O ENVIO NÃO SOLICITADO DE CARTÃO DE
CRÉDITO E A SÚMULA 532 DO STJ: REALMENTE UMA PRÁTICA ABUSIVA?
The unsolicited sending of credit card and the Precedent 532 of
the STJ: really an abusive practice?
Revista de Direito Privado | vol. 82/2017 | p. 137 - 150 | Out / 2017
DTR\2017\6350
_____________________________________________________________________________________
Daniel
Henrique Rennó Kisteumacher
Mestre em
Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Professor Universitário.
Advogado. danrenno@hotmail.com
Área
do Direito: Civil;
Consumidor
Resumo:
O envio de cartões de crédito sem
solicitação para destinatários que constem em cadastros de mala direta sempre
foi uma prática comum por parte das operadoras dos cartões de crédito. Não só
uma propaganda, o envio desses cartões é verdadeiramente uma estratégia de
marketing. Porém, no dia 03.06.2015, a Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça aprovou a Súmula 532, a qual consolida a tendência jurisprudencial de
que o envio de cartão não solicitado pelo consumidor representa prática abusiva
vedada pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, a fim de analisar os motivos
e repercussões deste novo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, o
presente artigo irá discutir se o envio de um cartão bloqueado efetivamente
constitui prática abusiva ou pode ser conceituado como proposta contratual.
Palavras-chave:
Cartão de crédito - Envio não solicitado - Nova Súmula 532 STJ -
Prática abusiva
Abstract:
The sending of unsolicited credit
cards for recipients that appear in direct mail records has always been a
common practice by operators of credit cards. Not only an advertisement,
sending these cards is truly a marketing strategy. However, on 03.06.2015, the
Special Court of the Superior Court of Justice approved the Precedent no. 532,
which consolidates the jurisprudential tendency that sending unsolicited by the
consumer card is abusive practice prohibited by the Consumer Protection Code.
So in order to analyze the reasons and consequences of this new positioning of
the Superior Court, this article will discuss whether sending a locked card
effectively constitutes abuse or should be conceptualized as a contractual
proposal.
Keywords:
Credit card - Unsolicited sending - New Precedent 532 STJ - Abusive
practice
Sumário:
1Introdução -
2O contrato de cartão de crédito - 3O envio de cartão não solicitado: prática
abusiva? - 4O surgimento da Súmula 532 do STJ - 5Análise crítica - 6Referências
1
Introdução
No dia
03.06.2015, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a
Súmula 532, estabelecendo que o envio de cartão de crédito sem prévia e
expressa solicitação pelo destinatário constitui prática abusiva e ato ilícito
indenizável, sujeito à aplicação de multa administrativa, in verbis:
Súmula 532.
Constitui prática comercial abusiva o envio de cartão de crédito sem prévia e
expressa solicitação do consumidor, configurando-se ato ilícito indenizável e
sujeito à aplicação de multa administrativa.
Embora não
possua caráter vinculante, essa nova súmula consolida uma tendência
jurisprudencial do próprio STJ, no sentido de que o envio de cartão não
solicitado pelo consumidor representa prática abusiva vedada pelo Código de
Defesa do Consumidor e não um simples convite da operadora para a pessoa se
tornar cliente.
Ou seja,
consolidou-se a interpretação de que o envio do cartão não é uma mera proposta
de contrato que só se aperfeiçoaria se houvesse manifesto ato de aceitação pelo
destinatário, mas sim uma prática que deve ser coibida e punida, seja
administrativamente, seja em razão de possíveis danos gerados, pois agride a
intimidade do consumidor.
Não há dúvidas
de que muitas vezes as operadoras de cartões de crédito excedem o razoável na
realização de sua empresa, muitas vezes utilizando mecanismos de propaganda e
praticando atos de divulgação que invadem a privacidade das pessoas a ponto de
gerar transtornos e aborrecimentos.
Porém, será
que o envio de um cartão bloqueado para destinatários que constem em cadastros
de mala direta efetivamente constitui uma dessas práticas a ser punida ou pode
ser conceituado como uma proposta contratual, sem caráter vinculante?
