Aula 1 - 03/03/08
O Direito Processual moderno se assenta em três institutos fundamentais: Jurisdição, Ação e Processo. Jurisdição é a função preponderantemente estatal de tutela dos interesses dos particulares através de um órgão imparcial. Ação é o meio de exigir do Estado o exercício da jurisdição. Processo é o meio através do qual a jurisdição se exerce.
A
expressão direito de ação é usada em vários significados. É conveniente
conhecê-los para não pensarmos que existem tantas divergências doutrinárias
sobre seu conteúdo, pois muitas vezes as divergências resultam de os autores
estarem se referindo a direitos diversos ou a conteúdos diversos da expressão
direito de ação.
O primeiro significado do
direito de ação é o direito de acesso à justiça que está consagrado no inciso
XXXV do artigo 5º da constituição: nenhuma lesão ou ameaça poderá ser subtraída
a apreciação do poder judiciário. O direito de acesso à justiça ou a ação como
direito cívico é um direito de todos os cidadãos. Todos têm o direito de se
dirigir ao poder judiciário para obter uma resposta a respeito de qualquer
postulação. É um direito que decorre da dignidade humana, da cidadania e que é
conferido a todos indistintamente. O direito de ação como direito cívico nada
mais é do que a projeção judiciária do direito de petição que também está
consagrado nos incisos do artigo 5º: todos têm direito de se dirigir ao estado
para formular postulações. O Estado tem o dever de responder essas postulações.
O Estado serve ao cidadão. O Estado tem de responder a todas as provocações que
os cidadãos dirigirem a ele. Mas dizer que todos têm o direito de ação como
direito cívico não significa que todos que se dirigirem ao juiz formulando uma
postulação vão receber uma resposta favorável. E também não significa que todos
que se dirigirem ao juiz pedindo alguma coisa sejam realmente titulares do
direito material. Podem não ser. Mas toda vez que alguém se dirigir ao juiz
pedindo alguma coisa, o juiz tem o dever de dar uma resposta, ainda que seja
uma resposta dizendo que não vai dar resposta. Esse direito de ação como
direito cívico diz muito pouco ou quase nada em termos processuais, porque esse
é um direito dado a todos. Assim, se eu me dirigir ao juiz dizendo: o meu
vizinho de cima briga com a mulher hein. Acho que vossa excelência devia
separar os dois. O Juiz vai me dizer: você não tem nada a ver com isso. Não se
meta no casamento dos seus vizinhos. Mas ele vai ter que me dar uma resposta.
Então, ele diz muito pouco como instrumento de acesso a jurisdição, porque se a
jurisdição visa tutelar o direito dos envolvidos, nem sempre aquele que se
dirige ao juiz obtém essa tutela, pois muitas vezes ele nem tem direito a essa
tutela. Mas ele tem o direito de obter uma resposta.
O segundo significado do
direito de ação vigorou durante muito tempo na antiguidade, na idade média até
meados do século XIX. Mas depois foi muito criticado e até abandonado com a
emergência do direito processual como um direito autônomo e público, na segunda
metade do século XIX e no século XX. Mas hoje emerge novamente como um
significado garantistico muito importante. Isso é o que nós denominamos de ação
de direito material. O Estado de Direito contemporâneo se compromete a colocar
a disposição dos cidadãos meios eficazes de tutela dos seus direitos materiais,
porque se assim o Estado não o fizer, os direitos dos cidadãos consagrados na
própria constituição serão vazios, serão proclamações retóricas. Então quando o
inciso XXXV do artigo 5º diz que nenhuma lesão ou ameaça de direito poderá ser
subtraída a apreciação do poder judiciário e quando o §1º do mesmo artigo 5º
diz que todos os direitos consagrados nesse artigo tem eficácia imediata, ele
está instituindo o direito de ação como garantia de que todo aquele que for
titular de direito material terá o direito de acesso a justiça para garantir a
eficácia do seu direito material, para garantir que o seu direito subjetivo
seja efetivamente respeitado, toda vez que ele for lesado ou ameaçado. Porque
se o Estado de Direito não colocar a disposição do cidadão um meio de acesso a
tutela do seu direito material, que ele mesmo consagra, então não é Estado de
Direito. O Estado de Direito não é só aquele que declara que os cidadãos têm
direitos, é aquele que assegura a eficácia desses direitos. Assegura de fato na
prática. Assegura que todo aquele que tiver um direito lesado ou ameaçado será
por ele tutelado, para garantir a eficácia, a efetividade, o gozo pleno dos
direitos. A isso é que se chama ação de direito material. Esse conceito vigorou
na antiguidade, na idade média, até boa parte da idade contemporânea, porque os
