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19 de abril de 2021

Participação e representatividade adequada no processo coletivo: Reflexões sobre os PLs 4441/2020 e 4778/2020

Fonte: Jota

Autoria: Sofia Temer

A Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985, LACP) está mais uma vez em pauta: há dois novos projetos de lei em discussão, o PL 4778/2020, apresentado pelo deputado Marcos Pereira, e o PL 4441/2020, pelo deputado Paulo Teixeira, que visam a revogar a LACP e instituir novos regramentos para a tutela coletiva no Brasil.

No presente texto, analisaremos alguns aspectos relativos à participação e representação dos sujeitos processuais nos dois projetos de lei.[1]

O primeiro ponto digno de nota em relação ao tema diz respeito ao rol de legitimados à propositura da ação civil pública, bem como ao requisito da representatividade adequada, que passa a ser tratado expressamente nos projetos de lei, incorporando construções doutrinárias e jurisprudenciais.

Em suma, podem ajuizar a ação civil pública, de acordo com ambos os projetos, o Ministério Público, Defensoria Pública, União, estados, municípios e Distrito Federal, entidades e órgãos da administração pública direta e indireta e associações. Mas há algumas diferenças importantes e alguns pontos que merecem especial destaque:

1) O PL 4778 trata do requisito da representatividade adequada apenas no âmbito das associações, enquanto o PL 4441, a nosso ver de modo mais acertado, trata da adequação da representação em relação a todos os sujeitos. Para tanto, considera como elementos (não exaustivos) aptos a comprovar a representatividade adequada a ausência de conflitos de interesse em relação ao grupo afetado e a aderência da finalidade institucional do representante à situação litigiosa concreta e ao grupo lesado.

2) Ambos os projetos avançam no que se refere à identificação – a nosso ver também meramente exemplificativa – dos elementos que devem ser considerados quando do controle judicial (que já existe na LACP vigente, ou pelo menos deveria existir) da representatividade adequada da associação, como o tempo de atuação, o número de associados e o histórico na defesa dos direitos do grupo.

Não nos parece acertada, contudo, a opção do PL 4478 em relação à apresentação de “quadro de especialistas” como critério para aferir a representatividade adequada da associação. Tal elemento, embora possa ser útil para aferir a representatividade relacionada aos “terceiros” que intervém com finalidade informativa, como pode ocorrer com o multifacetado amicus curiae,[2] nada diz sobre a representação do grupo ou dos sujeitos afetados.

3) Ainda sobre o tema da representatividade, não está claro nos projetos se a autorização para a associação ajuizar a ação (assemblear ou estatutária) poderia ser genérica, ou se demandaria deliberação específica.

Seria preferível especificar a necessidade de deliberação específica para ajuizamento da ACP em razão e à luz de determinada situação conflituosa, o que seria mais um elemento apto a demonstrar o alinhamento dos interesses dos representantes em relação aos demais associados, ressalvada a possibilidade de obtenção de tutela provisória nos casos em que a urgência não permita a comprovação prévia sobre a autorização para propositura da ação.[3]

4) Também tratando da representatividade adequada, o PL 4441 institui um regime adequado para hipóteses em que demonstrada a inadequação da representação: viabilizar a sucessão processual, através da atuação do magistrado para cientificação de outros possíveis legitimados para conduzir o processo (atuação essa que é reforçada também nos casos de abandono ou desistência infundada).

Embora o PL 4778 também mencione que o Ministério Público ou outro legitimado possa assumir a titularidade ativa em tais hipóteses, a sucessão, ao que parece do texto projetado, não seria provocada por ato do magistrado, dependendo da ciência “espontânea” e do ato voluntário dos possíveis legitimados, o que, como sabemos, é uma solução pela metade.

5) Igualmente relevante é a previsão da possibilidade de nomeação de representantes adequados “por grupo”, constante do PL 4441, em linha com o reconhecimento da multipolaridade e a diversidade de interesses e perspectivas inerentes aos processos coletivos.

6) O PL 4778 dispõe ainda sobre a atuação do Ministério Público para buscar a dissolução da associação que atue sem representatividade adequada. A previsão, no entanto, parece-nos fora de contexto. Afinal, a dissolução poderá ser buscada se houver desvio de finalidade, não quando não estiver preenchido o requisito da representatividade adequada. Mesclar os conceitos não parece uma boa ideia.

