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23 de abril de 2021

SALVO-CONDUTO; PLANTIO DE CANNABIS SATIVA; DOMICÍLIO; DIREITO À VIDA E À SAÚDE; CONDIÇÕES IMPOSTAS; CONCESSÃO

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO nº 0026013-88.2020.8.19.0209 Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Recorrida: XXXX Relatora: Juíza de Direito DANIELA BARBOSA ASSUMPÇÃO DE SOUZA Habeas corpus preventivo - salvo conduto - ordem concedida para impedir ameaça de prisão em flagrante em virtude de plantio de cannabis sativa para extração de óleo de canabidiol para fins terapêuticos. Imputação prévia da conduta prevista no art. 28, §1º, da Lei 11343/2006 enseja a concessão da ordem preventiva. Hipótese adstrita ao subjetivismo da autoridade persecutória. Ameaça contra a liberdade de locomoção evidenciada, além de eventual apreensão das plantas de cannabis sativa, circunstância que interrompe o tratamento dos filhos menores da paciente. Competência da Justiça Estadual e do Juizado Especial Criminal. Ausência de nulidade. Prevalência dos direitos fundamentais à vida e à saúde. Possibilidade de pessoa física cultivar cannabis para extração de óleo com finalidade terapêutica sem que se configure crime previsto na Lei 11.343/2006. Silêncio eloquente suprido. Sentença mantida e acrescida apenas de condições para a validade do salvo-conduto. Recurso em sentido estrito que devolve toda a matéria a reexame. Necessidade de controle quanto à produção e qualidade do óleo extraído da planta de cannabis, por laboratório especializado da UFRJ. Proteção à própria paciente e a seus filhos menores. Ausência de prejuízo à paciente. Recurso desprovido. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso em Sentido Estrito nº 0026013-88.2020.8.19.0209, contra a sentença de fls. 83, oriunda do IV Juizado Especial Criminal da Barra da Tijuca, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO e recorrida, XXXX. A C O R D A M os Juízes de Direito da Segunda Turma Recursal Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em votação unânime, NEGAR PROVIMENTO ao recurso, adequando, no entanto, a sentença de fls. 83, nos termos do voto da Relatora. R E L A T Ó R I O Recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público em atuação junto ao IV Juizado Especial Criminal da Barra da Tijuca, na forma do art. 581, X, do CPP c/c art. 92, da Lei 9099/95, às fls. 102. Requer, preliminarmente, o reconhecimento da ausência do interesse de agir, uma vez que o habeas corpus tem suas hipóteses de incidência circunscritas aos casos de lesão ou perigo de lesão à liberdade ambulatorial, ao contrário do crime previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/06, isso porque o preceito secundário do tipo incriminador não prevê pena de prisão, inexistindo a possibilidade de constrição da liberdade do indivíduo. No mérito, pugna pela reforma da sentença de fls. 83, aduzindo a proibição da conduta típica, que proíbe o consumo pessoal, independentemente de sua finalidade terapêutica ou recreativa; da impossibilidade de superação da norma proibitiva ante o alegado direito à saúde; e, por fim, aduz que não se trata de mora da União ou da ANVISA, mas sim, de "silêncio eloquente", ou seja, ao legislar sobre a matéria deixou-se deliberadamente de fora a possibilidade de pessoas físicas serem produtoras de cannabis. O dispositivo da decisão impugnada está assim consignado: "Diante do exposto, defiro o pedido e CONCEDO SALVO-CONDUTO em favor de XXXXX a fim de que as autoridades coatoras sejam impedidas de proceder à prisão em flagrante da paciente pela produção artesanal de 30 plantas da Cannabis Sativa, por cada quadrimestre do ano, para fins estritamente medicinais, bem como fiquem impedidas de apreenderem as mudas das plantas utilizadas para o tratamento de seus três filhos menores." (grifei). Em contrarrazões, conforme fls. 124, a impetrante pugna pela manutenção da sentença e desprovimento do recurso em sentido estrito, aduzindo que a conduta é atípica, pois não visa ao consumo pessoal, mas sim preservar a saúde, bem juridicamente tutelado, dos seus três filhos autistas, cuja interrupção do tratamento pode conduzir à morte. Além disso, afirma que é estudante de Farmácia, tem conhecimento sobre o método de produção do óleo, que é fabricado em ambiente próprio, a um custo infinitamente menor do que o mesmo produto quando importado. O Ministério Público em atuação perante esta Turma Recursal suscita, preliminarmente, a nulidade absoluta do processo em razão da incompetência da Justiça Estadual e do Juizado Especial Criminal para o julgamento da matéria, uma vez que a conduta da impetrante se amoldaria, em tese, ao crime de maior potencial ofensivo encartado no art. 33, §1º, II, da Lei 11.343/06. Alternativamente, pugna pelo conhecimento do recurso e, no mérito, oficia pela manutenção da decisão, aperfeiçoada com determinadas condições que permitam o controle da produção e consumo do óleo de canabidiol, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. V O T O 1. Juízo de admissibilidade do recurso Inicialmente, verifica-se que estão presentes os pressupostos recursais objetivos e subjetivos do recurso, uma vez que o mencionado meio processual de impugnação tem previsão legal (art. art. 581, inciso X, do CPP); observou as formalidades legais (art. 578 do CPP); é tempestivo (art. 586, do CPP); o recorrente é parte legítima e também está presente o interesse recursal (art. 577 do CPP). Além disso, não há causas impeditivas ou extintivas do direito de recorrer. Posto isso, CONHECE-SE do recurso e, como consequência, passa-se à análise do seu mérito. 