Ora, se o
cartão está bloqueado e o destinatário não o aceita ou o utiliza,
inutilizando-o ou até mesmo guardando-o, pode-se falar em um efetivo produto ou
serviço prestado pela operadora? Se não há um efetivo produto ou serviço antes
do desbloqueio, não seria mais correto juridicamente considerar o envio do
cartão como uma proposta de contrato, subordinada a uma declaração receptícia
de vontade do interessado?
Não é
suficiente apresentar belas e longas citações sobre os preceitos do Código de
Defesa do Consumidor, especialmente a vulnerabilidade do consumidor ou a
necessidade de coibir práticas abusivas por parte dos fornecedores, citando
ensinamentos de doutrinadores consagrados, mas sim explicar de forma completa e
integrada com o caso concreto o motivo pelo qual o envio de um cartão bloqueado
consegue interferir de forma relevante na vida do destinatário, positiva ou
negativamente, bem como se isso é uma prática que merece repressão e punição.
Dentro dessa
proposta, o presente artigo buscará, mesmo que não esgotando o tema, apresentar
alguns conceitos e premissas básicas sobre o contrato de cartão de crédito e se
o envio não solicitado deste pode ser considerado uma prática abusiva ou se
enquadra nas características de uma verdadeira proposta contratual.
Oportuno
deixar claro que o presente trabalho irá tratar a figura do “consumidor” a
partir de uma vertente “maximalista”, interpretando de forma ampla e mais
abrangente possível o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor,1
no sentido de que o destinatário final do produto ou serviço é aquele que o
retira do mercado e o utiliza, pouco importando se para consumi-lo (suprindo
uma necessidade ou satisfação própria) ou reutilizá-lo (reingresso no processo
produtivo).
2
O contrato de cartão de crédito
Atualmente,
não há mais dúvidas de que os cartões de crédito são efetivamente uma forma de
adimplemento de obrigações, utilizados largamente na atual sociedade de
consumo, na qual a facilitação das trocas tornou-se objetivo precípuo da
tecnologia. O cheque e o próprio dinheiro em espécie abrem espaço para os
cartões de crédito.
A própria
ameaça de furtos e roubos, bem como fraudes, como a emissão de cheques falsos
ou roubados, além de uma possível ausência de fundos em conta corrente para
pagamento do título, fizeram o dinheiro e cheque cair em desuso. É cada vez
mais difícil achar uma pessoa que ande com grandes quantias de dinheiro no
bolso ou utilize cheques para suas transações.2
Segundo Nelson
Abrão, o cartão de crédito é “um documento comprobatório de que seu titular
goza de um crédito determinado perante certa instituição financeira, o qual o
credencia a efetuar compras de bens e serviços a prazo e saques de dinheiro a
título de mútuo”.3
Para Thiago
Cardoso Ferreira Neves, sintetizando as opiniões de Paulo Maximilian, Waldirio
Bulgarelli e Waldo Fazzio, o cartão de crédito não é propriamente um documento,
nem mesmo um simples cartão plástico, mas, verdadeiramente:
(...) [um]
sistema formado por uma rede de contratos, envolvendo diversas relações
jurídicas entre diversos sujeitos, como as administradoras de cartões de
crédito, as bandeiras, as credenciadoras, os fornecedores de produtos e
serviços, os titulares dos cartões, bem como outras pessoas que integram essa
complexa relação.4
O conceito
anterior revela a importância jurídica dos cartões de crédito, os quais
enfeixam relações autônomas, independentes e simultâneas, sempre de forma
complexa, envolvendo vários atores contratuais que não necessariamente têm
ligação entre si, mas atuam dentro de uma rede complexa, viabilizando o
funcionamento de todo o sistema (rede contratual). São eles: o titular do
cartão, o emissor do cartão de crédito e o fornecedor de produtos e serviços.
A emissora do
cartão de crédito é uma empresa que se compromete a conceder um crédito ao
titular do cartão para utilização em estabelecimentos previamente vinculados de
fornecedores de produtos e serviços, seja ou não uma instituição financeira. Em
outros termos, é ela quem permite ao titular do cartão utilizar o “dinheiro
plástico” para a aquisição, junto ao fornecedor, de produtos e serviços de seu
interesse.
