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18 de abril de 2021

Lei de Abuso de Autoridade

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/lei-de-abuso-de-autoridade-parte-1.html#google_vignette

                   https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/lei-de-abuso-de-autoridade-parte-2.html    

                   https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/lei-de-abuso-de-autoridade-parte-3.html


1. NOÇÕES GERAIS

1.1 NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Lei nº 4.898/65
O abuso de autoridade já era punido criminalmente pela Lei nº 4.898/65.
A Lei nº 4.898/65 é revogada pela Lei nº 13.869/2019, que passa a regular inteiramente o tema.

Lei nº 13.869/2019
A Lei nº 13.869/2019 define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por...
- agente público,
- seja ele servidor ou não,
- que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las,
- abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

1.2 SUJEITOS DO CRIME
Crimes próprios
Os crimes previstos na Lei nº 13.869/2019 são próprios, ou seja, só podem ser praticados por “agentes públicos”, nos termos do art. 2º.

Sujeito ativo
É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade...
- qualquer agente público,
- seja servidor público ou não,
- da administração direta, indireta ou fundacional
- de qualquer dos Poderes
- da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território.

Conceito de agente público
Reputa-se agente público, para os efeitos da Lei de abuso de autoridade:
- todo aquele que exerce,
- ainda que transitoriamente ou sem remuneração,
- por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo,
- mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade da Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes, em todas as esferas.

Rol exemplificativo de sujeitos ativos
A Lei traz um rol exemplificativo de sujeitos ativos.
Assim, podem ser sujeitos ativos dos crimes de abuso de autoridade, dentre outros:
I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II - membros do Poder Legislativo;
III - membros do Poder Executivo;
IV - membros do Poder Judiciário;
V - membros do Ministério Público;
VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Concurso de pessoas
Embora sejam crimes próprios, os delitos previstos na Lei nº 13.869/2019 admitem a coautoria e a participação. Isso porque a qualidade de “agente público”, por ser elementar do tipo, comunica-se aos demais agentes, nos termos do art. 30 do Código Penal, desde que eles tenham conhecimento dessa condição pessoal do autor:
Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

Sujeito passivo
Os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei nº 13.869/2019 são delitos de “dupla subjetividade passiva”. Isso porque são condutas que atingem dois sujeitos passivos.
O sujeito passivo principal ou imediato é a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva. Ex: o preso, no caso do art. 13.
O sujeito passivo secundário ou mediato é o Estado (Poder Público) que tem a sua imagem, credibilidade e até patrimônio ofendidos quando um agente seu pratica ato abusivo.

1.3 ELEMENTO SUBJETIVO
Elemento subjetivo especial
Todos os delitos previstos na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) são dolosos.
Além disso, exige-se um elemento subjetivo especial (especial fim de agir, “dolo específico”).

Elemento subjetivo especial dos crimes de abuso de autoridade
O agente só comete crime de abuso de autoridade se:
1) ao praticar a conduta tinha a finalidade específica de:
• prejudicar alguém; ou
• beneficiar a si mesmo ou a terceiro; OU
2) tiver praticado a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal.

É o que prevê o § 1º do art. 1º da Lei:
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Divergência de interpretação ou de avaliação dos fatos
A atuação dos operadores do Direito envolve constantemente a interpretação de leis e atos normativos e a apreciação de fatos e provas.
Ocorre que, por mais que sejam utilizados critérios e métodos teóricos para o exercício de tais atividades, o certo é que elas possuem boa dose de subjetividade. Essa subjetividade faz com que surjam divergências na interpretação da lei ou na avaliação dos fatos e provas.
Tais divergências, por si só, não poderiam ser punidas como abuso de autoridade. Pensando nisso, o § 2º do art. 1º da Lei prevê tais situações como causa de exclusão da tipicidade nos seguintes termos:
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

Ex: o membro do Ministério Público denuncia o acusado afirmando que sua conduta configura o crime “X”. Ocorre que existe uma segunda corrente – diversa daquela sustentada pelo MP – que defende que essa conduta é atípica. O juiz adota essa segunda posição e rejeita a denúncia por entender que não a situação não se amolda àquele tipo penal. O simples fato de haver essa divergência de interpretação não gera a conclusão de que o integrante do Parquet tenha agido com abuso de autoridade.