2. Do exame da Preliminares Recurso em sentido estrito de decisão de mérito que concedeu ordem de Habeas Corpus, interposto na forma do art. 581, X, do CPP. Vale consignar, primeiramente, que, muito embora a juíza que recebeu o recurso, fls. 120, não tenha realizado o juízo de retratação, como determina o art. 589, do Diploma Processual, a questão deve ser superada, sem o reconhecimento de prejuízo ao recorrente que, inclusive, não arguiu a ausência do juízo de retratação pelo órgão a quo. Conforme a mais recente jurisprudência do STJ, a omissão apontada não passa de mera irregularidade: Ao interpretar o artigo 589 do Código de Processo Penal, esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que a inexistência de pronunciamento do magistrado quanto à manutenção ou não da decisão impugnada por meio de recurso em sentido estrito configura mera irregularidade. Precedentes. 2. Na espécie, conquanto os autos tenham ascendido ao Tribunal de origem sem que o togado tenha realizado o juízo de retratação da decisão de pronúncia, não há dúvidas de que a inobservância de tal formalidade não acarretou quaisquer prejuízos à defesa, uma vez que o recurso em sentido estrito já foi julgado, tendo os indícios de autoria e a materialidade do delito imputado ao paciente sido novamente examinados, não havendo motivos para que o processo seja anulado a fim de que haja novo pronunciamento judicial sobre tais questões, que foram alvo de análise fundamentada na provisional e no aresto objurgado" (HC 369.297/RS, j. 29/10/2016). (grifei). Em relação às preliminares arguidas pelo Ministério Público, tanto perante o Juízo de origem, quanto perante esta Turma Recursal, o exame destas não aponta para a nulidade deste processo. Assim vejamos. De acordo com a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a competência para julgar pedido de habeas corpus preventivo em favor de quem planta, transporta ou usa maconha (Cannabis sativa L) para fins terapêuticos, dependerá das autoridades apontadas como coatoras que, in casu, é a Autoridade Policial Estadual, definindo-se, assim, a competência da Justiça Estadual para julgamento do habeas corpus. Assim: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. HABEAS CORPUS PREVENTIVO. PEDIDO DE SALVO CONDUTO PARA CULTIVO, USO, PORTE E PRODUÇÃO ARTESANAL DA CANNABIS (MACONHA) PARA FINS MEDICINAIS. ALEGAÇÃO DE JUSTO RECEIO DE SOFRER RESTRIÇÃO NO DIREITO DE IR E VIR. NARRATIVA QUE APONTA A POSSIBILIDADE DE AUTORIDADES POLICIAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO PRATICAREM COAÇÃO CONTRA A LIBERDADE DEAMBULATORIAL DOS PACIENTES. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE SALVO CONDUTO PARA IMPORTAÇÃO DA PLANTA OU DE QUALQUER OUTRA CONDUTA TRANSNACIONAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. O presente conflito de competência deve ser conhecido, por se tratar de incidente instaurado entre juízos vinculados a Tribunais distintos, nos termos do art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal - CF. 2. O núcleo da controvérsia consiste em definir a competência para prestar jurisdição na hipótese habeas corpus preventivo para viabilizar o plantio de maconha para fins medicinais. Os impetrantes objetivam ordem de salvo conduto para que os pacientes possam cultivar artesanalmente a planta Canabis Sativa L, bem como usá-la e portá-la dentro do território nacional para fins terapêuticos 3. Da leitura da inicial do habeas corpus impetrado em favor dos pacientes extrai-se que autoridades estaduais foram apontadas como coatoras, quais sejam: o Delegado Geral da Polícia Civil de São Paulo e o Comandante Geral da Polícia Militar de São Paulo. Destarte, as autoridades estaduais apontadas como coatoras, por si só, já definem a competência do primeiro grau da Justiça Estadual. 4. Ademais, o salvo conduto pleiteado pelo impetrante diz respeito ao cultivo, uso, porte e produção artesanal da Cannabis, bem como porte ainda que em outra unidade da federação. Nesse contexto, o argumento do Juízo de Direito Suscitado de que os pacientes teriam inexoravelmente que importar a Cannabis permanece no campo das ilações e conjecturas. Em outras palavras, não cabe ao magistrado corrigir ou fazer acréscimos ao pedido dos impetrantes, mas tão somente prestar jurisdição quando os pedidos formulados estão abarcados na sua competência. Em resumo, não há pedido de importação a justificar a competência da Justiça Federal, consequentemente, não há motivo para supor que o Juízo Estadual teria que se pronunciar acerca de autorização para a importação da planta invadindo competência da Justiça Federal. Ademais, a existência de uso medicinal da Cannabis no território pátrio de forma legal, em razão de salvos condutos concedidos pelo Poder Judiciário, demonstra a possibilidade de aquisição da planta dentro do território nacional, sem necessidade de recorrer à importação. 5. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ é firme quanto à necessidade de demonstração de internacionalidade da conduta do agente para reconhecimento da competência da Justiça Federal, o que não se identifica no caso concreto. Frise-se ainda que o tráfico interestadual não tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal Precedentes. 6. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça Estadual. O habeas corpus, portanto, foi impetrado perante a Justiça competente. O representante do Parquet em atuação perante o primeiro grau, aduziu que a conduta estaria amoldada ao delito previsto no art. 28, § 1º, da Lei 11343/2006, sendo incabível a impetração do habeas corpus, uma vez que não haveria ameaça à liberdade de locomoção da impetrante. O Ministério Público em atuação perante esta Turma Recursal, por sua vez, salientou, que os fatos narrados na inicial do writ envolvem a conduta típica descrita no art. 33, §1º, II, da Lei 11.343/06, e não, a do art. 28, §1º, desse diploma legal, já que a impetrante planta, cultiva e colhe cannabis sativa L. para consumo dos seus três filhos, na forma de óleo de cannabis e não para uso próprio. Portanto, tratando-se da possível prática de infração penal de maior potencial ofensivo, a competência para processar e julgar o HC em estudo seria de alguma das varas criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, as preliminares arguidas pelos representantes do Ministério Público, nas duas instâncias, não devem prosperar. Isso porque, não se deve olvidar que se cuida de pedido de salvo conduto, ou seja, de caráter preventivo, não sendo possível, desde já, fixar a hipótese típica que dependerá, no caso concreto, da avaliação subjetiva da autoridade persecutória. Nessa toada, a depender da cognição da mencionada autoridade, poderia constituir hipótese de lavratura de termo circunstanciado (art. 28, §1º, da Lei 11343/2006) ou de flagrante delito (art. 33, §1º, II, da Lei 11343/2006), como, aliás, se deu no presente caso, em que a Autoridade Policial, e o Promotor de Justiça que oficia perante à primeira instância, entenderam pela configuração de crime de menor potencial ofensivo, ao passo que o Ministério Público em atuação nesta Turma Recursal se manifestou pela prática de crime de maior potencial ofensivo. Assim, o fato de o art. 28, §1º, da Lei de Drogas não prever pena de prisão não torna incabível a impetração do habeas corpus. O direito à liberdade de locomoção da paciente encontra-se ameaçado, uma vez que, como bem aduziu o Ministério Público em atuação perante esta Turma Recursal, a subjetividade da análise da autoridade persecutória, diante do caso concreto, poderá concluir pela suposta prática de crime mais gravoso, ensejando a prisão em flagrante da paciente. Além disso, mesmo no caso previsto no art. 28, §1º, da Lei 11343/2006, a paciente não estará livre de ser conduzida coercitivamente à delegacia de polícia para lavratura de termo circunstanciado e de ter as plantas apreendidas. Tal fato justifica a impetração do habeas corpus, como salvo conduto para evitar a ameaça de deslocamento coercitivo e de autuação pela prática de crime, ainda que não se trate de delito que enseje prisão. Por fim, forçoso concluir que a semeadura descrita no art. 33, §1º, II, da Lei de Drogas, está vinculada diretamente ao caput, do art. 33, que tipifica a conduta do tráfico ilícito de drogas, não se podendo, diante da situação posta, bem como da farta documentação acostada aos autos, verificando-se, em tese, não se tratar de salvo conduto para a prática do crime de tráfico ilícito de drogas, deslocar-se a competência. Dessa forma, superadas as preliminares suscitadas, passo ao exame do mérito. 2. Do mérito recursal Recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público estadual, inconformado com a sentença de fls. 83/87, que concedeu a ordem de salvo conduto pretendida por XXXXX, a fim de que as autoridades coatoras sejam impedidas de proceder à prisão em flagrante da paciente pela produção artesanal de 30 plantas da espécie Cannabis Sativa L., por cada quadrimestre do ano, objetivando a confecção artesanal de óleo de canabidiol (CBD), necessário ao tratamento medicinal de seus três filhos, XXX, XXX e XXX, todos portadores de transtorno do espectro autista. O salvo-conduto foi concedido com prazo de validade até 30/09/2022 e o plantio deveria ocorrer no apartamento da paciente, no espaço destinado para tal fim, conforme informado nos autos. A paciente é mãe