É ela, pois,
quem intermedeia o crédito concedido ao titular e utilizado para aquisição de
bens ou serviços de determinado fornecedor, obviamente cobrando por isso,
normalmente uma taxa percentual do fornecedor sobre cada pagamento realizado e
também uma taxa anual de manutenção por parte do usuário do cartão.
Parece óbvio
que quanto mais pessoas vinculadas ao sistema gerido pela operadora, maior seu
lucro e maior seu poder de barganha perante os fornecedores em geral, os quais
terão a necessidade de aderir ao seu sistema para atender a um número maior de
consumidores e aumentar a abrangência do seu empreendimento.
Para que isso
seja possível, as operadoras têm de divulgar o seu produto e serviço. Qual
seria uma forma legítima de divulgação? Não se percebe muitas propagandas na
televisão sobre cartões de crédito.
O envio de
cartões bloqueados funcionaria, então, como uma propaganda e até mesmo
estratégia de marketing, na qual as operadoras divulgariam o seu produto
e marca para um número indiscriminado de possíveis clientes, normalmente
cadastrados em sistemas de mala direta, a fim de estreitar a relação e oferecer
um contrato a pessoas que jamais procurariam essa determinada operadora para
formalizar um pedido de concessão de cartão de crédito.
3
O envio de cartão não solicitado: prática abusiva?
É unânime na
doutrina e jurisprudência nacional a necessidade de observância de proteção aos
consumidores, parte vulnerável na relação de consumo, como forma de equilibrar
a relação e evitar imposições abusivas por parte do fornecedor. Trata-se de
questão incontroversa que há muito foi sedimentada não só pela jurisprudência,
mas também pela totalidade da doutrina. Quanto a isso, não há divergências.
Nesse sentido,
Cláudio Bonatto expõe que “as regras de proteção e de defesa do consumidor
surgiram, basicamente, da necessidade de obtenção de igualdade entre aqueles
que eram naturalmente desiguais”.5
Luiz Antonio
Rizzatto Nunes,6 no mesmo sentido, ressalta que:
(...) o
consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa
fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica
e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo
conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção
não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a
fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas
também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que,
quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê
daquilo que é produzido.
Dentro desse
viés, o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor apresenta uma série de
situações consolidadas como práticas abusivas, tais como condicionar o
fornecimento de produto ou serviço a uma contratação de outro produto ou
serviço (venda casada), recusar atendimento às demandas dos consumidores na
exata medida de suas disponibilidades de estoque e até mesmo enviar ou entregar
ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer
serviço.
Apoiado na
interpretação literal desse artigo, o STJ, por diversas vezes, consagrou que
efetivamente o envio do cartão de crédito, sem pedido pretérito e expresso do
consumidor, independentemente do cartão estar ou não bloqueado, é prática
abusiva que fere a boa-fé objetiva na fase pré-contratual.
Nesse sentido,
citam-se duas jurisprudências do STJ que sintetizam o entendimento consagrado
em vários outros julgamentos:
Administrativo.
Processual civil. Violação ao art. 535 do CPC (LGL\2015\1656). Inocorrência.
Multa imposta pelo PROCON. Envio de cartão com função crédito sem que tenha
sido solicitada pelo consumidor. Art. 39, inciso III, do CDC (LGL\1990\40).
Conduta abusiva. Multa. Fundamentação. Incidência da Súmula 7
(MIX\2010\1261)/STJ.
(...) 3. O
art. 39, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor veda a prática de enviar
ao consumidor produtos ou serviços não requeridos por ele. Nesse ponto, cai por
terra a alegação da parte recorrente de que o cartão enviado estaria com a
função crédito inativada, pois tal argumento é irrelevante para o deslinde da
controvérsia. Isso porque, pelo o que consta do acórdão impugnado, o pedido da
consumidora se restringiu a um cartão de débito, tão somente, não havendo
registro de que tenha havido qualquer manifestação de vontade por parte dela
quanto ao cartão múltiplo.