Ex2: o Promotor de Justiça denuncia o acusado por furto por entender que ele é o único que estava no local quando o bem foi subtraído, tendo ele sido visto pelas testemunhas com um objeto escondido debaixo da camisa. Durante a instrução ficou demonstrado que o acusado não estava com a res furtiva e que, portanto, ele era inocente. A simples divergência na avaliação dos fatos e das provas não gera a conclusão de que o membro do MP tenha agido com abuso de autoridade.

O objetivo deste dispositivo foi o de evitar aquilo que Rui Barbosa chamou de “crime de hermenêutica”, que ocorre quando o operador do Direito (em especial o magistrado) é responsabilizado criminalmente pelo simples fato de sua intepretação ter sido considerada errada pelo Tribunal revisor.
O tema não é novo e, como dito, Rui Barbosa, há muitos anos, já condenava as tentativas de se criar o “crime de hermenêutica”:
“Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos.
Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo. (...)” (Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, Tomo III, p. 228).

Na vigência da antiga Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/65), a jurisprudência já rechaçava a possibilidade de se responsabilizar criminalmente o magistrado pela mera divergência de interpretação:
(...) 1. Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in judicando e in procedendo, razão por que, para a configuração do delito de abuso de autoridade há necessidade da demonstração de um mínimo de "má-fé" e de "maldade" por parte do julgador, que proferiu a decisão com a evidente intenção de causar dano à pessoa.
2. Por essa razão, não se pode acolher denúncia oferecida contra a atuação do magistrado sem a configuração mínima do dolo exigido pelo tipo do injusto, que, no caso presente, não restou demonstrado na própria descrição da peça inicial de acusação para se caracterizar o abuso de autoridade. (...)
STJ. Corte Especial. APn 858/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/10/2018.


1.4 AÇÃO PENAL
Ação pública incondicionada
Todos os crimes previstos na Lei nº 13.869/2019 são de ação penal pública incondicionada:
Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.

Mesmo que o caput do art. 3º da Lei não previsse isso, a ação penal seria pública incondicionada por força do art. 100 do Código Penal.

Ação penal privada subsidiária da pública
O § 1º do art. 3º da Lei nº 13.869/2019 prevê o seguinte:
§ 1º Será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.

Trata-se da chamada ação penal privada subsidiária da pública.
O Ministério Público tem um prazo previsto na lei para o ajuizamento da ação penal pública. Se o membro do Parquet não oferece a denúncia neste prazo, o ordenamento jurídico permite que o ofendido (a vítima) tome a providência que o MP deveria ter feito e ofereça a ação penal em nome próprio. Neste caso, o ofendido apresenta uma queixa-crime substitutiva (supletiva) da denúncia.
Ex:  imagine que João foi vítima de abuso de autoridade praticado pelo Delegado; o MP não oferece a denúncia no prazo legal; João (ofendido) poderá suprir essa inércia do MP propondo uma queixa que substituindo a denúncia que deveria ter sido oferecida pelo Parquet. Isso é chamado de ação privada subsidiária da pública.

O prazo para o oferecimento da denúncia está previsto no art. 46 do CPP:
• estando o réu preso, será de 5 dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito policial;
• se o réu estiver solto ou afiançado, o prazo é de 15 dias.

Ação privada subsidiária é instrumento para suprir eventual inércia do MP, não para se contrapor à providência adotada pelo órgão ministerial
Ao final do prazo legal previsto no art. 46 do CPP, o membro do Ministério Público tem, basicamente, quatro possibilidades:
a) oferecer denúncia;
b) requisitar a realização de novas diligências;
c) pedir o arquivamento;
d) requerer a declinação de competência.

Para que o ofendido possa ajuizar a ação privada subsidiária, é necessário que o membro do MP fique completamente inerte no prazo legal do art. 46 do CPP, ou seja, que não adote nenhuma dessas quatro providências.
Assim, se o Promotor de Justiça/Procurador da República pedir o arquivamento do inquérito policial, o ofendido, mesmo que discorde disso, não poderá ajuizar a ação privada subsidiária considerando que não houve inércia do MP. Se o ofendido oferecer ação privada subsidiária neste caso, o juiz deverá rejeitar a queixa substitutiva por ilegitimidade de parte.
Reiterando: a ação privada subsidiária só pode ser ajuizada em caso de inércia do MP, não servindo como instrumento para que o ofendido discorde da providência tomada pelo Parquet.

