RECURSO ESPECIAL Nº 1.904.374 - DF (2020/0143768-8)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. OMISSÕES.
INOCORRÊNCIA. QUESTÕES DECIDIDAS PELO ACÓRDÃO RECORRIDO.
QUESTÃO CONSTITUCIONAL QUE DEVE SER EXAMINADA EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. EFEITO EX
TUNC COMO REGRA. MODULAÇÃO TEMPORAL DE EFEITOS E EFICÁCIA EX
NUNC COMO EXCEÇÃO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DA MODULAÇÃO DE
EFEITOS. NECESSIDADE. TEMA 809/STF. APLICABILIDADE AOS PROCESSOS
EM QUE NÃO TENHA HAVIDO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE
PARTILHA. TUTELA DA CONFIANÇA E PREVISIBILIDADE DAS RELAÇÕES
PROCESSUAIS FINALIZADAS SOB A ÉGIDA DO ART. 1.790 DO CC/2002.
PRÉ-EXISTÊNCIA DE DECISÃO EXCLUINDO HERDEIRO DA SUCESSÃO À LUZ DO
DISPOSITIVO POSTERIORMENTE DECLARADO INCONSTITUCIONAL.
IRRELEVÂNCIA. AÇÃO DE INVENTÁRIO SEM SENTENÇA DE PARTILHA E SEM
TRÂNSITO EM JULGADO. EQUIPARAÇÃO COM DECISÃO PROFERIDA NO
CURSO DO INVENTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE.
POSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO EM IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE
SENTENÇA QUE IMPLICA NA POSSIBILIDADE DE SEU EXAME NA FASE DE
CONHECIMENTO.
1- Ação proposta em 03/02/2004. Recurso especial interposto em
25/11/2019 e atribuído à Relatora em 07/10/2020.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o acórdão recorrido
possui omissões relevantes; (ii) se a tese fixada pelo Supremo Tribunal
Federal por ocasião do julgamento do tema 809, segundo a qual “é
inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e
companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto
nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art.
1.829 do CC/2002”, deve ser aplicada ao inventário em que a exclusão da
concorrência entre herdeiros ocorreu em decisão anterior à tese.
3- Inexiste omissão quando o acórdão recorrido enfrenta amplamente a
questão controvertida, ainda que contrariamente aos interesses da parte
recorrente, bem como inexiste omissão quando a questão que se alega deveria ter sido enfrentada possui natureza constitucional e não houve a
interposição de recurso extraordinário pela parte.
4- Considerando que a lei incompatível com o texto constitucional padece do
vício de nulidade, a declaração de sua inconstitucionalidade, de regra,
produz efeito ex tunc, ressalvadas as hipóteses em que, no julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal, houver a modulação temporal dos efeitos, que é
excepcional.
5- Da excepcionalidade da modulação decorre a necessidade de que o
intérprete seja restritivo, a fim de evitar inadequado acréscimo de conteúdo
sobre aquilo que o intérprete autêntico pretendeu proteger e salvaguardar.
6- Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 (tema 809),
o Supremo Tribunal Federal modulou temporalmente a aplicação da tese
para apenas “os processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito
em julgado da sentença de partilha”, de modo a tutelar a confiança e a
conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas (ou seja,
às ações de inventário concluídas nas quais foi aplicado o art. 1.790 do
CC/2002).
7- Aplica-se a tese fixada no tema 809/STF às ações de inventário em que
ainda não foi proferida a sentença de partilha, ainda que tenha havido, no
curso do processo, a prolação de decisão que, aplicando o art. 1.790 do
CC/2002, excluiu herdeiro da sucessão e que a ela deverá retornar após a
declaração de inconstitucionalidade e a consequente aplicação do art. 1.829
do CC/2002.
8- Não são equiparáveis, para os fins da aplicação do tema 809/STF, as
sentenças de partilha transitadas em julgado e as decisões que,
incidentalmente, versam sobre bens pertencentes ao espólio, uma vez que a
inconstitucionalidade de lei, enquanto questão de ordem pública, é matéria
suscetível de arguição em impugnação ao cumprimento de sentença e que,
com muito mais razão, pode ser examinada na fase de conhecimento.