4. Há a
abusividade da conduta com o simples envio do cartão de crédito, sem pedido
pretérito e expresso do consumidor, independentemente da múltipla função e do
bloqueio da função crédito, pois tutelam-se os interesses dos consumidores em
fase pré-contratual, evitando a ocorrência de abuso de direito na atuação dos
fornecedores na relação consumerista com esse tipo de prática comercial,
absolutamente contrária à boa-fé objetiva. Precedentes: REsp 1199117/SP, Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira turma, julgado em 18.12.2012, DJe
04.03.2013; AgRg no AREsp 152.596/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira
Turma, julgado em 15.05.2012, DJe 28.05.2012. (REsp 1.261.513/SP, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 27.08.2013, DJe 04.09.2013).
O autor Thiago
Cardoso Ferreira Neves, citado em vários trechos alhures expostos, também
entende da mesma forma, no sentido de que é um absurdo enviar um cartão de
crédito sem prévia solicitação do consumidor. Segundo ele, “tal conduta põe em
risco o consumidor, especialmente porque há a possibilidade de extravio da
correspondência e, consequentemente, do cartão, que pode sujeita-lo à condição
de vítima em uma fraude por utilização indevida do plástico”.7
Não obstante,
as operadoras sempre defenderam a ideia de que esses envios não passavam de
mera tentativa de incentivo à utilização do cartão de crédito, sendo que o seu
envio para o domicílio do eventual titular constituía forma lícita de
propaganda e marketing, plenamente possível nos dias atuais.
O Juiz Sérgio
Castro da Cunha Peixoto, do Juizado Especial das Relações de Consumo de Belo
Horizonte, no julgamento do Processo 9042032.98.2013.813.0024, movido por uma
consumidora que não havia solicitado o cartão de crédito contra uma operadora
específica, julgou improcedente a ação e rejeitou os pedidos de indenização
porque “as tentativas de incentivo à autora de utilização do serviço constituem
uma forma lícita de marketing, não caracterizando defeito do serviço”. A
consumidora não recorreu e o processo foi arquivado no dia 18.09.2013.
Curioso notar
que, nesse julgamento e em vários outros casos, a defesa das operadoras não
utilizam a tese de que se trata de uma proposta de contrato, explicando a
presença de um proponente, oblato ou inexistência de produtos ou serviço,
cingindo-se em reiterar que se trata de uma atitude comercial lícita, entrando
no campo da publicidade, como se o envio fosse uma forma de propaganda de
produtos tal como qualquer outra (panfletagem, telefonemas, e-mails com
ofertas de lojas etc.).
Não obstante,
analisando a situação sob o prisma das operadoras de cartões, poderia esse
envio se enquadrar no conceito jurídico de proposta para criação de um
contrato, o que afastaria a ideia da existência prévia de um produto ou serviço
antes do desbloqueio do cartão? Ou a melhor defesa seria realmente reiterar a
licitude dessa prática comercial como simples forma de divulgação de produtos e
serviços?
A manifestação
da vontade é base da existência do negócio jurídico. A vontade humana e sua
consequente manifestação (expressa, tácita ou presumida) é que permitem às
partes estabelecer relações negociais, observando sempre os princípios
contratuais, especialmente os de probidade e boa-fé (artigos 421 e 422 do
Código Civil (LGL\2002\400)).
O contrato só
surgirá efetivamente após conjugação de um acordo de vontades no intuito de
criar, modificar ou extinguir direitos, constituindo o mais expressivo modelo
de negócio jurídico bilateral.8
Como bem
elucidam alguns autores, em especial Enzo Roppo,9 a formação de um contrato
é como um processo, ou seja, a existência do contrato está subordinada a
uma sequência de comportamentos humanos que se complementam: uma determinada
proposta daquilo que se oferta e uma posterior aceitação por parte do eventual
interessado.