Alguns julgados sobre o tema:
Somente é possível a ação penal subsidiária da pública quando restar configurada inércia do Ministério Público, não sendo cabível nas hipóteses de arquivamento de inquérito policial promovido pelo membro do Parquet e acolhido pelo juiz.
No caso concreto, não houve desídia do órgão acusador que, conforme reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, propôs o arquivamento do inquérito policial, entendendo não haver condições de procedibilidade para o oferecimento da denúncia em razão da inexistência de relevância jurídica na conduta investigada.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1508560/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 06/11/2018.

A ação privada subsidiária da pública só é possível quando o Órgão Ministerial se mostrar desidioso e não se manifestar no prazo previsto em lei. Se o Ministério Público promove o arquivamento do inquérito ou requer o seu retorno ao delegado de polícia para novas diligências, não cabe queixa subsidiária; se oferecida, a rejeição se impõe por ilegitimidade de parte, falta de pressuposto processual da ação.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1049105/DF, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 18/10/2018.

É incabível a impetração de mandado de segurança por parte da vítima contra decisão que determina o arquivamento de inquérito policial, seja por considerá-la desprovida de conteúdo jurisdicional, seja devido ao fato de que o titular da ação penal pública incondicionada é o Ministério Público, não sendo cabível o eventual oferecimento de ação penal privada subsidiária sem a prova de sua inércia.
STJ. 5ª Turma. AgRg no RMS 51.404/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 14/05/2019.

O tema foi objeto de recurso extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral, tendo sido fixadas as seguintes teses:
(...) Questão constitucional resolvida no sentido de que: (i) o ajuizamento da ação penal privada pode ocorrer após o decurso do prazo legal, sem que seja oferecida denúncia, ou promovido o arquivamento, ou requisitadas diligências externas ao Ministério Público. Diligências internas à instituição são irrelevantes; (ii) a conduta do Ministério Público posterior ao surgimento do direito de queixa não prejudica sua propositura. Assim, o oferecimento de denúncia, a promoção do arquivamento ou a requisição de diligências externas ao Ministério Público, posterior ao decurso do prazo legal para a propositura da ação penal, não afastam o direito de queixa. Nem mesmo a ciência da vítima ou da família quanto a tais diligências afasta esse direito, por não representar concordância com a falta de iniciativa da ação penal pública. (...)
STF. Plenário virtual. ARE 859251 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/04/2015.

Legitimidade
A legitimidade para a ação privada subsidiária é do ofendido (vítima) ou de seu representante legal (art. 31 do CPP).

Prazo para oferecimento da ação privada subsidiária
Segundo o § 2º do art. 3º, o ofendido tem o prazo de 6 meses para oferecer a queixa substitutiva:
§ 2º A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.

Importante esclarecer que se trata de um prazo decadencial impróprio considerando que, mesmo após ele se esgotar, o Ministério Público pode ajuizar a denúncia ou tomar outras providências. O simples decurso do prazo de 6 meses não gera a extinção da punibilidade. A única consequência que acarreta é o fato de o ofendido não poder mais ajuizar a ação privada subsidiária não influenciando nos poderes do MP.
Conforme explicam Klaus Negri Costa e Fábio Roque Araújo:
“O prazo para oferecimento da queixa-substitutiva é de 6 meses, de natureza decadencial. É interessante notar que, mesmo tendo natureza decadencial, o escoamento desse prazo in albis não acarretará a extinção da punibilidade. O único efeito da perda do prazo decadencial será, tão somente, a impossibilidade de ajuizamento da queixa-substitutiva pelo ofendido - mas o Ministério Público continuará, respeitado o prazo prescricional, legitimado a oferecer denúncia.” (COSTA, Klaus Negri; ARAÚJO, Fábio Roque. Processo Penal didático. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 199)

Esse art. 3º da Lei nº 13.869/2019 era juridicamente necessário?
Não. Isso porque a ação penal privada subsidiária da pública já é prevista expressamente no art. 5º, LIX, da CF/88, sendo considerada, inclusive, uma cláusula pétrea:
Art. 5º (...)
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

Além disso, em nível infraconstitucional, o tema já era disciplinado da mesma forma pelo CPP:
Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.