9- Recurso especial conhecido e desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e negar provimento ao
recurso especial nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros
Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura
Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Dr. GUSTAVO HENRIQUE CAPUTO BASTOS, pela parte RECORRENTE: TIAGO
BASTOS DE MIRANDA RIBEIRO e Outro
Brasília (DF), 13 de abril de 2021(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por VITOR BASTOS DE
MIRANDA RIBEIRO e TIAGO BASTOS DE MIRANDA, com base no art. 105, III, alínea
“a” do permissivo constitucional, contra o acórdão do TJ/DFT que, por
unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento por eles interposto.
Recurso especial interposto e m: 25/11/2019.
Atribuído ao gabinete e m: 07/10/2020.
Ação: de inventário e partilha de bens de SADY CARNOT ASSIS DE
MIRANDA RIBEIRO.
Decisão interlocutória: diante da declaração de
inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 pelo Supremo Tribunal Federal
(tema 809/STF), que equiparou o regime sucessório entre cônjuges e
companheiros, determinou fosse aplicado ao inventário e partilha de bens de SADY
a regra do art. 1.829 do CC/2002, razão pela qual a recorrida ROSANE DE
AZAMBUJA VILLANOVA, companheira de SADY, passou a concorrer com os
descendentes em relação aos bens particulares deixados pelo falecido (fls.
843/844 e fl. 849, e-STJ).
Acórdão do TJ/DFT: por unanimidade, negou provimento ao agravo
de instrumento interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO
ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS. INCONSTITUCIONALIDADE. APLICAÇÃO
DO ART. 1829 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS Nº 646.721/RS
E Nº 878.694/MG. DECISÃO MANTIDA.
1. A hipótese consiste em verificar se determinado bem imóvel
deve, ou não, ser incluído na herança da ex-companheira do falecido.
2. Ressalta-se que por ocasião do julgamento realizado no dia 10
de maio de 2017, ao apreciar os Recursos Extraordinários nº 646.721/RS e nº
878694/MG, o Excelso Supremo Tribunal Federal declarou a
inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil e fixou a seguinte tese: “É
inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e
companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto
nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829
do CC/2002”.
3. No caso, o processo principal ainda não foi sentenciado, razão
pela qual os efeitos da mencionada declaração de inconstitucionalidade
certamente atingiram a decisão que aplicou o art. 1790 do Código Civil e excluiu
a ex-companheira da partilha referente ao bem imóvel questionado, tendo em
vista que ela foi fundamentada essencialmente na aplicação de disposição que
deixou de ser válida perante o sistema normativo pátrio.
4. Frise-se que a consequência prática dessa afirmação é a
aplicação do art. art. 1829, e seguintes, do Código Civil e não o art. 1790
anteriormente mencionado. Isso porque o companheiro passou a ser tratado de
forma isonômica, atraindo para si o mesmo regime jurídico aplicável ao cônjuge.
5. Recurso conhecido e desprovido (fls. 875/881, e-STJ).
Embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram
rejeitados, por unanimidade (fls. 883/888, e-STJ).
Recurso especial: alega-se, em síntese: (i) violação ao art. 1.022, I e
parágrafo único, II, e ao art. 489, §1º, IV e V, ambos do CPC/15, ao fundamento de
que o acórdão recorrido possuiria omissões relevantes acerca da existência de
coisa julgada formal e de impossibilidade de a decisão do STF produzir efeitos
vinculantes; (ii) violação aos arts. 203, §2º, 503, §1º, 505, 507 e 927, todos do
CPC/15, ao fundamento de que, em decisão interlocutória acobertada pela
preclusão, a recorrida ROSANE foi excluída da concorrência com os herdeiros em
relação a um determinado bem imóvel, razão pela qual a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no tema 809 não se aplicaria à hipótese e não poderia
ela ser considerada, posteriormente, herdeira do referido bem (fls. 401/431,
e-STJ).
Parecer do Ministério Público Federal: opinou pelo não
conhecimento do recurso especial (fls. 908/924, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o acórdão
recorrido possui omissões relevantes; (ii) se a tese fixada pelo Supremo Tribunal
Federal por ocasião do julgamento do tema 809, segundo a qual “é inconstitucional
a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art.
1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento
quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”, deve ser aplicada
ao inventário em que a exclusão da concorrência entre herdeiros ocorreu em
decisão anterior à tese.
EXISTÊNCIA DE OMISSÕES RELEVANTES. ALEGADA VIOLAÇÃO
AO ART. 1.022, I E PARÁGRAFO ÚNICO, II, E ART. 489, §1º, IV E V,
AMBOS DO CPC.