de três filhos menores, XXX (10 anos), XXX(5 anos) e XXX (3 anos), todos portadores de autismo (transtorno de espectro autista), sendo certo que nenhum deles respondendo aos tratamentos convencionais ministrados, também não sendo candidatos à tratamento cirúrgico, conforme laudos médicos acostados aos autos. Os autos trazem farta documentação comprobatória do estado clínico das crianças, bem como laudos indicando que os menores iniciaram tratamento com farmacoterapêutico à base de CBD (com baixa concentração de tetra-hidrocanabinol - THC), tendo uma evolução significativa na qualidade de vida, redução das crises de autoagressividade e significativa melhora na fala e na interação social, por orientação de quatro médicos distintos, a saber, Dr. Eduardo de Sá Campello Faveret - neuropediatra e epileptologista, CRM-RJ 52.50944-6; Dr. Paulo Tomaz Fleury Teixeira - médico preventivo terapeuta canábico, CRM-MG 19.994; Dra. Lislie Abram - psiquiatra, CRM-RJ 52.98735-2; e Dr. José Mauro Gomes Ferreira, CRM-RJ 52.29799-5, conforme documentos contidos no index, 27 dos autos. Por sua contundência, reconhecida pelo Ministério Público em sua manifestação, vale também reproduzir trechos dos mencionados laudos médicos acostados aos autos eletrônicos, assim vejamos: XXX Já faz uso de óleo de cannabis há quatro anos, tendo "apresentado acentuada melhora comportamental e cognitiva, após o início do uso de óleo de cannabis (rico em canabidiol e baixa concentração de THC)". "O tratamento com canabinóides resultou em grande melhora sob o aspecto psico-comportamental, com eliminação dos casos de auto agressividade e significativo desenvolvimento da fala, cognição e interação social" "O tratamento resultou em grande melhora no comportamento, diminuindo agressividade e significativo desenvolvimento de fala, cognição e interação social". (index 27). XXX "Com o uso de cannabis, iniciado há 1 ano e 11 meses, houve melhora significativa em fala, (ilegível) e controle de crises/comportamentos autoagressivos". (index 27). XXX "Aos 12 meses iniciou uso de canabinóides devido a atraso no desenvolvimento da fala e surgimento de autoagressividade. Desde então, apresentou redução bastante significativa da hiperatividade, estereotipias e fim da autoagressividade. Houve também grande desenvolvimento da fala/autonomia do paciente." (index 47). (grifei) Diante da ineficácia do tratamento tradicional, a prescrição de óleo rico em canabidiol pelos profissionais médicos acima relacionados, foi a causa eficiente da excepcional melhora no quadro médico dos filhos da paciente, inclusive do desempenho escolar, o que resta indubitavelmente comprovado nos autos, (index 27). Em razão disso, inclusive, a ANVISA, que havia retirado o produto da lista das substâncias proibidas, conforme nota técnica 093/015, incluindo-o no rol das substâncias controladas, autorizou (documento index 27) a importação do óleo de canabidiol para as três crianças, tendo a paciente, inclusive, obtido o custeio do tratamento de um de seus filhos pelo Poder Público. Não obstante, a paciente continuava a encontrar graves dificuldades para obter o produto, em razão da demorada burocracia no desembaraço aduaneiro, sendo certo que a ANVISA veda a importação pela via postal, ante a elevada cotação do dólar, além dos impostos e taxas de envio. A própria ANVISA ressalta, na nota, a morosidade e burocracia no processo de importação do CBD, o que leva a atrasos no tratamento, gerando piora do prognóstico do paciente. Em razão de todas as dificuldades narradas e custos necessários, o tratamento dos três filhos, segundo a paciente, girava em torno de R$200.000,00 (duzentos mil reais), o que praticamente inviabilizava a importação para os seus outros dois filhos, (uma vez que um deles tinha o tratamento custeado pelo Erário) circunstâncias que comprometiam o prosseguimento do exitoso tratamento. Frise-se, ainda, que mencionada nota técnica prevê que o pedido para importação do CBD, um dos componentes não psicoativos da cannabis sativa, deve estar acompanhado da prescrição médica, sendo permitida somente para uso pessoal, por pessoa física previamente cadastrada além de laudo de profissional legalmente habilitado contendo a descrição do caso, código internacional de doenças (CID), justificativa para a utilização de produto não registrado no Brasil em comparação com as alternativas terapêuticas já existentes registradas pela ANVISA, bem como os tratamentos anteriores. Verifica-se que os órgãos responsáveis adotam todas as providências necessárias, para garantir que a importação da substância só possa ocorrer para fins medicinais e quando comprovadamente justificada a necessidade, inclusive, da não eficácia dos demais tratamentos autorizados. Há, portanto, evidente confronto entre o direito à saúde dos filhos da paciente e a omissão do Estado na elaboração de norma jurídica que regulamente a produção artesanal do óleo de cannabis por particulares, para fins medicinais, não suprindo a autorização da ANVISA, na