1.5 COMPETÊNCIA
Foro por prerrogativa de função
O primeiro passo para se definir a competência no caso de crimes da Lei do Abuso de Autoridade é verificar se a Constituição Federal prevê foro por prerrogativa de função para o agente público que praticou o delito.
Se a autoridade que praticou o delito no exercício das suas funções goza de foro por prerrogativa de função, deverá ser julgada pelo respectivo Tribunal. Ex: Juiz Federal que pratique abuso de autoridade será julgado pelo Tribunal Regional Federal, nos termos do art. 108, I, a, da CF/88:
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I - processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;

Vale lembrar que, segundo a interpretação restritiva do STF:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

Justiça Federal ou Estadual
Sendo a competência do juízo de 1ª instância, será necessário analisar se a competência é da Justiça Estadual ou Federal.
A competência para julgar o delito será, em regra, determinada pela esfera ao qual estiver vinculado o agente público que praticou o crime.
Assim, em regra:
• Se o delito foi praticado por autoridade (agente público) federal no exercício dessa função: o crime será de competência da Justiça Federal, considerando que, neste caso, o delito terá sido praticado em detrimento de um serviço público federal, nos termos do art. 109, IV, da CF/88:
Art. 109 (...)
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

Obviamente, para a competência ser da Justiça Federal, o crime deve estar relacionado com as funções federais exercidas pelo agente público, conforme se aprende pela súmula 147 do STJ:
Súmula 147-STJ: Compete à justiça federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função.

• Se o delito foi praticado por autoridade (agente público) estadual ou municipal no exercício dessa função: o crime será, em regra, de competência da Justiça Estadual, que é residual.

Justiça Militar pode julgar crime de abuso de autoridade?
SIM.
Em 1996, o STJ editou um enunciado dizendo o seguinte:
Súmula 172-STJ: Compete à justiça comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.

Ocorre que o entendimento contido nesta súmula está superado pela Lei nº 13.491/2017, que alterou o art. 9º, II, do CPM.
Antes da alteração, se o militar, em serviço, cometesse abuso de autoridade ele seria julgado pela Justiça Comum porque o art. 9º, II, do CPM afirmava que somente poderia ser considerado como crime militar as condutas que estivessem tipificadas no CPM.
Assim, como o abuso de autoridade não está previsto no CPM, mas sim na Lei nº 4.898/65, este delito não podia ser considerado crime militar nem podia ser julgado pela Justiça Militar. Isso, contudo, mudou com a nova redação dada pela Lei nº 13.491/2017 ao art. 9º, II, do CPM.
Com a mudança, a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”. Dessa forma, o abuso de autoridade, mesmo não estando previsto no CPM pode agora ser considerado crime militar (julgado pela Justiça Militar) com base no art. 9º, II, do CPM.
Logo, a Justiça Militar pode sim julgar crime de abuso de autoridade.


1.6 EFEITOS DA CONDENAÇÃO E PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS
Efeitos da condenação
São efeitos da condenação:
I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;
II - a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;
III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública.

Os efeitos previstos nos incisos II e III:
• são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e
• devem ser declarados motivadamente na sentença (não são automáticos).

Penas restritivas de direitos
As penas restritivas de direitos substitutivas das privativas de liberdade previstas na Lei são:
I - prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;
II - suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens;

Obs: as penas restritivas de direitos podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.


1.7 SANÇÕES DE NATUREZA CIVIL E ADMINISTRATIVA
Princípio da independência de instâncias
Em regra, as penas (sanções criminais) previstas na Lei nº 13.869/2019 devem aplicadas independentemente das sanções de natureza civil ou administrativa cabíveis.
Assim, em regra, as responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal.

Exceções
1) Se o juízo criminal decidir sobre a existência ou a autoria do fato, essas questões não poderão mais ser questionadas nas esferas civil e administrativa.
2) Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
             
Veja a redação dos dispositivos legais:
Art. 7º As responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal.

Art. 8º Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Em caso de falta funcional, o órgão correicional deverá ser informado
As notícias de crimes previstos na Lei nº 13.869/2019 que descreverem falta funcional deverão ser informadas à autoridade competente com vistas à apuração.