01) De início, anote-se que os recorrentes alegaram a violação aos
arts. 1.022, I, parágrafo único, II, e 489, §1º, IV e V, ambos do CPC/15,
especialmente ao fundamento de que existiriam duas omissões relevantes no
acórdão recorrido, que não teria examinado: (i) a existência de coisa julgada formal
decorrente de decisão versando sobre a concorrência hereditária proferida antes da fixação da tese pelo Supremo Tribunal Federal e acobertada pela preclusão
temporal; (ii) a inexistência de efeito vinculante na decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade por ocasião do
julgamento do tema 809.
02) Em relação ao primeiro ponto, não há omissão, na medida em que
a questão controvertida – existência de coisa julgada formal ou de preclusão que
impediria novo exame da matéria – foi amplamente enfrentada pelo acórdão
recorrido, que, interpretando a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento do tema 809, concluiu ser ela aplicável em virtude de ainda não
existir, na hipótese, sentença de partilha transitada em julgado.
03) No que se refere ao segundo aspecto, sublinhe-se que que a
eficácia vinculante da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em controle
difuso de constitucionalidade, a despeito de positivada nos arts. 525, §12, e 535,
§5º, ambos do CPC/15, é matéria de índole constitucional – os próprios
recorrentes afirmam que o acórdão recorrido deveria ter se pronunciado sobre os
arts. 52, X, e 102, III e §2º, ambos da Constituição Federal – razão pela qual
eventual omissão sobre a questão constitucional deveria ter sido objeto de
oportuna impugnação em recurso extraordinário não interposto pelas partes.
04) Diante desse cenário, não há que se falar em existência de
omissões relevantes no acórdão recorrido.
DA APLICABILIDADE DA TESE FIXADA NO JULGAMENTO DO
TEMA 809/STF À HIPÓTESE. VIOLAÇÃO À COISA JULGADA. ALEGADA
VIOLAÇÃO AOS ARTS. 203, §2º, 503, §1º, 505, 507 E 927, TODOS DO
CPC/15.
05) Para melhor contextualizar a controvérsia, sublinhe-se que o juízo
do inventário de SADY CARNOT ASSIS DE MIRANDA RIBEIRO, diante de sentença
que reconheceu a existência de união estável entre o falecido e a recorrida
ROSANE no período entre 1997 e janeiro de 2004, proferiu em 09/10/2014 a
decisão de fl. 517 (e-STJ) que, aplicando expressamente o art. 1.790 do CC/2002,
reconheceu que ROSANE apenas teria direito aos bens adquiridos onerosamente
durante a união estável com o falecido, a serem identificados pelo inventariante e
pelos demais herdeiros.
06) Sobrevieram, então, petições do inventariante e das partes em
cumprimento das referidas determinações judiciais e, após o contraditório, o juízo
do inventário proferiu em 22/05/2015 a decisão de fls. 534/535 (e-STJ), vazada nos
seguintes termos:
Em relação ao imóvel de fl. 167, está evidenciada a data de sua
aquisição conforme certidão de matrícula em referência, não participando a Sra.
Rosane da sua aquisição visto que o registro de compra e venda data o ano de
1995, anterior ao início de sua relação com o inventariado. Consequentemente
os valores decorrentes da locação do imóvel também serão devidos somente
aos filhos.
07) Por ocasião do julgamento do RE 878.694/MG com repercussão
geral reconhecida (tema 809), cujo acórdão foi publicado no DJe de 06/02/2018, o
Pleno do Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “é inconstitucional a
distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art.
1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento
quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”.
08) Naquela assentada, o Supremo Tribunal Federal, levando em
“consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre
as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas)”, entendeu por bem modular
temporalmente os efeitos da aplicação da tese acima enunciada, de modo
que a referida solução deve “ser aplicada apenas aos processos judiciais em que
ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como
às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública”.
09) Em face dessa nova realidade, o juízo do inventário proferiu a
decisão de fls. 843/844 (e-STJ) em que determinou a inclusão, no rol de bens
partilháveis entre a recorrida e os recorrentes, do bem imóvel que havia sido
outrora excluído da partilha mediante a aplicação do art. 1.790 do CC/2002. Ao
julgar os embargos de declaração opostos pelos recorrentes (fl. 849, e-STJ), o juízo
do inventário consignou expressamente a aplicação do precedente do Supremo
Tribunal Federal:
O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no julgamento
dos Recursos Extraordinários nos 646721 e 878694, ambos com repercussão
geral reconhecida, declarou inconstitucional a distinção de regimes sucessórios
entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do CC/2002, devendo
ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o
regime do artigo 1.829 do CC/2002.