prática, a necessidade de quem precisa fazer uso contínuo do óleo de canabidiol, em razão da demora excessiva no recebimento e do alto custo para importação do produto. A Constituição Federal, no artigo 196, prevê que o direito à saúde é obrigação do Estado, ao declarar que: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal, igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". (grifei) Da mesma forma, no seu artigo 6º, a Constituição consolida o direito à saúde como obrigação do Estado, e no seu art. 197, dispõe que: "São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado." Nessa toada, não se deve olvidar que a efetivação do direito à saúde é imprescindível para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana positivado no artigo 1º, III, da CRFB. Assim, ao buscar o Judiciário, por meio do remédio constitucional do habeas corpus preventivo, a paciente pretende tão somente efetivar o direito à saúde de seus próprios filhos, garantindo aos mesmos a continuidade do tratamento que reduz os efeitos danosos do autismo, a permitir, assim, que possam ter uma melhor qualidade de vida e não corram riscos de danos mais graves à saúde em decorrência do transtorno que os acomete. Aliás, este é o direito inalienável de qualquer mãe, não sendo absurdo, muito ao contrário, o entendimento que autorizasse reconhecer que sua conduta, em face de uma eventual atuação estatal, estaria acobertada pela causa excludente da antijuridicidade do estado de necessidade justificante, prevista nos artigos, 23, I e 24, do Código Penal. Diversos estudos demonstram os efeitos positivos da utilização de canabinoides para o tratamento de doenças graves, como Parkinson, esquizofrenia, Alzheimer, esclerose múltipla, artrite reumatoide e epilepsia, muito embora ainda não exista no Brasil regulamentação sobre o cultivo da planta exclusivamente para uso medicinal. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução CFM 2.113/14, publicada no Diário Oficial da União de 16 de dezembro de 2014, seção I, p. 183, aprovou o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes resistentes aos tratamentos convencionais. A magistrada de primeiro grau, na sentença concessiva da ordem de habeas corpus, observou bem as garantias constitucionais à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana, reconhecendo como pressuposto ao pedido, a possibilidade de plantio da cannabis sativa para extração do CDB, unicamente com finalidade terapêutica. Nesse ponto, a própria Legislação em vigor, através do art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/06, prevê a possibilidade de autorização pela União para a plantação, cultura e colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, com finalidade exclusiva medicinal e científica. Não procede, assim, diante do exposto, o argumento recursal do silêncio eloquente. Ora, como ensina Renato Brasileiro de Lima, "o legislador não pode prever todas as situações que poderiam ocorrer na vida em sociedade e que seriam similares àquelas por ele já elencadas" (Código de processo penal comentado, Juspodivm, 2016, p. 32). Contudo, uma vez submetido o fato ao Poder Judiciário, não pode ser negada a jurisdição, cabendo ao juiz aplicar a Lei ao caso concreto, buscando sempre atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, procedendo, para tanto, à integração das normas, na forma do artigo 140, no NCPC c/c artigo 3º do CPP c/c art. 4º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Vejamos: Art. 140 do NCPC - O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Art. 3o do CPP - A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. O art. 4º da Lei de Introdução - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (Decreto-lei n. 4.657/1942). Assim, segundo, ainda, os ensinamentos de Renato Brasileiro de Lima, o argumento ministerial não pode prosperar, uma vez que ao "juiz não é dado deixar de julgar determinada demanda sob o argumento de que não há norma expressa regulamentando-a, há de fazer uso dos métodos de integração, dentre eles a analogia, com o objetivo de suprir eventuais lacunas encontradas no ordenamento jurídico" (Código de processo penal comentado, Juspodivm, 2016, p. 31-32). Por fim, não deve haver óbice à possibilidade da paciente, pessoa física, produzir, artesanalmente, óleo de cannabis, garantindo, assim, o direito constitucional dos seus filhos, portadores de transtorno do espectro autista, à saúde, ao usarem medicamento ou produto farmacoterapêutico à base de canabidiol e THC, ainda mais porque prescrito pelos médicos que os assistem e atestam os resultados positivos de sua utilização, melhorando sobremaneira a qualidade de vida das crianças e, por conseguinte, de seus familiares, diretamente atingidos com os transtornos, dificuldades de aprendizagem e agressividade manifestados pelos filhos autistas, em razão da síndrome que os acomete e que pode ser tratada e amenizada na forma ora analisada. Nessa toada, a paciente obteve judicialmente ordem de salvo conduto