Segundo Nelson
Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias:
(...) a
proposta, oferta ou policitação, é a declaração receptícia – pois para produzir
efeitos tem de alcançar o destinatário –, pela qual alguém (policitante,
proponente, solicitante) efetivamente dirige a vontade declarada a outrem
(aceitante, policitado, oblato), pretendendo celebrar um contrato.10
E continuam:
Isoladamente
observadas, a proposta e a aceitação são negócios jurídicos unilaterais.
Independente do nascimento do contrato, ambos possuem juridicidade, validade e
aptidão para a produção de efeitos próprios, sendo o mais importante destes,
como veremos, a vinculatividade. Porém, com a adesão da aceitação à oferta,
surge um terceiro negócio jurídico, o negócio bilateral, hábil a realizar outra
classe de efeitos, àqueles que se relacionam ao cumprimento da obrigação que
acaba de ser constituída.
É, pois, na
proposta que ficará consignada a intenção da parte em formalizar um determinado
e visado negócio jurídico, dependendo única e exclusivamente da aceitação pelo
interessado e não mais de estudos ou discussões prévias.
Óbvio que nem
toda manifestação unilateral no sentido de formalizar um determinado e visado
negócio jurídico pode ser considerada como “proposta de contrato” em sentido
jurídico, já que para assim ser, ela deve ser clara, completa e inequívoca,
contendo todos os elementos essenciais do negócio proposto.
O doutrinador
Carlos Roberto Gonçalves11 sintetiza essa necessidade:
A proposta
deve conter todos os elementos essenciais do negócio proposto, como preço,
quantidade, tempo e entrega, forma de pagamento etc. Deve também ser séria e
consciente, pois vincula o proponente (CC, art. 427). Deve ser, ainda,
clara, completa e inequívoca, ou seja, há de ser formulada em linguagem
simples, compreensível ao oblato, mencionando todos os elementos e dados do
negócio jurídico necessários ao esclarecimento do destinatário e representando
a vontade inquestionável do proponente.
Exemplificando,
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias12 apresentam hipótese
interessante, pois, segundo eles, se houver uma proposta de compra e venda na
qual se omita o preço, ela não geraria contrato em caso de aceitação do
interessado, não passando de um mero convite para uma possível e futura
proposta de contrato, já que falta indicação de um dos elementos essenciais da
compra e venda: o preço.
No caso do
cartão de crédito, é juridicamente possível qualificar o envio do cartão
bloqueado como uma proposta que contenha todos os elementos essenciais do
negócio? O simples recebimento do cartão com as instruções de como proceder
seriam suficientes para caracterizar o envio como uma proposta jurídica?
4
O surgimento da Súmula 532 do STJ
Como exposto
no começo desse trabalho, a Súmula 532 estabelece que o envio de cartão de
crédito sem prévia e expressa solicitação pelo destinatário constitui prática
abusiva e ato ilícito indenizável, sujeito à aplicação de multa administrativa.
O referido entendimento sumulado teve como parâmetro precedentes do próprio
STJ, bem como exegese constitucional dos artigos 153, 163 e 164 da Lei
8.112/90.
São alguns dos
importantes precedentes: REsp 1.261.513/SP, relator Mauro Campbell Marques,
Segunda Turma, julgado em 27.08.2013, Dje 04.09.2013; REsp 1.297.676/SP
Relatora Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 27.08.2013, DJe 04.09.2013.
No julgamento
do primeiro caso paradigma citado anteriormente, especificamente o Recurso
Especial 1.261.513/SP, cujo relator foi o Ministro Mauro Campbell Marques, a
Segunda Turma manteve a multa aplicada pelo PROCON após ter constatado que uma
consumidora recebeu um cartão com a função crédito de forma não solicitada. A
multa aplicada e mantida pelo STJ foi de R$ 158.240,00 (cento e cinquenta e
oito mil, duzentos e quarenta reais).
Segundo consta
no acórdão do julgamento, a consumidora havia solicitado um cartão de débito,
mas recebeu um cartão múltiplo, ou seja, contendo a função crédito. Apesar de o
Banco ter alegado que a função crédito estava bloqueada e tal conduta não
representava qualquer abusividade a não ser uma política publicitária, o
Ministro Relator proferiu seu voto no sentido de que deveria ser “reconhecida a
abusividade da conduta com o simples envio do cartão de crédito, sem pedido
pretérito e expresso do consumidor, independentemente da múltipla função e do
bloqueio da função crédito”.
