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15 de agosto de 2021

Aula Leonardo Greco - 03/08/2008: Poder de ação

 Aula 1 - 03/03/08

O Direito Processual moderno se assenta em três institutos fundamentais: Jurisdição, Ação e Processo. Jurisdição é a função preponderantemente estatal de tutela dos interesses dos particulares através de um órgão imparcial. Ação é o meio de exigir do Estado o exercício da jurisdição. Processo é o meio através do qual a jurisdição se exerce.

     A expressão direito de ação é usada em vários significados. É conveniente conhecê-los para não pensarmos que existem tantas divergências doutrinárias sobre seu conteúdo, pois muitas vezes as divergências resultam de os autores estarem se referindo a direitos diversos ou a conteúdos diversos da expressão direito de ação.

     O primeiro significado do direito de ação é o direito de acesso à justiça que está consagrado no inciso XXXV do artigo 5º da constituição: nenhuma lesão ou ameaça poderá ser subtraída a apreciação do poder judiciário. O direito de acesso à justiça ou a ação como direito cívico é um direito de todos os cidadãos. Todos têm o direito de se dirigir ao poder judiciário para obter uma resposta a respeito de qualquer postulação. É um direito que decorre da dignidade humana, da cidadania e que é conferido a todos indistintamente. O direito de ação como direito cívico nada mais é do que a projeção judiciária do direito de petição que também está consagrado nos incisos do artigo 5º: todos têm direito de se dirigir ao estado para formular postulações. O Estado tem o dever de responder essas postulações. O Estado serve ao cidadão. O Estado tem de responder a todas as provocações que os cidadãos dirigirem a ele. Mas dizer que todos têm o direito de ação como direito cívico não significa que todos que se dirigirem ao juiz formulando uma postulação vão receber uma resposta favorável. E também não significa que todos que se dirigirem ao juiz pedindo alguma coisa sejam realmente titulares do direito material. Podem não ser. Mas toda vez que alguém se dirigir ao juiz pedindo alguma coisa, o juiz tem o dever de dar uma resposta, ainda que seja uma resposta dizendo que não vai dar resposta. Esse direito de ação como direito cívico diz muito pouco ou quase nada em termos processuais, porque esse é um direito dado a todos. Assim, se eu me dirigir ao juiz dizendo: o meu vizinho de cima briga com a mulher hein. Acho que vossa excelência devia separar os dois. O Juiz vai me dizer: você não tem nada a ver com isso. Não se meta no casamento dos seus vizinhos. Mas ele vai ter que me dar uma resposta. Então, ele diz muito pouco como instrumento de acesso a jurisdição, porque se a jurisdição visa tutelar o direito dos envolvidos, nem sempre aquele que se dirige ao juiz obtém essa tutela, pois muitas vezes ele nem tem direito a essa tutela. Mas ele tem o direito de obter uma resposta.

