petição inicial, enseja o indeferimento da exordial e, por conseguinte, a extinção do processo sem resolução do mérito. 

Inicialmente, verifica-se que o insurgente declinou do ônus de evidenciar, nas razões do recurso especial, a forma pela qual teria se dado a suscitada ofensa ao art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015, pelo Tribunal de origem, carecendo, assim, de fundamentação adequada e suficiente no ponto, a atrair a incidência do óbice da Súmula 284 do Supremo Tribunal Federal. 

No que tange à questão de fundo, convém registrar que, no ordenamento jurídico brasileiro, ocorrendo a morte, abre-se, desde logo, a sucessão, implicando a imediata transmissão dos bens da pessoa falecida aos seus herdeiros legítimos e testamentários, conforme dispõe o art. 1.784 do CC/2002, fenômeno este comumente denominado princípio da saisine. 

Pode acontecer, contudo, de inexistir herdeiro, ser este desconhecido, ou, existindo e sendo conhecido, ter renunciado à herança ou excluído da sucessão por deserdação, dando origem, assim, à herança jacente (prevista nos arts. 1.819 a 1.823 do CC/2002) cujo procedimento – especial de jurisdição voluntária estabelecido nos arts. 738 a 743 do CPC/2015 – consiste, grosso modo, na arrecadação judicial de bens da pessoa falecida, com declaração, ao final, da herança vacante, transferindo-se o patrimônio, por conseguinte, para o domínio público, salvo se comparecer em juízo quem legitimamente os reclame. 

Maria Berenice Dias, citando Silvio de Salvo Venosa, assim define tal instituto: 

Quando a herança jaz sem dono, daí herança jacente. Os bens são coisas de ninguém, res nullius. Chama-se de jacente a herança quando não há quem dela possa legitimamente cuidar. Do falecimento do seu titular até o reconhecimento de que não existem herdeiros, há um longo percurso. É indispensável o recolhimento dos bens e a nomeação de alguém que cuide deles: um curador. Também precisam ser convocados eventuais herdeiros por meio de editais. Só depois é possível declarar que os bens estão vagos, ou seja, que a herança é vacante. (Manual das Sucessões, 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 519-520) 

A instauração desse procedimento pode ser intentada, consoante dispõem os arts. 720 e 722 do CPC/2015, por qualquer interessado, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pela Fazenda Pública, bem como pelo juiz, de ofício, nos termos da exegese do art. 738 do CPC/2015, segundo o qual, "nos casos em que a lei considere jacente a herança, o juiz em cuja comarca tiver domicílio o falecido procederá imediatamente à arrecadação dos respectivos bens" (sem grifo no original). A herança jacente excepciona, com isso, o princípio da demanda – inércia da jurisdição – positivado no art. 2º do CPC/2015. 

No mesmo sentido, confiram-se as seguintes lições doutrinárias: 

A abertura do procedimento da arrecadação da herança jacente ocorre por iniciativa do próprio juiz (art. 738). O representante do Ministério Público ou da Fazenda Pública, ou qualquer outro interessado, pode provocar a instauração do procedimento, levando ao juiz a notícia da morte de alguém que tenha deixado bens sem herdeiros conhecidos. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - vol. II. 54ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 530) O procedimento, cuja finalidade é preparar a transferência dos bens vagos para o patrimônio público, pode ser instaurado de ofício pelo juiz (da comarca do domicílio do falecido) ou mediante provocação do Ministério Público, da Fazenda Pública ou de qualquer outro interessado. (DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 20ª ed., São Paulo: Atlas, 2017, p. 959) 

Não se instaurando o processo por iniciativa do próprio juiz, leva-se o fato ensejador da sua abertura (morte de alguém que deixe bens sem a existência de herdeiros ou sucessores) ao conhecimento do magistrado através da petição inicial, observando-se os arts. 319 a 321 do CPC/2015, que definem os elementos e documentos inerentes à exordial. 

Entretanto, evidenciando-se alguma irregularidade sanável pelo julgador, impõe-se a intimação da parte autora/requerente para emendar a inicial (art. 321, caput, do CPC/2015), dirimindo o vício. Não atendida a contento a intimação, será o caso de indeferimento da petição inicial (art. 321, parágrafo único, c/c o art. 330, IV, ambos do CPC/2015), culminando na extinção do processo, sem resolução do mérito (art. 485, I, do CPC/2015). 

No entanto, no caso específico da herança jacente, a regra disposta no art. 321 do CPC/2015 comporta mitigação, de forma que, mesmo que a parte autora não supra a mácula constatada, exige-se do juiz do domicílio do autor da herança, antes da prolação da sentença terminativa, a adoção de diligências mínimas, ao menos na comarca da sua jurisdição, a fim de elucidar os fatos imprescindíveis ao regular processamento do feito, oficiando-se as repartições públicas locais, os estabelecimentos que entender pertinentes, bem como a vizinhança do domicílio do falecido. 