romanos tinham essa idéia de que as ações serviam para garantir a eficácia dos
direitos. Aliás, no século XIX, se travou uma grande discussão se na verdade o
direito romano instituía direitos ou se instituía ações, porque, na prática, só
quando ele instituía ações é que os direitos eram garantidos. O nosso CC/1916
seguiu essa filosofia quando lá no artigo 75 estabeleceu que a todo direito
corresponde uma ação que o assegura. Mas em razão das criticas que toda a
teoria geral do processo veio fazendo a esse conceito de ação como meio de
garantia do direito material no sentido de afirmar que esse significado é
retrógrado, o CC/2002 acabou não repetindo esse artigo. Mas ele decorre da
própria constituição, da própria efetividade dos direitos fundamentais que está
escrita em termos expressos no § 1º do artigo 5º. Se todos os que têm o direito
material tem que ter ações para tutelá-los, então a lei não pode vir a dizer:
olha esse direito aqui não pode ser acionado
O terceiro significado em que a
ação é usada é impróprio: ação como direito a um processo justo. Claro que um
processo que assegure o contraditório, a ampla defesa e que se forme e se
desenvolva com o respeito a dignidade humana das partes, que assegure que o
juiz seja imparcial, seja realmente alguém que seja alheio aos interesses do
conflitos, que não tenha nenhum preconceito em relação as alegações das partes
ou a elas próprias, é muito importante. Mas essa já é uma utilização da
expressão direito de ação um pouco imprópria. Ela decorre de um direito de
acesso a justiça e de um direito a um processo justo, tanto que as convenções
européia e americana de direitos humanos ao definirem o acesso a justiça se
referem a um julgamento justo e rápido perante um órgão imparcial. “Um
julgamento justo e rápido”. Julgamento justo é um julgamento resultante de um
processo que tenha sido assegurado as partes a garantia do contraditório, da
ampla defesa, do devido processo legal, da imparcialidade do juiz, da
publicidade, da fundamentação das decisões. Mas aí não é propriamente de um
direito de acesso a justiça que estamos falando, mas sim do meio através do
qual esta jurisdição vai ser exercida, que é o processo.
O quarto significado do direito
de ação é importante teórica e tecnicamente. É o direito de ação como demanda.
Conjunto de questões de fato e de direito sobre as quais vai se exercer a
função jurisdicional. Quais são essas questões? São as questões que
identificam, que individualizam uma determinada demanda: partes, pedido e causa
de pedir. A mulher pediu contra o marido a decretação de sua separação porque o
marido a injuriou. Quais são as partes? A mulher que pede e o marido em face do
qual ela formulou o pedido. Qual é o pedido? É a separação conjugal, o término
da sociedade conjugal, a dissolução do casamento. Qual é a causa de pedir? A
grave infração do dever matrimonial de mútuo respeito praticada pelo marido
contra a mulher. Esse é o litígio, essa é a demanda. É sobre essas questões que
o juiz vai ter que exercer a jurisdição. Aí chega no dia da audiência e a
mulher diz: olha ele também praticou adultério. Aí o juiz diz: eu num posso
fazer nada. Proponha outra ação. Aqui nesse processo eu só posso examinar o
pedido de separação com fundamento na injúria, na ofensa e não no adultério.
Você não disse isso. Então, veja como a demanda é que vai delimitar o objeto da
jurisdição. O objeto da jurisdição é o pedido, mas é um pedido delimitado em
função daquelas partes e daquele direito, daquele fundamento jurídico que o
autor utilizou para sustentar a procedência daquele pedido. É em relação a
essas questões fático-jurídicas objetivas e subjetivas que o juiz vai exercer a
jurisdição. Outras questões entre as mesmas partes ou entre essas partes e
terceiros ou entre outras partes serão objetos demanda. A demanda individualiza
uma determinada ação. E a individualização, a identificação de uma demanda é
muito importante porque vai definir o alcance da decisão na hora do seu
cumprimento e vai incidir sobre vários institutos processuais como a coisa
julgada, por exemplo. Essa mulher não conseguiu provar a injúria. A separação
foi julgada improcedente. Ela pode agora pedir a separação por causa do
adultério? Pode. Não há coisa julgada quanto ao adultério, mas sim quanto à
injúria. Houve julgamento em relação à injúria, mas não ao adultério. Amanhã
ela renova o mesmo pedido: a separação, mas com base no adultério. É outra
ação, é outra demanda. A extensão objetivo-subjetiva da prestação jurisdicional
e sua imutabilidade vão depender dos elementos identificadores da demanda.