     O segundo significado do direito de ação vigorou durante muito tempo na antiguidade, na idade média até meados do século XIX. Mas depois foi muito criticado e até abandonado com a emergência do direito processual como um direito autônomo e público, na segunda metade do século XIX e no século XX. Mas hoje emerge novamente como um significado garantistico muito importante. Isso é o que nós denominamos de ação de direito material. O Estado de Direito contemporâneo se compromete a colocar a disposição dos cidadãos meios eficazes de tutela dos seus direitos materiais, porque se assim o Estado não o fizer, os direitos dos cidadãos consagrados na própria constituição serão vazios, serão proclamações retóricas. Então quando o inciso XXXV do artigo 5º diz que nenhuma lesão ou ameaça de direito poderá ser subtraída a apreciação do poder judiciário e quando o §1º do mesmo artigo 5º diz que todos os direitos consagrados nesse artigo tem eficácia imediata, ele está instituindo o direito de ação como garantia de que todo aquele que for titular de direito material terá o direito de acesso a justiça para garantir a eficácia do seu direito material, para garantir que o seu direito subjetivo seja efetivamente respeitado, toda vez que ele for lesado ou ameaçado. Porque se o Estado de Direito não colocar a disposição do cidadão um meio de acesso a tutela do seu direito material, que ele mesmo consagra, então não é Estado de Direito. O Estado de Direito não é só aquele que declara que os cidadãos têm direitos, é aquele que assegura a eficácia desses direitos. Assegura de fato na prática. Assegura que todo aquele que tiver um direito lesado ou ameaçado será por ele tutelado, para garantir a eficácia, a efetividade, o gozo pleno dos direitos. A isso é que se chama ação de direito material. Esse conceito vigorou na antiguidade, na idade média, até boa parte da idade contemporânea, porque os romanos tinham essa idéia de que as ações serviam para garantir a eficácia dos direitos. Aliás, no século XIX, se travou uma grande discussão se na verdade o direito romano instituía direitos ou se instituía ações, porque, na prática, só quando ele instituía ações é que os direitos eram garantidos. O nosso CC/1916 seguiu essa filosofia quando lá no artigo 75 estabeleceu que a todo direito corresponde uma ação que o assegura. Mas em razão das criticas que toda a teoria geral do processo veio fazendo a esse conceito de ação como meio de garantia do direito material no sentido de afirmar que esse significado é retrógrado, o CC/2002 acabou não repetindo esse artigo. Mas ele decorre da própria constituição, da própria efetividade dos direitos fundamentais que está escrita em termos expressos no § 1º do artigo 5º. Se todos os que têm o direito material tem que ter ações para tutelá-los, então a lei não pode vir a dizer: olha esse direito aqui não pode ser acionado em juízo. Direito não acionável não é direito. Isso não significa que a lei tenha que prever expressamente qual é ação para tutela daquele direito, porque o direito processual irá dizer que meio pode utilizar o titular do direito para assegurar a eficácia do seu direito. Aliás, o conceito de acesso a justiça hoje está muito vinculado a eficácia dos direitos. O professor Carreira Alvim costuma dizer: falam tanto de acesso à justiça, mas o difícil não é entrar na justiça, mas sim sair da justiça com o direito protegido. Ele tem razão. Acesso à justiça não é só o direito de petição, isso é ação como direito cívico. Acesso à justiça significa obter a proteção, a garantia da eficácia do direito. E lá vou eu comprovar que tenho direito. Se eu assim provar, o Estado tem que efetivamente garantir o pleno gozo do meu direito. E por isso hoje se fala em processo de resultado. Expressão que não gosto não, mas que mostra esse pragmatismo, essa utilidade que tem que ter o processo, como meio de exercício da jurisdição, e essa noção de ação, como direito a exigir do Estado a tutela do direito material.

     O terceiro significado em que a ação é usada é impróprio: ação como direito a um processo justo. Claro que um processo que assegure o contraditório, a ampla defesa e que se forme e se desenvolva com o respeito a dignidade humana das partes, que assegure que o juiz seja imparcial, seja realmente alguém que seja alheio aos interesses do conflitos, que não tenha nenhum preconceito em relação as alegações das partes ou a elas próprias, é muito importante. Mas essa já é uma utilização da expressão direito de ação um pouco imprópria. Ela decorre de um direito de acesso a justiça e de um direito a um processo justo, tanto que as convenções européia e americana de direitos humanos ao definirem o acesso a justiça se referem a um julgamento justo e rápido perante um órgão imparcial. “Um julgamento justo e rápido”. Julgamento justo é um julgamento resultante de um processo que tenha sido assegurado as partes a garantia do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, da imparcialidade do juiz, da publicidade, da fundamentação das decisões. Mas aí não é propriamente de um direito de acesso a justiça que estamos falando, mas sim do meio através do qual esta jurisdição vai ser exercida, que é o processo.

     O quarto significado do direito de ação é importante teórica e tecnicamente. É o direito de ação como demanda. Conjunto de questões de fato e de direito sobre as quais vai se exercer a função jurisdicional. Quais são essas questões? São as questões que identificam, que individualizam uma determinada demanda: partes, pedido e causa de pedir. A mulher pediu contra o marido a decretação de sua separação porque o marido a injuriou. Quais são as partes? A mulher que pede e o marido em face do qual ela formulou o pedido. Qual é o pedido? É a separação conjugal, o término da sociedade conjugal, a dissolução do casamento. Qual é a causa de pedir? A grave infração do dever matrimonial de mútuo respeito praticada pelo marido contra a mulher. Esse é o litígio, essa é a demanda. É sobre essas questões que o juiz vai ter que exercer a jurisdição. Aí chega no dia da audiência e a mulher diz: olha ele também praticou adultério. Aí o juiz diz: eu num posso fazer nada. Proponha outra ação. Aqui nesse processo eu só posso examinar o pedido de separação com fundamento na injúria, na ofensa e não no adultério. Você não disse isso. Então, veja como a demanda é que vai delimitar o objeto da jurisdição. O objeto da jurisdição é o pedido, mas é um pedido delimitado em função daquelas partes e daquele direito, daquele fundamento jurídico que o autor utilizou para sustentar a procedência daquele pedido. É em relação a essas questões fático-jurídicas objetivas e subjetivas que o juiz vai exercer a jurisdição. Outras questões entre as mesmas partes ou entre essas partes e terceiros ou entre outras partes serão objetos demanda. A demanda individualiza uma determinada ação. E a individualização, a identificação de uma demanda é muito importante porque vai definir o alcance da decisão na hora do seu cumprimento e vai incidir sobre vários institutos processuais como a coisa julgada, por exemplo. Essa mulher não conseguiu provar a injúria. A separação foi julgada improcedente. Ela pode agora pedir a separação por causa do adultério? Pode. Não há coisa julgada quanto ao adultério, mas sim quanto à injúria. Houve julgamento em relação à injúria, mas não ao adultério. Amanhã ela renova o mesmo pedido: a separação, mas com base no adultério. É outra ação, é outra demanda. A extensão objetivo-subjetiva da prestação jurisdicional e sua imutabilidade vão depender dos elementos identificadores da demanda.