DECRETAÇÃO DE MEDIDA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM DESCONFORMIDADE COM A LEI
Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I - relaxar a prisão manifestamente ilegal;
II - substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;
III - deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

CRIME DO CAPUT
Em que consiste o delito:
A autoridade judicial decreta medida privativa de liberdade em desacordo com as hipóteses autorizadas pela lei.

Medidas de privação de liberdade
Medidas de privação de liberdade previstas no ordenamento jurídico e que podem ser objeto deste crime:
• Prisão cautelar (prisão temporária, prisão preventiva);
• Prisão para cumprimento da execução provisória da pena;
• Prisão para cumprimento da execução definitiva da pena;
• Medida de segurança detentiva (internação) (art. 96, I, do CP);
• Semiliberdade (art. 120 do ECA);
• Internação (art. 121 do ECA);
• Internação psiquiátrica (art. 6º da Lei nº 10.216/2001).

Sujeito ativo
A autoridade judicial (Juiz, Desembargador, Ministro).

Sujeito passivo
É o Estado e também a pessoa que teve privada a sua liberdade.

Elemento subjetivo
Dolo acrescido do elemento subjetivo especial (finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal).
Não se pune a conduta culposa.

Consumação
O crime se consuma com a decretação, ou seja, com a prolação da decisão determinando a medida de privação da liberdade, ainda que ela não se consuma.
Trata-se, portanto, de crime formal, que não depende da produção de resultado naturalístico.
Desse modo, imagine que o juiz decreta a prisão mesmo sendo manifestamente descabida. Antes que a providência seja cumprida, o indivíduo consegue do Tribunal uma ordem em habeas corpus cassando a decisão de 1ª instância. Em tese, o crime estará consumado mesmo não tendo havido a efetiva condução coercitiva.

Suspensão condicional do processo
Como a pena mínima é igual a 1 ano, cabe suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

CRIME DO PARÁGRAFO ÚNICO
Providências que o juiz deverá adotar diante de uma prisão em flagrante
Segundo o art. 310 do CPP, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá, fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando: 
• estiverem presentes os requisitos do art. 312 do CPP e
• se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Os incisos I e II do parágrafo único do art. 9º têm por objetivo principal punir o magistrado que, dentro de prazo razoável, deixa de dar cumprimento adequado ao art. 310 do CPP.

Inciso I
A prisão ilegal deve ser relaxada pela autoridade judiciária competente.
É o caso, por exemplo, em que o juiz recebe o auto de prisão em flagrante e constata que o indivíduo foi preso por conta de um fato atípico ou percebe que não havia situação de flagrância. Nestas hipóteses, exemplificativas, cabe ao juiz relaxar a prisão do indivíduo, colocando-o em liberdade, salvo se houver algum outro motivo para o cárcere.

Inciso II
O estudo do inciso II deve ser dividido em duas partes:
1) deixar de “substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa”.
Prisão preventiva é uma espécie de prisão de natureza cautelar, decretada na fase das investigações ou durante a ação penal, desde que presentes os pressupostos e requisitos previstos nos arts. 312 e 313 do CPP.
Ocorre que a prisão preventiva é uma medida extrema e somente deve ser decretada (ou mantida) se não couber nenhuma outra medida cautelar. A prisão é a última das medidas cautelares que deverá ser adotada. Assim, somente será determinada a prisão quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 282, § 6º do CPP).
O art. 319 do CPP prevê a lista de medidas cautelares diversas da prisão:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX - monitoração eletrônica.

2) deixar “de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível”
Liberdade provisória é uma medida de contracautela concedida pela autoridade judicial que, ao receber o auto de prisão em flagrante, constata que a prisão efetuada foi legal, mas que não há motivos para se decretar a prisão preventiva, razão pela qual o flagranteado deverá ser solto, com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas.
A liberdade provisória é relacionada, portanto, com a prisão em flagrante, não sendo a medida adequada para o caso de já ter sido decretada a prisão preventiva. Vamos comparar e entender os institutos:
Relaxamento da prisão
Revogação da                prisão preventiva
Liberdade provisória
É a decisão do magistrado reconhecendo que a prisão é ilegal, ou seja, que não atende os requisitos formais.
É a decisão do magistrado reconhecendo que não há motivos para a prisão preventiva, devendo, portanto, esta medida ser revogada.
É a decisão do magistrado reconhecendo que a prisão em flagrante foi legal, mas que não há motivos para convertê-la em prisão preventiva, motivo pelo qual o flagranteado deve ser solto, com ou sem a imposição de medidas cautelares.

