RECURSO ESPECIAL Nº 1.757.123 - SP (2018/0190866-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. DECISÃO
INTERLOCUTÓRIA DE MÉRITO. NECESSIDADE DE EXAME DOS ELEMENTOS
QUE COMPÕEM O PEDIDO E DA POSSIBILIDADE DE DECOMPOSIÇÃO DO
PEDIDO. ASPECTOS DE MÉRITO DO PROCESSO. ALEGAÇÃO DE
IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONDIÇÃO DA AÇÃO AO TEMPO DO
CPC/73. SUPERAÇÃO LEGAL. ASPECTO DO MÉRITO APÓS O CPC/15.
RECORRIBILIDADE IMEDIATA DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE AFASTA A
ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ADMISSIBILIDADE.
ART. 1.015, II, CPC/15.
1- Ação proposta em 03/04/2017. Recurso especial interposto em
23/02/2018 e atribuído à Relatora em 16/08/2018.
2- O propósito recursal é definir se cabe agravo de instrumento, com base
no art. 1.015, II, do CPC/15, contra a decisão interlocutória que afasta a
arguição de impossibilidade jurídica do pedido.
3- Ao admitir expressamente a possibilidade de decisões parciais de mérito
quando uma parcela de um pedido suscetível de decomposição puder ser
solucionada antecipadamente, o CPC/15 passou a exigir o exame detalhado
dos elementos que compõem o pedido, especialmente em virtude da
possibilidade de impugnação imediata por agravo de instrumento da decisão
interlocutória que versar sobre mérito do processo (art. 1.015, II, CPC/15).
4- Para o adequado exame do conteúdo do pedido, não basta apenas que se
investigue a questão sob a ótica da relação jurídica de direito material
subjacente e que ampara o bem da vida buscado em juízo, mas, ao revés,
também é necessário o exame de outros aspectos relacionados ao mérito,
como, por exemplo, os aspectos temporais que permitem identificar a
ocorrência de prescrição ou decadência e, ainda, os termos inicial e final da
relação jurídica de direito material. Precedentes.
5- O enquadramento da possibilidade jurídica do pedido, na vigência do
CPC/73, na categoria das condições da ação, sempre foi objeto de severas
críticas da doutrina brasileira, que reconhecia o fenômeno como um aspecto do mérito do processo, tendo sido esse o entendimento adotado pelo
CPC/15, conforme se depreende de sua exposição de motivos e dos
dispositivos legais que atualmente versam sobre os requisitos de
admissibilidade da ação.
6- A possibilidade jurídica do pedido após o CPC/15, pois, compõe uma
parcela do mérito em discussão no processo, suscetível de decomposição e
que pode ser examinada em separado dos demais fragmentos que o
compõem, de modo que a decisão interlocutória que versar sobre essa
matéria, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, poderá
ser objeto de impugnação imediata por agravo de instrumento com base no
art. 1.015, II, CPC/15.
7- Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao
recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de
Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro
votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). MARIANA CUNHA GLIORIO GOZZANO, pela
parte RECORRENTE: OLAVO GLIORIO GOZZANO E ADVOGADOS ASSOCIADOS e Outro.
Brasília (DF), 13 de agosto de 2019(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por OLAVO GLIORIO
GOZZANO E ADVOGADOS ASSOCIADOS e OLAVO GLIORIO GOZZANO, com base na
alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/SP que, por
unanimidade, não conheceu do agravo de instrumento interposto pelos
recorrentes.
Recurso especial interposto em: 23/02/2018.
Atribuído ao gabinete e m: 16/08/2018.
Ação: de exigir contas ajuizada por RENATA CRISTINA OREFICE,
recorrida, em face dos recorrentes.
Decisão interlocutória: afastou a preliminar, arguida pelos
recorrentes, de impossibilidade jurídica do pedido, “pois na inicial a autora relatou
os fatos e especificou os motivos que a levaram a exigir contas” (fl. 19, e-STJ).