Segue a ementa
desse acórdão:
[...] a
conduta constatada diz respeito ao fato de a parte recorrente ter enviado um
“cartão de crédito múltiplo, sem que tivesse havido solicitação a parte do
consumidor”. [...] 3. O art. 39, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor
veda a prática de enviar ao consumidor produtos ou serviços não requeridos por
ele. Nesse ponto, cai por terra a alegação da parte recorrente de que o cartão
enviado estaria com a função crédito inativada, pois tal argumento é
irrelevante para o deslinde da controvérsia. Isso porque, pelo o que consta do
acórdão impugnado, o pedido da consumidora se restringiu a um cartão de débito,
tão somente, não havendo registro de que tenha havido qualquer manifestação de
vontade por parte dela quanto ao cartão múltiplo. 4. Há a abusividade da
conduta com o simples e vio do cartão de crédito, sem pedido pretérito e
expresso do consumidor, independentemente da múltipla função e do bloqueio da
função crédito, pois tutelam-se os interesses dos consumidores em fase
pré-contratual, evitando a ocorrência de abuso de direito na atuação dos
fornecedores na relação consumerista com esse tipo de prática comercial,
absolutamente contrária à boa-fé objetiva. [...] (REsp 1.261.513-SP, rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 27.08.2013, DJe
04.09.2013).
Ou seja,
percebe-se que, mesmo sem qualquer constatação de dano à consumidora, tal como
um desbloqueio sem autorização ou cobranças indevidas, o simples envio por si
só já configurou uma prática que foi punida administrativamente.
Não foi
diferente nos demais julgados paradigmas. Em todos eles, os julgamentos foram
no sentido de que o envio de cartão de crédito sem prévia solicitação constitui
prática comercial a ser, por si só, repudiada, não podendo ser considerada como
mera propaganda, independentemente se houve ou não um dano moral indenizável,
pois administrativamente essa conduta deve ser penalizada.
Nesse sentido:
[...] o envio
de cartão de crédito, sem prévia solicitação, é prática comercial a ser por si
só repudiada, não podendo ser considerada como mera propaganda agressiva.
Ademais, vetar tal procedimento é o modo de amparar e proteger o consumidor de
reais consequências danosas que acarreta, diga-se, de modo reiterado, como o
constrangimento de receber a cobrança de despesas não realizadas, anuidades,
seguros e o envio do nome daquele a banco de dados de inadimplentes. É por isso
que não há como adotar o entendimento de que somente haverá violação ao artigo
39, III, do CPC (LGL\2015\1656) quando o hipossuficiente da relação de consumo
tiver passado por uma destas tormentosas situações [...] (REsp 1.297.675-SP,
rel. Ministra Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 27.08.2013, DJe
04.09.2013).
A nova súmula
analisada foi consubstanciada nos referidos entendimentos e passou a integrar o
ordenamento jurídico em meados de 2015, orientando vários julgamentos
posteriores. Tanto é assim que diversas análises por parte do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais (TJMG) sobre casos similares foram lastreadas pelo
referido entendimento sumulado, podendo-se citar, a título de exemplo, o
julgamento da Apelação Cível 1.0145.13.069798-3/001, cujo relator foi o
Desembargador Pedro Bernardes, recentemente julgado (17.11.2015) e publicado no
mês de dezembro de 2015 (11/12):
Ementa:
apelação cível. Ação de indenização por danos morais e materiais. Envio de
cartão de crédito não solicitado. Prática abusiva. Danos morais. Configuração.
Cobrança de anuidade. Súmula 532 (MIX\2015\1611)/STJ. Privacidade e intimidade.
Violação. Quantum indenizatório. Fixação moderada.
– Conforme
disposição da Súmula 532 (MIX\2015\1611)/STJ, "constitui prática comercial
abusiva o envio de cartão de crédito sem prévia e expressa solicitação do
consumidor, configurando-se ato ilícito indenizável e sujeito à aplicação de
multa administrativa".