Isso porque a lei confere legitimidade ao próprio juiz para atuar ativamente no procedimento de herança jacente, independente de provocação, seja para iniciar o processo (art. 738 do CPC/2015), seja para instruir devidamente o feito, devendo, inclusive, diligenciar pessoalmente no lugar em que situados os bens a serem arrolados e expedir carta precatória a juízo de comarca diversa para a arrecadação dos bens nela situados. 

Eis a redação do art. 740 do CPC/2015: 

Art. 740. O juiz ordenará que o oficial de justiça, acompanhado do escrivão ou do chefe de secretaria e do curador, arrole os bens e descreva-os em auto circunstanciado. § 1º Não podendo comparecer ao local, o juiz requisitará à autoridade policial que proceda à arrecadação e ao arrolamento dos bens, com 2 (duas) testemunhas, que assistirão às diligências. § 2º Não estando ainda nomeado o curador, o juiz designará depositário e lhe entregará os bens, mediante simples termo nos autos, depois de compromissado. § 3º Durante a arrecadação, o juiz ou a autoridade policial inquirirá os moradores da casa e da vizinhança sobre a qualificação do falecido, o paradeiro de seus sucessores e a existência de outros bens, lavrando-se de tudo auto de inquirição e informação. § 4º O juiz examinará reservadamente os papéis, as cartas missivas e os livros domésticos e, verificando que não apresentam interesse, mandará empacotá-los e lacrá-los para serem assim entregues aos sucessores do falecido ou queimados quando os bens forem declarados vacantes. § 5º Se constar ao juiz a existência de bens em outra comarca, mandará expedir carta precatória a fim de serem arrecadados. [...] 

Ademais, o diploma processual em vigor, visando assegurar a efetiva prestação jurisdicional, assenta o princípio da cooperação, passando a exigir a colaboração com o Poder Judiciário não só dos sujeitos do processo, mas também de terceiros e do Poder Público, conforme interpretação sistemática dos arts. 6º, 380 e 438 do CPC/2015, assim redigidos: 

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 

Art. 380. Incumbe ao terceiro, em relação a qualquer causa: I - informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento; II - exibir coisa ou documento que esteja em seu poder. Parágrafo único. Poderá o juiz, em caso de descumprimento, determinar, além da imposição de multa, outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias. 

Art. 438. O juiz requisitará às repartições públicas, em qualquer tempo ou grau de jurisdição: I - as certidões necessárias à prova das alegações das partes; II - os procedimentos administrativos nas causas em que forem interessados a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios ou entidades da administração indireta. 

Dessume-se, nesse contexto, que a efetiva instrução e o regular processamento da herança jacente constitui um poder-dever do magistrado, o qual, tendo ciência dos fatos ensejadores à abertura desse procedimento, seja por conta própria, seja por provocação, deve proceder ativamente, adotando as medidas mínimas necessárias e cabíveis. 

Na hipótese ora em julgamento, o TJES manteve a sentença de extinção do feito, sem resolução do mérito (com fundamento nos arts. 321, parágrafo único, 330, IV, e 485, I, todos do CPC/2015), diante do indeferimento da petição inicial, porquanto não atendida pela municipalidade recorrente a intimação para a comprovação da morte de Maria Leopoldina de Cruz, com a juntada da respectiva certidão de óbito, além da comprovação da existência de bens constitutivos do acervo hereditário. 

Portanto, considerando que a abertura e a adequada instrução e processamento da herança jacente constituem um poder-dever do juiz, tão logo tome conhecimento dos fatos que justifiquem o seu início, mostra-se descabido o indeferimento da petição inicial, em virtude da inação de qualquer dos outros legitimados ativos (interessados, Ministério Público, Defensoria Pública e Fazenda Pública), sendo atribuição do magistrado a adoção de diligências mínimas para aferir a verossimilhança e consequente comprovação dos fatos que lhe foram trazidos, requisitando, sobretudo, informações a repartições públicas locais (a exemplo dos cartórios de registro de pessoas naturais e de registro de imóveis e das delegacias de polícia) e a outros estabelecimentos que reputar pertinentes (tais como hospitais), além da inquirição da vizinhança do domicílio da pessoa falecida. 

Nesse contexto, devem ser cassados o aresto hostilizado e a sentença terminativa, retornando-se o feito ao Juízo de primeiro grau para adoção de providências mínimas pertinentes, a fim de elucidar o óbito noticiado, bem como a existência de bens. 

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial, a fim de, cassando o acórdão recorrido e a sentença, determinar a devolução dos autos ao Juízo de primeiro grau para que adote as medidas necessárias e cabíveis à regular instrução e processamento da herança jacente. 

É o voto.