     O quinto sentido do direito de ação é o que mais no interessa. O quarto é importante, mas o quinto é ainda mais. Esse significado é o de ação como direito à jurisdição. Ou melhor, numa definição analítica, é a ação como direito subjetivo, público, autônomo e abstrato de exigir a prestação jurisdicional ou o exercício da jurisdição a respeito de uma determinada demanda ou a respeito de uma determinada pretensão sobre direito material. Essa é a minha definição. Que eu considero um aperfeiçoamento da definição que eu aprendi quando estudei com o meu professor Moacir Amaral dos Santos, um grande processualista. Naquela época se dizia: o direito de ação é o direito de provocar o exercício da jurisdição. Sim, eu provoco, mas será que o meu direito se esgota com a propositura, com a postulação? Não, o direito de ação não se esgota com a propositura da ação. O direito de ação só vai ser respeitado no momento em que o juiz exercer a função jurisdicional, acolhendo ou rejeitando o meu pedido, declarando se eu tenho ou não tenho razão e aplicando aquela situação jurídica as conseqüências todas do resultado do direito material, desde que eu tenha pedido. Então, na verdade o direito de ação não é simplesmente o direito de postular, o direito de provocar. Ah eu propus uma ação. Na verdade você não propôs uma ação, você propôs um pedido. Ah eu já exerci o meu direito de ação? Não, eu comecei a exercer o meu direito de ação, porque o meu direito de ação só estará plenamente exercido no momento em que eu receber a prestação jurisdicional. É por isso que o meu direito de ação não é simplesmente de provocar o exercício da jurisdição, mas também o direito de exigir do Estado a prestação jurisdicional. O direito de ação é um direito subjetivo público. É um direito subjetivo porque esta foi a grande descoberta de juristas alemães que em torno de 1856 e 1857 travaram aquela polêmica na Alemanha em torno da ação romana e chegaram a conclusão que o direito de ação não era o próprio o direito subjetivo material. Era um outro, com conteúdo diferente do direito material. Quando eu reivindico em juízo a propriedade, que é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, o meu direito de ação não é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, mas sim o direito de exigir do Estado que proteja o meu direito de usar, gozar e dispor da coisa. É um outro direito, não é o próprio direito subjetivo. É um direito subjetivo público porque é um direito subjetivo a que corresponde um dever do Estado: o dever que ele assumiu na constituição de garantir a eficácia de todos os direitos e de assegurar o acesso à justiça a todos aqueles que considerarem que tiveram um direito subjetivo material lesado ou ameaçado. Houve uma certa polêmica no final do século XIX, no inicio do século XX, se ação era um direito contra o Estado ou um direito contra o adversário. A demanda que é contra o adversário, o pedido que é em relação ao adversário. Então a ação naquele quarto sentido é um direito conferido a um sujeito que em face de outro sujeito do qual ele pretende exigir o respeito a seus direitos, mas a ação como direito a jurisdição é um direito em face do Estado, é o Estado que tem o dever de prestar a jurisdição. É um direito subjetivo público contra o Estado, ou seja, em face do Estado, a que corresponde um dever do Estado. Direito subjetivo público autônomo e abstrato. Esses dois atributos também foram duas conquistas da teoria geral do processo. Autônomo porque não é o próprio direito subjetivo material, é outro, é o direito à jurisdição. Abstrato porque o direito de ação existe independentemente da existência do direito subjetivo material. E aí os processualistas se dividiram entre os abstratistas e os concretistas. Predominou a concepção do direito de ação como direito abstrato. Para os concretistas, como Chiovenda e Calamandrei, a ação era um direito que só tinha quem tivesse razão. Só o titular do direito subjetivo material é que exercia adequadamente o direito de exigir a sua tutela na justiça. E aí como é que ficava a sentença de improcedência? Quando o juiz chegasse a conclusão que o autor não tinha razão, aí alguns deles diziam que aí era tutelado o direito do réu. Mas os abstratistas desprenderam o direito de ação da existência ou não do direito material. Basta que o autor afirme ser titular do direito material para que ele tenha direito de ação. Na verdade se ele tem ou não aquele direito material só será descoberto no final. Mas ainda que a sentença chegue a conclusão que ele não tem o direito material, que o pedido seja julgado improcedente, ele exerceu o seu direito de acesso à justiça, o direito de exigir do Estado que exercesse