– O envio de
cartão de crédito não solicitado constitui violação ao princípio da boa-fé
objetiva e à privacidade e intimidade do cliente, que desarmoniza a relação de
consumo implicando a inobservância da proteção do consumidor.
– Na fixação
do quantum indenizatório devem ser observados os critérios da extensão
do dano, da condição econômica dos envolvidos, da natureza da ofensa, do grau
de culpabilidade do ofensor, da necessidade de punição como medida profilática,
bem como do princípio da proporcionalidade e razoabilidade, sem que isso
configure enriquecimento sem causa do ofendido.
Percebe-se,
então, que a súmula não só consolidou reiterados entendimentos do STJ, mas vem
sendo seguida e utilizada pelos Tribunais da República, deixando extremamente
claro que o simples envio, por si só, não é proposta de contrato ou propaganda
agressiva. É uma conduta abusiva passível de multa administrativa, não
afastando a possibilidade de configuração de um ato ilícito passível de
indenização, dependendo do caso.
5
Análise crítica
Embora as
determinações contidas nas súmulas editadas pelo STJ não possuam um caráter
cogente ou obrigatório às instâncias inferiores, não há dúvidas de sua
importância como diretrizes ao intérprete na análise dos casos, tanto que os
Tribunais da República costumam segui-las na maioria dos julgamentos.
A Súmula 532
(MIX\2015\1611) do STJ consolida uma tendência jurisprudencial no sentido de
que o envio de cartão não solicitado pelo consumidor representa prática abusiva
vedada pelo artigo 39, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, e não um
simples convite da operadora para a pessoa se tornar cliente, muito menos uma
proposta de contrato.
Ou seja,
consolida-se uma interpretação de que o envio do cartão é uma prática que deve
ser coibida e punida, validando a imposição de multas administrativas aplicadas
por diversos órgãos de defesa do consumidor, já que esse tipo de envio viola a
privacidade e intimidade da pessoa, desarmoniza a relação de consumo e implica
a inobservância da proteção do consumidor.
Não se tem
dúvidas acerca da necessidade de sempre buscar meios de proteção ao consumidor
e, consequentemente, equilibrar a relação de consumo. Quanto a isso, não há
divergências doutrinárias ou jurisprudenciais.
Também não há
dúvidas de que o envio do nome do consumidor aos cadastros de restrição ao
crédito de forma indevida configura ato ilícito passível de indenização,
devendo as operadoras responder civilmente em casos de negativações por débitos
gerados por cartões não desbloqueados, erros nas faturas etc. Muitas vezes as
operadoras de cartões de crédito excedem o razoável e erram na condução dos
seus negócios, o que com certeza deve ser punido.
Porém, não
parece razoável afirmar que o simples envio não solicitado de um cartão
bloqueado para destinatários que constem em cadastros de mala direta, sem
qualquer outra postura que gere um dano ou constrangimento, constitui uma
prática abusiva a ser punida.
Respondendo às
indagações propostas no decorrer do trabalho, é sim juridicamente possível
qualificar o envio do cartão bloqueado como uma proposta para contratar que
contenha todos os elementos essenciais do negócio, já que o recebimento do
cartão com as instruções de como proceder são suficientes para caracterizar o
envio como uma proposta jurídica.
O mundo
negocial é outro. A declaração unilateral de vontade conhecida como proposta
pode e deve adotar formas mais dinâmicas de apresentação, nada impedindo que
seja o envio de um cartão que simboliza a aderência a um produto ou serviço.
Aliás, perceba
que não existe um produto ou serviço antes do desbloqueio do cartão. O
consumidor só terá, efetivamente, um produto e serviço se entrar em contato com
a operadora, efetuar o desbloqueio do cartão e anuir com as regras tarifárias e
operacionais que lhe são apresentadas e normalmente estão disponíveis no site
da operadora.