Outro aspecto relevante a respeito dos projetos de lei diz respeito ao tratamento dos entes organizados sem personalidade jurídica.[4] Novamente, há pontos de destaque:

1) O PL 4441 e o PL 4778 não repetem, a nosso ver acertadamente, a exigência de que a associação “esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil” (art. 5º, V, “a”, LACP vigente). Tal constatação, aliada ao art. 75, IX, do CPC, que enuncia que “serão representados em juízo, ativa e passivamente: IX – a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens”, revela a capacidade jurídica de não-pessoas e a autorização para a presença de agrupamentos sociais e associações de fato em juízo – inclusive no processo coletivo.

A conclusão (geral) é reforçada por disposições (específicas) constantes de ambos os projetos: o PL 4778 confere legitimidade entidades e órgãos da administração pública “ainda que sem personalidade jurídica”, e, de modo ainda mais relevante, o PL 4441 consagra a legitimação das “comunidades indígenas ou quilombolas, para a defesa em juízo dos direitos dos respectivos grupos”, na linha do art. 232 da CRFB.

No que se refere às intervenções de terceiros e à integração de outros sujeitos à relação processual, há também avanços em ambos os projetos de lei, bem como diferenças relevantes entre os textos:

2) Ambos os PLs repetem já consagrada (e criticada) separação entre ingresso ulterior de litisconsortes e intervenção de assistentes litisconsorciais. O PL 4778 prevê uma etapa inicial de convocação de outros legitimados, “com possibilidade de aditar o pedido e/ou causa de pedir”, esclarecendo, logo em seguida, que os legitimados que não figurarem como litisconsortes poderão intervir como assistentes litisconsorciais, “não lhes sendo possível alterar o pedido ou a causa de pedir”. O PL 4441 prevê o litisconsórcio entre colegitimados e a intervenção do colegitimado como assistente litisconsorcial.

Já tivemos a oportunidade de defender a extinção da categoria do assistente litisconsorcial e a simples aceitação do ingresso ulterior do litisconsorte, na linha de robusta doutrina.[5] Parece-nos que também a LACP poderia se beneficiar de tal simplificação, admitindo o ingresso de litisconsortes ao longo do procedimento, em quaisquer posições (de novo, a necessária multipolarização) e segregando o regime específico sobre modificações objetivas e seus limites temporais – que devem valer, é preciso destacar, para litisconsortes originários e ulteriores.

2) A respeito da integração agências reguladoras à ação civil pública, parece-nos que o PL 4441 traz regramento mais adequado, ao prever que a agência, órgão ou ente será necessariamente citado para, “querendo, intervir no processo, quando a decisão interferir em área por ele regulada”.

O PL 4778, por sua vez, prevê que a agência reguladora será citada como litisconsorte necessária se for “diretamente atingida pela sentença” (art. 12), e que, será “necessariamente intimada (…) quando a decisão interferir em área por ela regulada. A primeira norma é desnecessária, contudo, eis que, sendo diretamente atingida pela sentença (por exemplo para invalidação de um de seus atos) figurará como litisconsorte, como qualquer outro sujeito. A propósito, a segunda norma deveria tratar de citação e não intimação, considerando a ressignificação do conceito de citação constante do art. 238 do CPC/2015, que passa a ser ato para integrar a relação processual (de novo, a multipolaridade).

3) O PL 4441 também avança no que se refere ao regramento de atuação e intervenção de terceiros, prevendo um regime que preza pelo incremento da participação, com menção expressa, em reforço, às modalidades interventivas previstas no CPC, e destaque ao papel do amicus curiae, também referido no PL 4778. O PL 4441 prevê também de forma expressa atuação do amicus na produção antecipada de prova (art. 20, §1º), o que não afasta outras modalidades de intervenção e atuação na produção antecipada, inclusive as atípicas ou inominadas (art. 18).[6]

4) Mais alguns aspectos dignos de nota no PL 4441: o projeto institui uma cláusula geral de intervenções atípicas ou inominadas, reconhecendo a possibilidade de atuações despolarizadas, móveis ou dinâmicas (art. 18, §§6º e 7º), sempre que demonstrado “interesse relevante” e “utilidade da atuação”, o que é crucial, sobretudo no cenário de complexidade e diversidade próprio nos processos coletivos.[7]

A multiplicidade de interesses que levam os sujeitos ao Judiciário – por exemplo, buscando a formação de precedente favorável, visando a resguardar interesse econômico ou assegurar a consistência prática de direito e a proteger interesses alheios – não pode ser desconsiderada no regramento sobre participação, que não se limita ao ingresso fundado em interesse “jurídico” e às modalidades interventivas nominadas.[8]

A possibilidade de ingresso do terceiro (provocada ou espontânea, como se vê da leitura do PL 4441) deverá ser avaliada no caso concreto, à luz do interesse e da finalidade pretendida pela atuação e do contexto do processo coletivo, em interlocução com os demais sujeitos processuais.