O quinto sentido do direito de
ação é o que mais no interessa. O quarto é importante, mas o quinto é ainda
mais. Esse significado é o de ação como direito à jurisdição. Ou melhor, numa
definição analítica, é a ação como direito subjetivo, público, autônomo e
abstrato de exigir a prestação jurisdicional ou o exercício da jurisdição a
respeito de uma determinada demanda ou a respeito de uma determinada pretensão
sobre direito material. Essa é a minha definição. Que eu considero um
aperfeiçoamento da definição que eu aprendi quando estudei com o meu professor
Moacir Amaral dos Santos, um grande processualista. Naquela época se dizia: o
direito de ação é o direito de provocar o exercício da jurisdição. Sim, eu
provoco, mas será que o meu direito se esgota com a propositura, com a
postulação? Não, o direito de ação não se esgota com a propositura da ação. O
direito de ação só vai ser respeitado no momento em que o juiz exercer a função
jurisdicional, acolhendo ou rejeitando o meu pedido, declarando se eu tenho ou
não tenho razão e aplicando aquela situação jurídica as conseqüências todas do
resultado do direito material, desde que eu tenha pedido. Então, na verdade o
direito de ação não é simplesmente o direito de postular, o direito de
provocar. Ah eu propus uma ação. Na verdade você não propôs uma ação, você
propôs um pedido. Ah eu já exerci o meu direito de ação? Não, eu comecei a
exercer o meu direito de ação, porque o meu direito de ação só estará
plenamente exercido no momento em que eu receber a prestação jurisdicional. É
por isso que o meu direito de ação não é simplesmente de provocar o exercício
da jurisdição, mas também o direito de exigir do Estado a prestação
jurisdicional. O direito de ação é um direito subjetivo público. É um direito
subjetivo porque esta foi a grande descoberta de juristas alemães que em torno
de 1856 e 1857 travaram aquela polêmica na Alemanha em torno da ação romana e
chegaram a conclusão que o direito de ação não era o próprio o direito
subjetivo material. Era um outro, com conteúdo diferente do direito material.
Quando eu reivindico em juízo a propriedade, que é o direito de usar, gozar e
dispor da coisa, o meu direito de ação não é o direito de usar, gozar e dispor
da coisa, mas sim o direito de exigir do Estado que proteja o meu direito de
usar, gozar e dispor da coisa. É um outro direito, não é o próprio direito
subjetivo. É um direito subjetivo público porque é um direito subjetivo a que
corresponde um dever do Estado: o dever que ele assumiu na constituição de
garantir a eficácia de todos os direitos e de assegurar o acesso à justiça a
todos aqueles que considerarem que tiveram um direito subjetivo material lesado
ou ameaçado. Houve uma certa polêmica no final do século XIX, no inicio do
século XX, se ação era um direito contra o Estado ou um direito contra o
adversário. A demanda que é contra o adversário, o pedido que é em relação ao
adversário. Então a ação naquele quarto sentido é um direito conferido a um
sujeito que em face de outro sujeito do qual ele pretende exigir o respeito a
seus direitos, mas a ação como direito a jurisdição é um direito em face do
Estado, é o Estado que tem o dever de prestar a jurisdição. É um direito
subjetivo público contra o Estado, ou seja, em face do Estado, a que
corresponde um dever do Estado. Direito subjetivo público autônomo e abstrato.
Esses dois atributos também foram duas conquistas da teoria geral do processo.
Autônomo porque não é o próprio direito subjetivo material, é outro, é o
direito à jurisdição. Abstrato porque o direito de ação existe
independentemente da existência do direito subjetivo material. E aí os
processualistas se dividiram entre os abstratistas e os concretistas.