Acórdão: por unanimidade, não conheceu do agravo de instrumento
interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXIGIR CONTAS – MANDATO – DECISÃO QUE NÃO ACOLHEU AS ALEGAÇÕES DE IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA DO PEDIDO, INTERESSE DE AGIR E INÉPCIA DA INICIAL – MATÉRIAS QUE NÃO SE ENQUADRAM NO ROL TAXATIVO DO ARTIGO 1.015 DO NOVO CPC – RECURSO DE QUE NÃO SE CONHECE. (fls. 1.468/1.470, e-STJ).
Recurso especial: alega-se violação ao art. 1.015, II, do CPC/2015,
ao fundamento de que a decisão que não acolhe a arguição de impossibilidade
jurídica do pedido passou, a partir da nova legislação processual, a ser considerada
como uma decisão que diz respeito ao mérito do processo (fls. 1.473/1.492, e-STJ).
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal é definir se cabe agravo de instrumento, com
base no art. 1.015, II, do CPC/15, contra a decisão interlocutória que afasta a
arguição de impossibilidade jurídica do pedido.
1. DA IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
QUE AFASTA A ARGUIÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.015, II, DO CPC/15.
Inicialmente, lembre-se que a Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça, por ocasião do julgamento dos recursos especiais representativos da
controvérsia nº 1.696.396/MT e 1.704.520/MT, ambos com acórdãos publicados
no DJe de 19/12/2018, pronunciou-se expressamente pela impossibilidade de
uso da interpretação extensiva e da analogia para alargar as hipóteses de
cabimento do recurso de agravo de instrumento.
No ponto, aliás, anote-se ter havido unanimidade da Corte Especial,
na medida em que os e. Ministros que foram contrários à tese vencedora – taxatividade mitigada – filiaram-se ao entendimento de que o rol do art. 1.015 do CPC/15 era de taxatividade irrestrita, negando, consequentemente, a
possibilidade de interpretação extensiva ou de uso da analogia.
A tese veiculada neste recurso especial, contudo, não está fundada na
extensão ou na analogia, mas, sim, na abrangência e no exato conteúdo do art.
1.015, II, do CPC/15, merecendo trânsito o recurso, pois, sob esse enfoque.
Estabelecida essa premissa, anote-se que o conceito de decisão
interlocutória que versa sobre “mérito do processo” é composto por conceito
jurídico indeterminado que, sobretudo após a entrada em vigor do CPC/15,
precisa ser objeto profundas e renovadas reflexões, notadamente, em primeiro
lugar, porque a nova legislação processual civil incorpora ao direito positivo, de
modo expresso, a possibilidade de serem proferidas decisões parciais de
mérito.
Como se assentou em recente precedente desta 3ª Turma, o CPC/15
“passou a reconhecer, expressamente, o fenômeno segundo o qual pedidos ou
parcelas de pedidos podem amadurecer em momentos processuais distintos, seja
em razão de inexistir controvérsia sobre a questão, seja em virtude da
desnecessidade de dilação probatória para resolução daquela matéria”, a fim de
que “que tais questões possam ser solucionadas antecipadamente, por intermédio
de uma decisão parcial de mérito com aptidão para a formação de coisa julgada
material”. (REsp 1.798.975/SP, 3ª Turma, DJe 04/04/2019). No mesmo sentido:
REsp 1.702.725/RJ, 3ª Turma, DJe 28/06/2019.
Assim, é correto afirmar que algum dos pedidos cumulados ou
parcela do pedido único suscetível de decomposição podem ser
solucionados antecipadamente por intermédio de uma decisão parcial de
mérito, como, aliás, leciona-se na melhor doutrina:
2. Situações em que ocorre cumulação própria e simples
de pedidos e formulação de pedido único decomponível. O NCPC não
deixa mais qualquer dúvida, estabelecendo de forma clara a possibilidade de
fracionamento do mérito ou, em outras palavras, de que a resolução do mérito
possa ocorrer não só em sentença, ao final da fase cognitiva do procedimento
comum, mas também no curso do processo. O desmembramento do
julgamento de mérito em pronunciamentos distintos pressupõe que haja
cumulação própria e simples de pedidos, que é aquela em que o
autor formula mais de um pedido, no mesmo processo, esperando
que todos sejam acolhidos simultaneamente (art. 327). Nessa espécie de
cumulação, inexiste dependência lógica entre os pedidos, de maneira que é
possível, por exemplo, que o réu reconheceu a procedência jurídica de um deles
e impugne os demais. A fragmentação do julgamento de mérito pode
ocorrer, ainda, quando há formulação de um único pedido, que
permite ser decomposto. (ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia;
RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros
comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2ª Ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 687/688).