Assim, a companheira concorre com os descendentes em relação
aos bens particulares deixados pelo falecido, nos termos do inciso I do artigo
1.829 do Código Civil de 2002.
10) O acórdão recorrido, mantendo a decisão acima reproduzida,
assim se pronunciou quanto ao ponto:
A decisão de fl. 12 (Id. 7177331), proferida em 9 de outubro de
2014, aplicou o art. 1790 do Código Civil e excluiu a ex-companheira da partilha
referente ao bem imóvel questionado, pois o referido bem foi adquirido pelo
falecido antes da constância da união estável.
Dessa forma, sob o fundamento da aludida regra, a
ex-companheira não poderia ter sido incluída na partilha do mencionado bem
imóvel, seja na posição de meeira ou de herdeira.
Ocorre que por ocasião do julgamento realizado no dia 10 de maio de 2017, ao apreciar os Recursos Extraordinários nº 646.721/RS e nº
878694/MG, o Excelso Supremo Tribunal Federal declarou a
inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil...
(...)
Na ocasião, excepcionou-se a regra geral da invalidade da norma
inconstitucional (efeitos ex tunc) com a modulação dos efeitos do acórdão, em
respeito ao princípio da segurança jurídica. Assim, a afirmada
inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil produz efeitos apenas em
relação aos inventários não acobertados pela eficácia do trânsito em julgado da
sentença.
O processo principal ainda não foi sentenciado, como os próprios
agravantes ressaltaram nas razões do agravo. Portanto, os efeitos da
supracitada declaração de inconstitucionalidade certamente atingiram a decisão
de fl. 12 (Id. 7177331), tendo em vista que esse provimento jurisdicional foi
fundamentado essencialmente na aplicação do dispositivo que não mais se
afigura válido em nosso sistema normativo.
A consequência prática dessa conclusão é a aplicação do art.
1829, e seguintes, do Código Civil ao presente caso e não o art. 1790 acima
referido. Isso porque o companheiro passou a ser tratado de forma isonômica,
atraindo para si o mesmo regime jurídico aplicável ao cônjuge.
Por isso, a recorrida deve ser admitida como herdeira para
concorrer com os descendentes na sucessão do falecido, inclusive em relação ao
bem imóvel situado no (...), de acordo com o art. 1829, inc. I, do Código Civil.
11) A tese dos recorrentes é de que as decisões que, aplicando o art.
1.790 do CC/2002, excluíram o bem imóvel da concorrência hereditária entre a
recorrida e os recorrentes estariam acobertadas pelo manto da imutabilidade
decorrente da preclusão e da coisa julgada formal, motivo pelo qual não
poderiam ser alcançadas pela superveniente declaração de inconstitucionalidade
da regra legal pelo Supremo Tribunal Federal.
12) A esse respeito, registre-se que a lei incompatível com o texto
constitucional padece do vício de nulidade e que a consequência disso é que,
como regra, a declaração de inconstitucionalidade de lei produz efeito ex tunc. Quanto ao ponto, leciona Luís Roberto Barroso:
A lógica do raciocínio é irrefutável. Se a Constituição é a lei
suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é violar
sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da
Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria. A teoria
constitucional não poderia conviver com essa contradição sem sacrificar o
postulado sobre o qual se assenta. Daí por que a inconstitucionalidade
deve ser tida como uma forma de nulidade, conceito que denuncia o
vício de origem e a impossibilidade de convalidação do ato. Corolário natural da teoria da nulidade é que a decisão
que reconhece a inconstitucionalidade tem caráter declaratório – e
não constitutivo – limitando-se a reconhecer uma situação preexistente. Como
consequência, seus efeitos se produzem retroativamente, colhendo a
lei desde o momento de sua entrada no mundo jurídico. Disso resulta
que, como regra, não serão admitidos efeitos válidos à lei
inconstitucional, devendo todas as relações jurídicas constituídas
com base nela voltar ao status quo ante. (BARROSO, Luís Roberto.
Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p.
16).