Predominou a concepção do direito de ação como direito abstrato. Para os
concretistas, como Chiovenda e Calamandrei, a ação era um direito que só tinha
quem tivesse razão. Só o titular do direito subjetivo material é que exercia
adequadamente o direito de exigir a sua tutela na justiça. E aí como é que
ficava a sentença de improcedência? Quando o juiz chegasse a conclusão que o
autor não tinha razão, aí alguns deles diziam que aí era tutelado o direito do
réu. Mas os abstratistas desprenderam o direito de ação da existência ou não do
direito material. Basta que o autor afirme ser titular do direito material para
que ele tenha direito de ação. Na verdade se ele tem ou não aquele direito
material só será descoberto no final. Mas ainda que a sentença chegue a
conclusão que ele não tem o direito material, que o pedido seja julgado
improcedente, ele exerceu o seu direito de acesso à justiça, o direito de exigir
do Estado que exercesse a jurisdição sobre aquela relação jurídica. Então ele
teve o direito de ação, embora ele não tivesse o direito material. É por isso o
direito de ação é um direito abstrato. A crítica que se fazia aos concretistas
era a de que na verdade eles consideravam que aquele que fracassou na justiça,
não conseguindo provar a existência do seu direito, tinha praticado um ato
ilícito porque tinha provocado o exercício da jurisdição sem ter direito à
jurisdição, pois não tinha o direito material. O que os abstratistas disseram
foi que mesmo que ao final o autor não consiga provar que tinha o direito
material, se ele afirmou que tinha ele possuía o direito de ação e, portanto,
não praticou ato ilícito, mas sim lícito. Pode-se dizer que os abstratistas
abrem um pouco mais as portas da justiça, mas será que eles escancaram para
qualquer aventureiro? Aqui nós temos que enveredar um pouco na doutrina
processual contemporânea que alguns chamam de teoria eclética, que, ao meu ver,
não tem nada de eclética, que é a teoria dominante hoje. É uma teoria do
direito de ação como direito abstrato, independe da existência do direito
material, mas em que o autor tem que fundamentar sua afirmação de possuir o
direito material desde o início ainda que de modo incompleto, através de
apresentações de documentos (artigo 283 CPC/73). A existência do direito de ação
se afere in statu assertionis, ou seja, de acordo com as afirmações
fático-jurídicas feitas pelo autor na petição inicial. Assim, por exemplo, se a
mulher se declara casada com o marido e pede a separação, ela tem direito de
ação mesmo que depois no final do processo fique provado que ela não era casada
com o marido. A existência ou não do direito de ação se afere com base na
hipótese jurídica descrita pelo autor no momento em que iniciou a demanda. Essa
é a chamada teoria da asserção. Se nós levarmos ao extremo a teoria da asserção
nós vamos permitir que qualquer pessoa incomode outra propondo contra ela uma
ação, mesmo sem ter nenhuma prova mínima da existência do seu direito material.
Se eu afirmo que tenho um direito contra alguém eu posso propor uma ação contra
ele. Sim, mas onde é que você se baseia pra dizer que tem um direito contra
ele? Ah não importa, eu só estou afirmando. Isso numa sociedade como a nossa
com tantas desigualdades econômicas e sociais pode ser um grande problema, pois
alguém que queira molestar um inimigo o resto da vida poderia ficar contra ele
demandando a vida toda na justiça sem nenhuma consistência. Uma coisa é a
existência do direito material, outra coisa é a afirmação da existência do
direito material. A segunda é apenas uma condição hipotética, pode existir ou
não. A primeira só pode ser afirmada depois de ampla cognição, no momento da
sentença. Já a segunda é verificada no momento da petição inicial, momento no
qual se verifica se há as condições da ação. Para os concretistas só vai se
aferir se houve direito de ação no momento da sentença. Enquanto que para os
abstratistas você verifica desde a petição inicial de acordo com os fatos que o
autor relatou. A teoria da asserção não pode ser uma teoria que isente o autor
de qualquer ônus de comprovar minimamente a probabilidade de que ele tenha o
direito material. Exemplo: se ele está propondo uma ação de separação ele tem
que anexar a certidão de casamento. Se está propondo uma ação de despejo ele
tem que anexar o contrato. Se alega que foi atropelado na rua deve juntar o
boletim de ocorrência, os documentos do hospital. Por isso o artigo 283 diz que
a petição inicial tem que ser instruída dos documentos indispensáveis à
propositura da ação. O que são esses documentos? São os documentos
comprobatórios da probabilidade de que realmente o direito do autor por ele
afirmado exista ou possa existir. Caso contrário o autor levianamente poderia botar
qualquer réu na justiça. Permitir isso é negar o dever do Estado de garantir a
eficácia concreta dos direitos dos cidadãos. Porque se o Estado permite que eu
seja molestado a vida toda por outro sem nenhuma razão convincente, se ele não
garante o pleno gozo dos meus direitos, então ele não está cumprindo a promessa
do Estado de Democrático de Direito de ser o guardião da eficácia dos direitos
dos cidadãos. Então a ação nesse quinto sentido é um direito subjetivo público,
autônomo e abstrato de exigir do Estado o exercício da jurisdição sobre uma
determinada demanda. E se ação é o direito de exigir do Estado a prestação
jurisdicional sobre uma determinada demanda, não são todos os cidadãos que tem
todos os direitos de ação. Só tem o direito de ação cidadãos cujas demandas
apresentarem algumas condições mínimas que são as chamadas condições da ação.