a jurisdição sobre aquela relação jurídica. Então ele teve o direito de ação, embora ele não tivesse o direito material. É por isso o direito de ação é um direito abstrato. A crítica que se fazia aos concretistas era a de que na verdade eles consideravam que aquele que fracassou na justiça, não conseguindo provar a existência do seu direito, tinha praticado um ato ilícito porque tinha provocado o exercício da jurisdição sem ter direito à jurisdição, pois não tinha o direito material. O que os abstratistas disseram foi que mesmo que ao final o autor não consiga provar que tinha o direito material, se ele afirmou que tinha ele possuía o direito de ação e, portanto, não praticou ato ilícito, mas sim lícito. Pode-se dizer que os abstratistas abrem um pouco mais as portas da justiça, mas será que eles escancaram para qualquer aventureiro? Aqui nós temos que enveredar um pouco na doutrina processual contemporânea que alguns chamam de teoria eclética, que, ao meu ver, não tem nada de eclética, que é a teoria dominante hoje. É uma teoria do direito de ação como direito abstrato, independe da existência do direito material, mas em que o autor tem que fundamentar sua afirmação de possuir o direito material desde o início ainda que de modo incompleto, através de apresentações de documentos (artigo 283 CPC/73). A existência do direito de ação se afere in statu assertionis, ou seja, de acordo com as afirmações fático-jurídicas feitas pelo autor na petição inicial. Assim, por exemplo, se a mulher se declara casada com o marido e pede a separação, ela tem direito de ação mesmo que depois no final do processo fique provado que ela não era casada com o marido. A existência ou não do direito de ação se afere com base na hipótese jurídica descrita pelo autor no momento em que iniciou a demanda. Essa é a chamada teoria da asserção. Se nós levarmos ao extremo a teoria da asserção nós vamos permitir que qualquer pessoa incomode outra propondo contra ela uma ação, mesmo sem ter nenhuma prova mínima da existência do seu direito material. Se eu afirmo que tenho um direito contra alguém eu posso propor uma ação contra ele. Sim, mas onde é que você se baseia pra dizer que tem um direito contra ele? Ah não importa, eu só estou afirmando. Isso numa sociedade como a nossa com tantas desigualdades econômicas e sociais pode ser um grande problema, pois alguém que queira molestar um inimigo o resto da vida poderia ficar contra ele demandando a vida toda na justiça sem nenhuma consistência. Uma coisa é a existência do direito material, outra coisa é a afirmação da existência do direito material. A segunda é apenas uma condição hipotética, pode existir ou não. A primeira só pode ser afirmada depois de ampla cognição, no momento da sentença. Já a segunda é verificada no momento da petição inicial, momento no qual se verifica se há as condições da ação. Para os concretistas só vai se aferir se houve direito de ação no momento da sentença. Enquanto que para os abstratistas você verifica desde a petição inicial de acordo com os fatos que o autor relatou. A teoria da asserção não pode ser uma teoria que isente o autor de qualquer ônus de comprovar minimamente a probabilidade de que ele tenha o direito material. Exemplo: se ele está propondo uma ação de separação ele tem que anexar a certidão de casamento. Se está propondo uma ação de despejo ele tem que anexar o contrato. Se alega que foi atropelado na rua deve juntar o boletim de ocorrência, os documentos do hospital. Por isso o artigo 283 diz que a petição inicial tem que ser instruída dos documentos indispensáveis à propositura da ação. O que são esses documentos? São os documentos comprobatórios da probabilidade de que realmente o direito do autor por ele afirmado exista ou possa existir. Caso contrário o autor levianamente poderia botar qualquer réu na justiça. Permitir isso é negar o dever do Estado de garantir a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos. Porque se o Estado permite que eu seja molestado a vida toda por outro sem nenhuma razão convincente, se ele não garante o pleno gozo dos meus direitos, então ele não está cumprindo a promessa do Estado de Democrático de Direito de ser o guardião da eficácia dos direitos dos cidadãos. Então a ação nesse quinto sentido é um direito subjetivo público, autônomo e abstrato de exigir do Estado o exercício da jurisdição sobre uma determinada demanda. E se ação é o direito de exigir do Estado a prestação jurisdicional sobre uma determinada demanda, não são todos os cidadãos que tem todos os direitos de ação. Só tem o direito de ação cidadãos cujas demandas apresentarem algumas condições mínimas que são as chamadas condições da ação.