a fim de que fosse vedada a sua prisão em flagrante em virtude da eventual apreensão de plantação da planta de cannabis sativa L. em sua residência, o que impediria a continuidade do tratamento médico de seus filhos, grave prejuízo aos mesmos e, por conseguinte, a violação dos dispositivos constitucionais acima mencionados. A ordem deve ser mantida por seus próprios fundamentos. No entanto, como bem acentuou o Ministério Público em atuação perante esta Turma, é preciso que o farmacoterapêutico objeto desta demanda, em virtude de suas peculiaridades, esteja sujeito ao controle das autoridades públicas brasileiras. Embora o promotor de justiça em atuação junto ao 1º grau não tenha efetivamente suscitado essa omissão no seu recurso, certo é que, ao impugnar a sentença como um todo, pugnando por sua reforma, trouxe a esta Turma Recursal o debate sobre o mérito do ato impugnado em sentido amplo, devolvendo a matéria integralmente para reexame. Dessa forma, considerando que o aperfeiçoamento da sentença não implica qualquer prejuízo à paciente, mas, ao contrário, lhe dá garantias, e a seus filhos, quanto à correta produção e utilização do óleo de canabidiol, entendo que as recomendações do i. representante do Parquet em atuação junto à 2ª instância podem ser incorporadas à decisão, não se configurando julgamento extra-petita. Nesse sentido, acolho a promoção do Ministério Público para aperfeiçoar a decisão de mérito em Habeas Corpus, proferida pela primeira instância, visando à segurança jurídica da paciente e da sociedade, a fim de que o plantio e extração do óleo de canabidiol seja submetido ao controle da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por meio de seu Laboratório de Análises Tóxicas (LATOX) e do Projeto Farmacannabis, com a finalidade de monitorar a terapia com cannabis, com foco na avaliação de segurança e suporte farmacêutico aos três pacientes. Consigno que, ao analisar o presente caso, tive acesso ao Projeto Farmacannabis por meio do endereço virtual, http://www.farmacia.ufrj.br/latox/PDFs/ProtocAdesaoFarmacannabis.pdf, onde a paciente poderá obter informações sobre os requisitos para a sua adesão. Ante o exposto, a decisão de mérito prolatada em Habeas Corpus deverá ser acrescida das condições impostas pelo Ministério Público, cujo cumprimento será condição essencial para que o salvo conduto possa surtir os seus regulares efeitos. Assim, mantenho a guerreada decisão em seus demais termos, que deverá ser acrescida das seguintes condições: "... Sendo assim, defiro o pedido LIMINAR e CONCEDO SALVO-CONDUTO em favor de XXX a fim de que os agentes da Lei sejam impedidos de proceder à prisão em flagrante da paciente, pela produção artesanal de 30 plantas de Cannabis Sativa L., por quadrimestre, para fins estritamente medicinais, bem como de apreenderem as mudas das plantas, utilizadas exclusivamente para o tratamento dos filhos da paciente. Por outro lado, deverá a paciente, assim proceder: 1 - A paciente (ou por procurador com poderes especiais), deverá entregar os óleos de cannabis produzidos, artesanalmente, pessoalmente ao Laboratório de Análises Toxicológicas (LATOX) da Universidade Federal Fluminense, a fim de o projeto FarmaCannabis proceda à avaliação técnica do medicamento, sendo vedado o envio por outra forma, apresentando-se os laudos ao juízo de 1º grau durante o prazo de validade do salvo-conduto estipulado na decisão; 2 - O material vegetal e os produtos dele derivados devem ser empregados, exclusivamente, no tratamento individual dos menores XXX, XXX e XXX; 3 - Não pode haver distribuição das plantas de cannabis sativa L., tampouco dos óleos medicinais dela derivados, para terceiros, por qualquer meio, sejam pessoas físicas, associações sem fins lucrativos ou sociedades comerciais de qualquer tipo; 4 - Fica impedida a publicização das atividades do laboratório sem autorização prévia, por escrito, da docente responsável; 5 - O plantio, cultivo e colheita de cannabis sativa L. em quantidade superior à ora estabelecida, trinta plantas de cannabis sativa L. por cada quadrimestre do ano, implicará em descumprimento deste Salvo-Conduto e responsabilidade penal da impetrante, sem prejuízo de responsabilização em outras esferas. Expeça-se o salvo-conduto. ...". Assim sendo, VOTO no sentido de CONHECER do recurso, e, no mérito, NEGAR-LHE PROVIMENTO, ficando mantida a decisão de mérito recorrida em seus demais termos, acrescida das condições acima elencadas. Oficie-se à Universidade Federal do Rio de Janeiro, por meio de seu Laboratório de Análises Tóxicas (LATOX) e do Projeto Farmacannabis sobre o teor da presente, com cópia integral. A paciente deverá comprovar a adesão ao Projeto Farmacannabis no prazo máximo de 15 dias, oficiando-se ao Juízo de primeiro grau. Rio de Janeiro, 12 de março de 2021. DANIELA BARBOSA ASSUMPÇÃO DE SOUZA Juíza Relatora ESTADO DO RIO DE JANEIRO-PODER JUDICIÁRIO CONSELHO RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS SEGUNDA TURMA RECURSAL CRIMINAL 20