Inciso III
Deixar de “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível”.
Este inciso III é extremamente amplo. Isso porque ele não se limita aos casos de prisão em flagrante. Na verdade, não se restringe nem mesmo aos casos de prisão.
Explico. No Brasil, o habeas corpus apresenta uma feição bem ampla, sendo cabível mesmo quando o paciente não está preso e mesmo quando ato impugnado não implicar risco imediato de prisão.
Nesse sentido, o STF recentemente decidiu que:
Cabe habeas corpus mesmo nas hipóteses que não envolvem risco imediato de prisão, como na análise da licitude de determinada prova ou no pedido para que a defesa apresente por último as alegações finais, se houver a possibilidade de condenação do paciente. Isso porque neste caso a discussão envolve liberdade de ir e vir.
STF. 2ª Turma. HC 157627 AgR/PR, rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 27/8/2019 (Info 949).

Assim, o inciso III do parágrafo único do art. 9º pune, em suma, a demora no julgamento do habeas corpus.

Liminar em habeas corpus: é a decisão concedendo o pedido formulado pelo impetrante antes que o processo de habeas corpus chegue ao fim.
Ordem de habeas corpus: é a decisão concedendo o pedido formulado pelo impetrante, mas já ao final do processo de habeas corpus.
Vale relembrar que, apesar de ser mais comum a impetração de habeas corpus nos Tribunais, existe também a possibilidade de o juízo de 1ª instância julgar habeas corpus. É o caso, por exemplo, em que o impetrante questiona um ato do Delegado de Polícia.

Dentro de prazo razoável
A grande dúvida e polêmica envolvendo este tipo penal diz respeito ao conceito de “prazo razoável”. Trata-se de conceito aberto que deverá ser analisado com base nas peculiaridades do caso concreto.

DECRETAR CONDUÇÃO COERCITIVA DESCABIDA OU SEM PRÉVIA INTIMAÇÃO DE COMPARECIMENTO
Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

NOÇÕES GERAIS SOBRE A CONDUÇÃO COERCITIVA
Condução coercitiva
Condução coercitiva consiste em capturar a testemunha, o perito, o ofendido, o investigado ou o réu e levá-lo, ainda que contra a sua vontade, à presença de uma determinada autoridade para que seja ouvido, identificado ou pratique outros atos de interesse da investigação ou da ação penal.

Natureza jurídica
A condução coercitiva, embora não listada no rol das medidas cautelares diversas da prisão dos arts. 319 e 320 do CPP, também funciona como medida cautelar de coação pessoal (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 694).

Espécies
A legislação prevê a possibilidade, em tese, da condução coercitiva de:
a) testemunha:
Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

b) perito:
Art. 278. No caso de não-comparecimento do perito, sem justa causa, a autoridade poderá determinar a sua condução.

c) ofendido (vítima):
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.
§ 1º Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.

d) investigado (fase pré-processual) ou réu (fase processual):
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que lhe for aplicável.

A condução coercitiva é sempre determinada pelo magistrado?
Não. A legislação prevê a possibilidade de que outras autoridades também determinem a condução coercitiva. Veja alguns exemplos:
• autoridade policial;
• membros do Ministério Público;
• Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI).