Se não existe
produto ou serviço antes do desbloqueio, não há uma prática abusiva, pois a
operadora apenas está oferecendo a eventual contratação e não o produto ou
serviço em si. Há, pois, a necessidade de uma revisão interpretativa dos termos
do inciso III do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor e o que
efetivamente representa o envio de um cartão bloqueado.
Em outros
termos, até o desbloqueio do cartão enviado não há produto ou fornecimento de
qualquer serviço, mas verdadeiramente propostas de contratos enviadas em
formato diferente, cuja aceitação é o próprio desbloqueando do cartão.
Basta analisar
as correspondências que são enviadas pelas operadoras para perceber que elas
são claras o suficiente sobre o negócio proposto, já que oferecem a utilização
de um “dinheiro plástico” mediante condições preestabelecidas, sendo que o
produto e serviço oferecido só estarão à disposição do interessado após
manifestação expressa de vontade dele, ou seja, sua aceitação.
Embora essa
correspondência não contenha todas as minúcias do negócio, tal como as taxas de
operação ou prazos para cobrança, isso é suficientemente explicado caso o
interessado entre em contato e normalmente está à disposição deste nos sites
das operadoras, o que não invalida o documento como uma proposta.
O oferecimento
do cartão bloqueado, além de ser uma estratégia de propaganda e até mesmo de marketing,
se enquadra perfeitamente no conceito de proposta consolidado pela
doutrina e pelo próprio Código Civil (LGL\2002\400) em vigor, pois, além de
vincular o proponente, normalmente são redigidos em linguagem clara e
inequívoca: desbloqueie o seu cartão e conte com o produto e serviços
ofertados, mediante as regras já predefinidas e à sua disposição no site
específico.
Afinal, nem
sempre é fácil obter um cartão de crédito, sendo que muitos consumidores têm
seu pedido negado e veem nesse recebimento a oportunidade de possuir acesso ao
“dinheiro de plástico”.
Dessa forma,
em que pese os entendimentos existentes e a própria súmula que foi editada e
publicada em meados de 2015, se o cartão está bloqueado e o destinatário não o
utiliza, não se pode falar em um efetivo produto ou serviço prestado pela
operadora, motivo pelo qual não é correto juridicamente utilizar o artigo 39,
inciso III, do Código de Defesa do Consumidor como fundamento para configuração
de uma prática abusiva, mas sim considerar o envio do cartão como uma proposta
para contratar, subordinada a uma declaração receptícia de vontade do
interessado, qual seja, o desbloqueio do cartão.
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Referências
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J. B. Torres de. Abusos dos cartões de crédito: doutrina, jurisprudência
e legislação. Campinas: M. E. Editora, 2001.
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10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil (LGL\2002\400). Diário
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8.078, de 11 de setembro de 1990. Institui o Código de Defesa do Consumidor. Diário
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Forense, 2013. (Contratos, v. 3.)
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Arlando. Contratos. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
ROPPO, Enzo. O
contrato. Coimbra: Almedina, 1988.
1 Art. 2º
Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final.
2 NEVES,
Thiago Ferreira Cardoso. Contratos mercantis. São Paulo: Atlas, 2013. p.
66.
3 ABRÃO,
Nelson. Direito bancário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 220.
4 NEVES,
Thiago Ferreira Cardoso. Contratos mercantis. São Paulo: Atlas, 2013. p.
67-68.
5 BONATTO,
Cláudio. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor:
principiologia, conceitos, contratos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 72.
6 NUNES, Luiz
Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito
material (arts. 1º a 54). São Paulo: Saraiva, 2000. p. 105-106.
7 NEVES,
Thiago Ferreira Cardoso. Contratos mercantis. São Paulo: Atlas, 2013. p.
91.
8 GONÇALVES,
Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2010. (Contrato e atos unilaterais, v. 3). p. 70.
9 ROPPO, Enzo.
O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 85.
10 FARIAS,
Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos:
teoria geral e contratos em espécie. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 58.
11 GONÇALVES,
Carlos Roberto. civil brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
(Contrato e atos unilaterais, v. 3). p. 73-75.
12 FARIAS,
Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos:
teoria geral e contratos em espécie. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 59-60.