0026013-88.2020.8.19.0209 - APELAÇÃO CRIMINAL

CAPITAL 2a. TURMA RECURSAL DOS JUI ESP CRIMINAIS

Juiz(a) DANIELA BARBOSA ASSUMPCAO DE SOUZA - Julg: 24/03/2021 - Data de Publicação: 06/04/2021

17 de abril de 2021

PLANO DE SAÚDE; FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO À BASE DE CANABIDIOL; ROL DA ANS; AUSÊNCIA DE CARÁTER TAXATIVO; IMPRESCINDIBILIDADE DO MEDICAMENTO

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. NEGATIVA DE COBERTURA DE TERAPIAS MULTIDISCIPLINARES E DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS À BASE DE CANABIDIOL. AUTOR MENOR DE IDADE QUE NECESSITOU DE INTERNAÇÃO EM UTI LOGO APÓS O NASCIMENTO EM RAZÃO DE PROBLEMAS NEUROLÓGICOS, COM DIAGNÓSTICO DE EPILEPSIA REFRATÁRIA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. IRRESIGNAÇÃO DA RÉ. ROL DA ANS QUE NÃO OSTENTA CARÁTER TAXATIVO, RELEVANDO COBERTURA MÍNIMA A SER OFERECIDA PELOS PLANOS DE SAÚDE. COBERTURA CONTRATUAL DA DOENÇA QUE OBRIGA A OPERADORA A AUTORIZAR OS TRATAMENTOS INDICADOS PELO MÉDICO ASSISTENTE, AINDA QUE FORA DO ROL DA ANS, SOB PENA DE CONFIGURAR CONDUTA ABUSIVA. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS Nº.211 E 340 DO TJ/RJ. TRATAMENTO MULTIDISCIPLINAR QUE É NECESSÁRIO À SAÚDE DO AUTOR, NÃO PODENDO SOFRER LIMITAÇÃO CONTRATUAL. IMPOSSIBILIDADE DE RESTRINGIR A COBERTURA AO VALOR DO PRÊMIO PAGO PELO SEGURADO. NECESSIDADE DE FORNECIMENTO DOS MEDICAMENTOS REVIVID E SPRAY ÓLEO ESPERANÇA, À BASE DE CANABIDIOL. REGULAMENTAÇÃO DA MATÉRIA PELAS RESOLUÇÕES - RDC Nº 17/15 E 327/19 DA ANVISA. NÃO INCIDÊNCIA DA TESE 990 DO STJ À HIPÓTESE. LAUDOS MÉDICOS QUE INDICAM A IMPRESCINDIBILIDADE DOS MEDICAMENTOS, CUJA AUSÊNCIA PODERÁ ACARRETAR AGRAVAMENTO DAS CRISES E RISCO DE VIDA. SENTENÇA QUE NÃO MERECE REPARO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.



0035683-45.2018.8.19.0202 - APELAÇÃO

DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL

Des(a). LUCIA REGINA ESTEVES DE MAGALHAES - Julg: 19/11/2020 - Data de Publicação: 26/11/2020

16 de abril de 2021

Quinta Turma aponta competência da Anvisa e nega salvo-conduto para plantio e produção de óleo de maconha

 Em razão da competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para conceder licença prévia para produção, preparo, posse e outras atividades relacionadas a matérias-primas extraídas da maconha, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o recurso em que uma mulher pedia salvo-conduto para cultivar a planta e produzir o óleo medicinal necessário ao seu tratamento de saúde.

Com quadro grave de epilepsia refratária, hiperecplexia e síndrome de Ehler Danos, ela recorreu ao STJ após o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) permitir apenas a importação das sementes de maconha, mas não o seu plantio.