(...)
3. Fracionamento do mérito pode se referir a alguns
pedidos ou parcela deles. O juiz decidirá de forma parcial o mérito quando
alguns dos pedidos formulados (na demanda originária ou na reconvencional) se
enquadrar nas hipóteses indicadas nos incisos do texto legal em destaque. O
importante é que os pedidos em condições de imediato julgamento sejam
independentes dos demais, não podendo haver, por exemplo, cumulação
sucessiva de pedidos, sendo aquele que ainda depende de outras provas
pressuposto lógico para o acolhimento do outro pedido, que já estaria em
condições de ser apreciado. Assim, por exemplo, se o autor deduziu pedidos de
indenização por danos morais e materiais, mas se apenas o primeiro está em
condições de imediato julgamento, o juiz decidirá conclusivamente o pleito
relativa aos danos morais, determinando o prosseguimento do processo quanto
à indenização por danos materiais, para que outras provas sejam produzidas.
3.1. O fatiamento pode se dar dentro de um mesmo pedido. Assim,
por exemplo, em ação de cobrança em que se postula o pagamento
de cem mil reais, se o réu admite ser devido o valor de cinquenta mil
reais, esse montante se torna incontroverso e poderá o juiz apreciar
conclusivamente essa parcela, prosseguindo o processo para a fase
instrutória, relativamente à diferença controvertida. (GAJARDONI,
Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR.,
Zulmar. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao
CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016. p. 163).
Para melhor compreensão do fenômeno da possibilidade de
decomposição do pedido em fragmentos, é preciso destacar que o pedido é inicialmente cindível em imediato e mediato. Como destaca Carlos Eduardo
Stefen Elias:
O pedido imediato corresponde ao tipo de providência solicitada
(classicamente, no processo de conhecimento: declaração, constituição ou
condenação do réu), o que determinará a natureza do processo e a forma do
procedimento; enquanto o pedido mediato carreia o comportamento ou,
conforme termo utilizado correntemente na doutrina, o “bem da vida” pleiteado
pelo autor. (ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. As reformas processuais e o princípio
da congruência entre sentença e pedido in Revista de Processo: RePro, vol. 33,
nº 158, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr. 2008, p. 46/47).
Daí porque, conforme lecionam Olavo de Oliveira Neto e Patrícia
Elias Cozzolino de Oliveira, “O objeto da ação, que entre nos tomou a
denominação de pedido, nada mais é do que aquilo que o autor pretende obter ao
ingressar com sua demanda em juízo, seja no tocante ao tipo de provimento
jurisdicional que requer do Estado, seja no tocante ao bem da vida que requer do
sujeito passivo da ação. É o próprio mérito da ação”. (OLIVEIRA NETO, Olavo de;
OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. A necessidade de pedido específico na ação
de indenização por dano moral in Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo:
RIASP, v. 12, nº 23, jan./jun. 2009. p. 254).
Para o adequado exame do pedido, não basta apenas que se
investigue a questão sob a ótica da relação jurídica de direito material subjacente e
que ampara o bem da vida buscado em juízo, mas, ao revés, também é necessário
o exame de outros aspectos relacionados ao mérito.
Nesse contexto, merece destaque o exame de aspectos temporais
do pedido, como, por exemplo, se ele foi deduzido em tempo hábil para que se
possa, ato contínuo, enfrentar o mérito sob a específica perspectiva da relação de
direito material.
Não é por outro motivo que esta Corte consolidou o entendimento de
que as decisões interlocutórias sobre prescrição e decadência (art. 487, II, do
CPC/15), por dizerem respeito a um aspecto temporal do pedido, versam sobre
o mérito e, assim, são agraváveis com base no art. 1.015, II, do CPC/15. A esse
respeito: REsp 1.738.756/MG, 3ª Turma, DJe 22/02/2019; REsp 1.695.936/MG, 2ª
Turma, DJe 19/12/2017; REsp 1.778.237/RS, 4ª Turma, DJe 28/03/2019 e REsp
1.772.839/SP, 4ª Turma, DJe 23/05/2019.