Os poderes do interveniente atípico também deverão ser avaliados de acordo com tais circunstâncias e fixados pelo magistrado no momento de ingresso, precisamente como já prevê o CPC/2015 para o amicus curiae (art. 138, §2º).

A cláusula geral de intervenções do PL 4441 é relevante também porque conversa com o regramento aos “membros do grupo”. Embora, no PL 4441, os membros do grupo não possam ser admitidos como assistentes, será permitida sua participação sempre que presentes os requisitos do art. 18, §§6º e 7º.

A solução contempla um equilíbrio entre o direito de participar do processo e a análise sobre necessidade e utilidade da participação, considerando a contribuição do sujeito para o debate. Não há, portanto, vedação ao ingresso e participação do membro do grupo, que também pode participar em audiências públicas (previstas em ambos os PLs) e outros meios de atuação direta.

5) Por fim, o PL 4441 reconhece a importante atuação da Defensoria como custos vulnerabilis, em atuação autônoma e similar à do Ministério Público, embora ainda possa avançar mais, reconhecendo que a vulnerabilidade que demanda a atuação do órgão vai além da vulnerabilidade econômica.[9]

Há diversos outros aspectos relevantes nos PLs 4441 e 4478. Nosso sistema poderia se beneficiar da análise conjunta e da incorporação dos pontos positivos das propostas, buscando harmonizá-las. A íntegra dos projetos pode ser consultada aqui e aqui.


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[1] Para análise a respeito de outros aspectos dos PLs, sugerimos a leitura dos textos: PASCHOAL, Thais Amoroso. Enfim, a tutela coletiva pensada coletivamente: o PL 4441/2020 e a produção antecipada coletiva da prova orientada pela adequada representação. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/enfim-a-tutela-coletiva-pensada-coletivamente-29102020>; GODINHO, Robson Renault. Considerações sobre o inquérito civil no Projeto de Lei nº 4441/20. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-08/godinho-inquerito-civil-projeto-lei-444120>; LORDELO, João Paulo. A certificação coletiva nos projetos de nova Lei de Ação Civil Pública. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jan-04/lordelo-certificacao-coletiva-lei-acao-civil-publica>; LEONEL, Ricardo de Barros. Processo coletivo: preocupações legislativas. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-30/ricardo-leonel-processo-coletivo-preocupacoes-legislativas>; OSNA, Gustavo, et al. Primeiras impressões dos recentes projetos de ação coletiva (partes I e II). Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-coletiva-primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-09112020> e <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-de-acao-coletiva-parte-ii-19112020>; GIDI, Antonio. O projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública. Avanços, inutilidades, imprecisões e retrocessos. Civil Procedure Review, v. 12, nº 1, jan-abr.2021.

[2] TEMER, Sofia. Participação no processo civil: repensando litisconsórcio, intervenção de terceiros e outras modalidades de atuação. Salvador: Juspodivm, 2020.

[3] A propósito, parece-nos desacertada a opção do PL 4778 de vedar a tutela provisória antes do reconhecimento judicial da representatividade da associação.

[4] A respeito do tema, v.: UZEDA, Carolina; PANTOJA, Fernanda; KOHLBACH, Marcela; TEMER, Sofia. Grupos organizados e associações de fato no processo coletivo. Disponível em:  <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/grupos-organizados-e-associacoes-de-fato-no-processo-coletivo-01042021>.

[5] TEMER, Sofia. Participação no processo civil: repensando litisconsórcio, intervenção de terceiros e outras modalidades de atuação. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 53-58 e 155-166.

[6] Nesse sentido: “Também deverá ser ofertada a participação de qualquer legitimado que represente adequadamente outros grupos que tenham interesse na prova, autorização que se extrai da aplicação do art. 18” (PASCHOAL, Thais Amoroso. Enfim, a tutela coletiva pensada coletivamente: o PL 4441/2020 e a produção antecipada coletiva da prova orientada pela adequada representação. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/enfim-a-tutela-coletiva-pensada-coletivamente-29102020>).

[7] MARÇAL, Felipe Barreto. Participação e intervenção no processo coletivo: os avanços do PL 4441/2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-13/marcal-participacao-intervencao-processo-coletivo>.

[8] TEMER, Sofia. Participação no processo civil: repensando litisconsórcio, intervenção de terceiros e outras modalidades de atuação. Salvador: Juspodivm, 2020.

[9] ROCHA, Jorge Bheron. O projeto de Lei 4.441/2020 da ação civil pública e o custos vulnerabilis. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-05/jorge-rocha-pl-44412020-custos-vulnerabilis>.