A recorrente afirmou que sofre dezenas de crises epilépticas diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar uma vida normal. Em 2016, diante da ineficiência dos tratamentos convencionais, passou a fazer uso do óleo de canabidiol – obtido da planta da maconha – e teve expressiva melhora no seu quadro de saúde.

Ela obteve autorização da Anvisa para importar o óleo que contém canabidiol entre os anos de 2016 e 2019. Contudo, argumentou que o processo de aquisição do medicamento é complicado e oneroso, dificultando a continuidade do tratamento prescrito.

Cenário de regulamentação

O relator do recurso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ressaltou que a compreensão firmada pelo TRF4 está de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores, que passaram a considerar atípica a conduta de importar sementes de maconha. Por não apresentarem tetra-hidrocanabinol (THC) – substância de uso proscrito conforme a Lista F1 da Portaria 344/1998 da Secretaria de Vigilância em Saúde –, as sementes não se enquadram no conceito de droga estabelecido no artigo 33 da Lei 11.343/2006.

Em seu voto, o magistrado destacou a existência de inúmeros estudos científicos que comprovam a eficácia da chamada terapia canábica no tratamento de quadros relacionados a epilepsia, paralisia cerebral e outras doenças.

Segundo o relator, há avanços internacionais no uso terapêutico da maconha, seja pela aprovação de medicamentos que contêm canabidiol e THC, seja pela permissão para o cultivo da planta e a manufatura de óleos e produtos com essas substâncias. No Brasil, lembrou, a Anvisa autorizou a comercialização de fitofármacos com até 0,2% de THC, havendo um cenário que se encaminha para a regulamentação do uso de produtos medicinais elaborados a partir da maconha.

Critérios técnicos

Contudo, o ministro observou que a licença prévia para atividades relacionadas a matérias-primas de drogas é atribuição da Anvisa. Apesar da relevância e sensibilidade do tema, o relator não vislumbrou possibilidade de atender ao pedido da recorrente, especialmente considerando a estreiteza cognitiva do habeas corpus e a própria competência do colegiado de direito penal.

Reynaldo Soares da Fonseca ressaltou que o tipo penal descrito no artigo 33 da Lei 11.343/2006 condiciona a caracterização do delito à prática das ações lá mencionadas e à ausência de autorização ou à discordância com determinação legal. "Desse modo, a existência de autorização do órgão competente impede a subsunção da conduta ao tipo penal em abstrato, dispensando até a necessidade de salvo-conduto", afirmou.

De acordo com o ministro, esse tipo de autorização depende de critérios técnicos cujo estudo não compete ao juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária, os quais devem avaliar os diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de espécimes suficientes para atender à necessidade, mecanismos de controle da produção do medicamento e outros fatores estranhos às competências técnicas do magistrado.

"A melhor solução é, inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível competente", concluiu.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

5 de abril de 2021

Cannabis ativa l. Cultivo para tratamento individual. Salvo-conduto. Não cabimento. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Análise técnica.

 RHC 123.402-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 23/03/2021

É incabível salvo-conduto para o cultivo da cannabis visando a extração do óleo medicinalainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA.

Os Tribunais Superiores já possuem jurisprudência firmada no sentido de considerar que a conduta de importar pequenas quantidades de sementes de maconha não se adequa à forma prevista no art. 33 da Lei de Drogas, subsumindo-se, formalmente, ao tipo penal descrito no art. 334-A do Código Penal, mas cuja tipicidade material é afastada pela aplicação do princípio da insignificância.

O controle do cultivo e da manipulação da maconha deve ser limitado aos conhecidos efeitos deletérios atribuídos a algumas substâncias contidas na planta, sendo certo que a própria Lei n. 11.343/2006 permite o manejo de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas para fins medicinais ou científicos, desde que autorizado pela União.

No atual estágio do debate acerca da regulamentação dos produtos baseados na Cannabis e de desenvolvimento das pesquisas a respeito da eficácia dos medicamentos obtidos a partir da planta, não parece razoável desautorizar a produção artesanal do óleo à base de maconha apenas sob o pretexto da falta de regulamentação. De mais a mais, a própria agência de vigilância sanitária federal já permite a importação de medicamentos à base de maconha, produzidos industrial ou artesanalmente no exterior.

Entretanto, tal autorização depende de análise de critérios técnicos que não cabem ao juízo criminal, especialmente em sede de habeas corpus. Essa incumbência está a cargo da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos.

Assim, a melhor solução é, inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela vigilância sanitária para que analise o caso concreto e decida se é viável a autorização para cultivar e ter a posse de plantas de Cannabis sativa L. para fins medicinais, suprindo a exigência contida no art. 33 da Lei n. 11.343/2006, e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível competente.