O aspecto da temporalidade do pedido pode ser visto ainda sob
outros e diferentes enfoques, como nas hipóteses em que a resolução da
controvérsia pressupõe a definição da data inicial e da data final da relação
jurídica de direito material. É um aspecto temporal do pedido (e,
consequentemente, do mérito) dizer, por exemplo, em ação em que se pretenda
a partilha de bens, qual o termo inicial e o termo final da relação havida entre
os cônjuges ou conviventes (REsp 1.798.795/SP, 3ª Turma, DJe 04/04/2019).
É nesse contexto, pois, que deve ser examinado o correto
enquadramento da possibilidade jurídica do pedido após a entrada em vigor da
nova legislação processual e, consequentemente, a eventual recorribilidade
imediata da decisão interlocutória que versa sobre o tema, a teor do art. 1.015, II,
do CPC/15.
Como é cediço, a inserção, no CPC/73, da possibilidade jurídica do
pedido na categoria das condições da ação decorre da adoção, por Alfredo
Buzaid, da teoria eclética da ação desenvolvida por Enrico Tullio Liebman e que
se fundava, essencialmente, em apenas uma situação exemplificativa: o
ajuizamento da ação de divórcio, ao tempo proibido na Itália.
Ocorre que, como detalhadamente noticia a doutrina, Liebman, já na
terceira edição de seu clássico Manual de Direito Processual Civil (publicado no ano em que foi aprovado o CPC/73), abandonou a possibilidade jurídica do pedido
como uma terceira condição da ação, o que se deve, justamente, ao fato de ter
sido aprovada a Lei nº 898 de 1970, que passou a permitir o divórcio na Itália,
fazendo com que, na doutrina de Liebman, a possibilidade jurídica do pedido
passasse a ser classificada, a partir daquele momento, conjuntamente com o
interesse de agir. (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 11ª
edição. Bahia: JusPodivm, 2009. p. 201).
Conclui-se, assim, que a possibilidade jurídica do pedido como terceira
condição da ação foi obra exclusiva do legislador do CPC/73 (que decorria, em
especial, do art. 267, VI) e que sofreu, desde a sua entrada em vigor, contundentes
críticas da doutrina que, àquela época, já qualificava a possibilidade jurídica do
pedido como uma questão de mérito.
Nesse sentido, confira-se a precisa lição de Ovídio Araújo Baptista
da Silva, Luiz Melíbio Uiraçaba Machado, Ruy Armando Gessinger e Fábio
Luiz Gomes:
Quanto à possibilidade jurídica do pedido, a lição de Calmon de
Passos é insuperável. Demonstra ele que não há qualquer distinção entre a
impossibilidade da tutela em abstrato e a pretendida no caso concreto, citando
como exemplo uma ação de usucapião em que o autor declinasse na inicial estar
na posse de determinado imóvel há oito anos com “animus” de dono,
requerendo a final que o juiz lhe declarasse proprietário; obviamente, pela
sistemática do Código seria julgado “carecedor da ação” ante a ausência de
previsão legal para o atendimento do pedido; por igual não se poderia falar em
julgamento de mérito. Contudo, segue Calmon, se este mesmo autor houvesse
ingressado com a ação alegando possuir a área há mais de dez anos e invocasse
o art. 156, §3º (da Constituição Federal de 1946), estaria presente a referida
“condição” da ação, ainda que durante a instrução do feito viesse a ficar
comprovada a posse só de oito anos; mas neste caso não haveria “carência” de
ação e sim julgamento de improcedência, ainda que resultante da
impossibilidade de aplicar a vontade da lei. Qual a diferença entre as duas
decisões, pergunta Calmon; ao que responde: Nenhuma, rigorosamente
nenhuma. (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da; MACHADO, Luiz Melíbio Uiraçaba;
GESSINGER, Ruy Armando; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil. Porto Alegre: Letras Jurídicas, 1983. p. 122).
É sintomático, pois, que o CPC/15 não tenha reproduzido a
possibilidade jurídica do pedido no atual art. 485, VI (que corresponde ao revogado
art. 267, VI, do CPC/73), limitando-se a dizer, agora, que o juiz não resolverá o
mérito somente quando “verificar ausência de legitimidade ou de interesse
processual”.