13) Todavia, é conhecida a lição e o entendimento que conferem
eficácia prospectiva (efeito ex nunc) às decisões que declaram a
inconstitucionalidade de lei, fundando-se em razões de diversas ordens – proteção
à boa-fé, tutela da confiança, previsibilidade, pragmatismo e consequencialismo
jurídico são algumas delas. A partir desses ideais é que se concebeu a denominada
modulação temporal dos efeitos da decisão que declara a
inconstitucionalidade.
14) Não se pode perder de vista, entretanto, que a retroatividade é
a regra e que a modulação de efeitos é a exceção. Nesse sentido, leciona
Teresa Arruda Alvim:
Importante consignar, todavia, que a utilização indevida da
modulação, transformando-a em regra, quando, na verdade, é exceção, pode
ensejar mais insegurança jurídica e estimular a edição de leis
inconstitucionais. A excepcionalidade desse instituto exige fundamentação
qualificada. Trata-se de instituto que deve ser excepcionalmente
usado, tanto no ambiente do controle concentrado, quanto no da alteração de
precedentes/jurisprudência firme, sendo este último o objeto principal deste
estudo. À época de sua concepção, foi visto como algo tão excepcional que o quórum para modular era (é) maior do que o exigido para a
própria declaração de inconstitucionalidade. (ALVIM, Teresa Arruda.
Modulação: na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 27).
15) Diante desse cenário, é correto afirmar que as interpretações
subsequentes da modulação de efeitos devem ser restritivas, a fim de que não
haja inadequado acréscimo de conteúdo exatamente aquilo que o intérprete
autêntico pretendeu, em caráter excepcional, proteger e salvaguardar.
16) Estabelecidas essas premissas, é preciso examinar o acórdão do
Supremo Tribunal que deu origem à tese fixada no tema 809, especificamente no
que tange à modulação de efeitos:
Por fim, não se pode esquecer que o tema possui
enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de
sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais
que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios
de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo
ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora
afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, a solução ora
alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que
ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada
escritura pública.
17) Como se percebe, a preocupação do Supremo Tribunal Federal é
tutelar a confiança e conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as
regras antigas (isto é, nas ações de inventário concluídas nas quais foi aplicado
o art. 1.790 do CC/2002), razão pela qual se fixou a tese de que a declaração de
inconstitucionalidade somente deverá alcançar os processos judiciais em que não
houve trânsito em julgado da sentença de partilha.
18) É incontroverso que, na hipótese, ainda não houve trânsito em julgado da sentença de partilha, mas, ao revés, somente a prolação de
decisões que versaram sobre a concorrência hereditária sobre um bem
específico.
19) Considerando ser incontroverso que a inconstitucionalidade é
uma questão de ordem pública, conclui-se que era lícito ao juízo do inventário,
que havia deliberado, em anteriores decisões, pela exclusão da recorrida da
sucessão hereditária em virtude da regra do art. 1.790 do CC/2002, rever seu
posicionamento, incluindo-a na sucessão, antes da prolação da sentença
de partilha, em virtude do reconhecimento da inconstitucionalidade do
dispositivo legal pelo Supremo Tribunal Federal.
20) Isso porque, desde a reforma promovida pela Lei 11.232/2005, a
declaração superveniente de inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal
Federal torna inexigível o título que nela se funda, tratando-se de matéria
suscetível de arguição em impugnação ao cumprimento de sentença – ou
seja, após o trânsito em julgado da sentença (art. 475, II e §1º, do CPC/73) –,
motivo pelo qual, com muito mais razão, deverá o juiz deixar de aplicar a lei
inconstitucional antes da sentença de partilha, marco temporal eleito pelo
Supremo Tribunal Federal para modular os efeitos da tese fixada no julgamento do
tema 809.
21) Assim, aplica-se à hipótese, por analogia, o recente
entendimento desta Corte, que, também interpretando o tema 809/STF, concluiu
que “a inexistência jurídica da sentença pode ser declarada em ação autônoma
(querela nullitatis insanabilis) e também no próprio processo em que
proferida, na fase de cumprimento de sentença ou até antes dela, se
possível, especialmente na hipótese em que a matéria foi previamente submetida
ao crivo do contraditório e não havia a necessidade de dilação probatória”. (REsp 1.857.852/SP, 3ª Turma, DJe 22/03/2021).
CONCLUSÃO.
22) Forte nessas razões, CONHEÇO e NEGO PROVIMENTO ao
recurso especial.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na
sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, conheceu e negou provimento ao recurso especial,
nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a).
Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente), Ricardo Villas Bôas Cueva,
Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.