Nesse sentido, anote-se que a requalificação da possibilidade jurídica
do pedido, de uma condição da ação para uma questão de mérito, consta
expressamente da Exposição de Motivos do CPC/15:
Com o objetivo de se dar maior rendimento a cada processo,
individualmente considerado, e atendendo a críticas tradicionais da
doutrina, deixou, a possibilidade jurídica do pedido, de ser condição
da ação. A sentença que, à luz da lei revogada seria de carência da
ação, à luz do Novo CPC é de improcedência e resolve
definitivamente a controvérsia.
No âmbito doutrinário, ensinam José Maria Rosa Tesheiner e
Rennan Faria Krüger Thamay que “certo é que desapareceu a “possibilidade
jurídica do pedido” como condição da ação, e com razão, porque a doutrina veio a
concluir que ela não era senão uma hipótese de improcedência manifesta,
tratando-se, pois, de questão de mérito”. (TESHEINER, José Maria Rosa; THAMAY,
Rennan Faria Krüger. Condições da ação no novo CPC in Revista Magister de
Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 12, nº 68, set./out. 2015, p. 18).
Ainda nesse sentido, o tema foi amplamente abordado por Adroaldo
Furtado Fabrício, que assim leciona:
Antes de qualquer outra dúvida suscitada pela possibilidade
jurídica da demanda, uma primeira sempre inquietou a doutrina: seria mesmo
logicamente possível apartar do mérito essa questão? Ainda antes: faria sentido, a respeito de qualquer objeto, indagar se ele é possível ou não, para só depois
dirimir a questão de como ele é e o que é? E, sobretudo, seria razoável afirmar-se
que, quando se diz que a coisa não pode ser, continua viva a questão de apurar
se ela é? Algo assim como, em debate sobre haver o homem posto o pé na Lua,
perguntar-se previamente, e sem responder àquela outra questão, se esse feito
era ou não possível. Ora, se ele foi, era possível; se não foi, toda indagação sobre
ser ou não possível cai no vazio da mais absoluta inutilidade. O impossível é
aquilo que não se fez.
A imprestabilidade do conceito é patente. Concluindo-se que sim,
o pedido é compatível com o sistema, mas não se afirma desde logo sua
procedência, ter-se-á um fútil exercício acadêmico, a brigar com o escopo prático
do processo. Se a conclusão é negativa, frustram-se o esforço e o passivo
processual já acumulado e tudo retorna à estaca zero, permanecendo aberta a
porta à mesma demanda. Em um e outro caso, nada se ganhou ou progrediu; ao
contrário, perde-se o que já se haja feito e retorna-se à situação existente antes
da formação do processo.
Argumentar-se que o exame prévio da possibilidade economizaria
dispêndios talvez necessários à outra resposta seria inconclusivo: há todo um
juízo de admissibilidade, com abrangência muito maior, a ser exercitado. A
verificação prévia da razoabilidade da postulação (não apenas jurídica),
permitindo o eventual indeferimento liminar, assim como as muitas hipóteses de
julgamento sem resolução do mérito, asseguram ao julgador amplo instrumental
de filtragem das demandas inviáveis. Não há razão para destacar-se desse
conjunto o requisito em menção. Por que não, por exemplo, a impossibilidade
material, física, que também se pode expor prima facie? É arbitrário o critério que
erige em condição de existência (ou mesmo de regular exercício) da ação (como
direito, faculdade) um requisito de sua procedência, vale dizer, do acolhimento à
pretensão.
O brilhante alvitre de restringir-se a verificação dessa condição ao
pedido imediato (de prestação jurisdicional) não soluciona o impasse. Por certo,
parcela considerável das objeções que oponho ao conceito resultaria afastada.
Mas, de outra banda, esse mesmo conceito, assim desfigurado, já não
corresponderia ao laboriosamente construído pela doutrina anterior e, o que é
mais grave, o descaracterizaria como requisito ao qual se pretende subordinar o
conceito de ação. À parte essas considerações, não há como sustentar-se que a
decisão declaratória da impossibilidade jurídica seja estranha ao meritum causae – salvo, talvez, na modalidade atenuada que só contempla a inviabilidade da
pretensão processual. Essa negativa envolve necessariamente a afirmação de
que o autor não tem razão. Mais enfaticamente até do que ocorre na sentença
de improcedência, que declara a inexistência em concreto do direito subjetivo
invocado pelo autor: responde-lhe o juiz que esse pedido não se poderia atender
em qualquer caso ou circunstância, porque contrário ao próprio sistema.
Qualquer que seja o momento processual, e sem importar a extensão e natureza
do material com que trabalhou o julgador, o resultado final é de improcedência
da demanda porque estabelecido o convencimento judicial da sem-razão do
autor. O ser impossível o objeto da postulação é apenas um dos motivos pelos
quais ela pode ser repelida. Se dizemos ser impossível o homem ir à Lua, já fica
dito que o homem não foi à Lua. Por outro lado, se afirmada a possibilidade jurídica, sem avaliar-se
ainda a procedência, nada de útil se terá adiantado. Apenas estaria excluído um
dos motivos possíveis de improcedência, em exercício estéril de raciocínio. Em
regra, aliás, os juízes, sabiamente, não costumam entregar-se a esse onanismo
intelectual: se não é caso de improcedência prima facie da demanda (entre cujos
fundamentos cogitáveis está a impossibilidade), com evidência então já
suficiente, remetem o exame da matéria à sentença final de mérito – sua sede
natural (FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. O interesse de agir como pressuposto
processual in Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, nº 1, jan./abr. 2018, p.
174/176).
Finalmente, este também foi o entendimento desta Corte em recente
precedente, no qual se consignou:
“De se notar, ainda, que a terceira das
tradicionais condições da ação, a possibilidade jurídica do pedido, deixou de ser
prevista como requisito de admissibilidade da demanda, o que denota o
acolhimento pelo legislador da corrente doutrinária que há muito contestava a
possibilidade jurídica do pedido como categoria válida, pois que na verdade se
trataria de matéria de mérito (posição que posteriormente chegou mesmo a ser
adotada por Liebman). Com efeito, verifica-se que, no novo CPC, a possibilidade
jurídica do pedido passou a integrar o mérito da causa”. (AR 3.667/DF, 1ª Seção,
DJe 23/05/2016).
A conclusão, pois, é de que a possibilidade jurídica do pedido
compõe uma parcela do mérito em discussão no processo, suscetível de
decomposição e que pode ser examinada em separado dos demais
fragmentos que o compõem, razão pela qual a decisão interlocutória que versar
sobre esse tema, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, em
verdade, versará sobre uma parte do mérito que se cristalizará após o julgamento.
Na hipótese, a decisão interlocutória proferida em 1º grau de
jurisdição afastou a alegada impossibilidade jurídica do pedido, qualificando-a ainda
como preliminar, ao fundamento de que “na inicial a autora relatou os fatos e especificou os motivos que a levaram a exigir contas”. (fl. 19, e-STJ).
O acórdão recorrido, por sua vez, não conheceu do agravo de
instrumento interposto ao fundamento de que a preliminar de arguição de
impossibilidade jurídica do pedido não se amoldaria às hipóteses de cabimento do
referido recurso (fls. 1.468/1.470, e-STJ).
Ocorre que, conforme amplamente exposto nas razões de decidir
acima delineadas, a possibilidade jurídica do pedido, além de não ser mais uma
condição da ação a ser examinada em caráter preliminar (como era no CPC/73 por
expressa disposição legal), trata-se de parte da questão de mérito discutida no
processo, pouco importando, a esse respeito, que se trate de situação não
capitulada especificamente como hipótese de julgamento liminar de
improcedência do pedido (art. 332 do CPC/15), sobretudo porque a questão pode
não ser aferível ictu oculi, mas, ao revés, demandar a instauração de regular
contraditório.
Em síntese, por qualquer ângulo que se examine a questão em
debate, conclui-se que o acórdão recorrido violou o art. 1.015, II, do CPC/15.
2. CONCLUSÕES.
Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso
especial, determinando o retorno do processo ao TJ/SP para que, afastado o óbice
do cabimento, examine a alegação de que o pedido seria juridicamente impossível.