Condução coercitiva do investigado na deflagração de operações policiais
Nos últimos anos temos visto diversas “operações” da Polícia Federal nas quais há ordens judiciais de condução coercitiva de investigados para que sejam interrogados.
Vamos entender como isso funcionava.
A condução coercitiva para interrogatório nas operações policiais é a ordem judicial, materializada em um mandado, por meio do qual a polícia fica autorizada a levar o investigado, compulsoriamente, para a Delegacia (ou outro lugar escolhido) a fim de que ali ele seja interrogado, no dia e horário escolhidos pela autoridade policial.
Em geral, o objetivo idealizado para a condução coercitiva é que o órgão de investigação criminal atue com o “fator surpresa”, fazendo com que o investigado preste suas declarações no interrogatório sem ter tido muito tempo para refletir naquilo que irá responder e sem ter tido a oportunidade de conversar com os outros investigados ou ainda de conhecer quais os outros elementos informativos que a polícia já dispõe contra ele.
Por isso, normalmente, o mandado de condução coercitiva é cumprido logo no início do dia, por volta das 6h, ao mesmo tempo em relação a todos os investigados naquela operação. A polícia chega à residência do investigado, explica o mandado, pede que ele se vista e já segue com ele imediatamente para a Delegacia, onde já há um Delegado esperando para conduzir o interrogatório.
Vale ressaltar que, na condução coercitiva, o investigado é obrigado a comparecer à Delegacia, mas lá poderá permanecer em silêncio e não responder a qualquer das perguntas formuladas.
Importante destacar também que o investigado, durante o interrogatório, poderá se fazer acompanhar por advogado ou Defensor Público.
O caso mais famoso de condução coercitiva ocorreu com o ex-Presidente Lula. O Juiz Federal Sérgio Moro, a requerimento da Polícia Federal, deferiu a condução coercitiva de Lula, que foi efetivada em 04/03/2016, tendo o ex-Presidente sido levado para prestar interrogatório em uma sala no aeroporto de Congonhas.
Confira a explicação de Vladimir Aras para a condução coercitiva:
“A condução coercitiva autônoma – que não depende de prévia intimação da pessoa conduzida – pode ser decretada pelo juiz criminal competente, quando não cabível a prisão preventiva (arts. 312 e 313 do CPP), ou quando desnecessária ou excessiva a prisão temporária, sempre que for indispensável reter por algumas horas o suspeito, a vítima ou uma testemunha, para obter elementos probatórios fundamentais para a elucidação da autoria e/ou da materialidade do fato tido como ilícito.
Assim, quando inadequadas ou desproporcionais a prisão preventiva ou a temporária, nada obsta que a autoridade judiciária mande expedir mandados de condução coercitiva, que devem ser cumpridos por agentes policiais sem qualquer exposição pública do conduzido, para que prestem declarações à Polícia ou ao Ministério Público, imediatamente após a condução do declarante ao local do depoimento. Tal medida deve ser executada no mesmo dia da deflagração de operações policiais complexas, as chamadas megaoperações.
Em regra, para viabilizar a condução coercitiva será necessário demonstrar que estão presentes os requisitos para a decretação da prisão temporária, mas sem a limitação do rol fechado (numerus clausus) do art. 1º da Lei 7.960/89. A medida de condução debaixo de vara justifica-se em virtude da necessidade de acautelar a coleta probatória durante a deflagração de uma determinada operação policial ou permitir a conclusão de uma certa investigação criminal urgente.
Diante das circunstâncias do caso concreto, a prisão temporária pode ser substituída por outra medida menos gravosa, a partir do poder geral de cautela do Poder Judiciário, previsto no art. 798 do CPC e aplicável ao processo penal com base no art. 3º do CPP. Tal medida cautelar extranumerária ao rol do art. 319 do CPP reduz a coerção do Estado sobre o indivíduo, limitando-a ao tempo estritamente necessário para a preservação probatória, durante a fase executiva da persecução policial.
De fato, a condução coercitiva dos suspeitos sempre será mais branda que a prisão temporária; a medida restringe de modo mais suave a liberdade pessoal, somente enquanto as providências urgentes de produção de provas (cumprimento de mandados de buscas, por exemplo) estiverem em curso.
Se o legislador permite a prisão temporária por (até) 5 dias, prorrogáveis por mais 5 dias nos crimes comuns, a condução coercitiva resolve-se em um dia ou menos que isto, em algumas horas, mediante a retenção do suspeito e sua apresentação à autoridade policial para interrogatório sob custódia, enquanto as buscas têm lugar. Ou seja, a condução sob vara deve durar apenas o tempo necessário à instrução preliminar de urgência, não devendo persistir por prazo igual superior a 24 horas, caso em que se trasveste em temporária.
Sendo menos prolongada que as prisões cautelares, a condução coercitiva guarda ainda as mesmas vantagens que a custódia temporária, pois permite que a Polícia interrogue todos os envolvidos no mesmo momento, visando a evitar, pela surpresa, as versões “combinadas” ou que um suspeito oriente as declarações de uma testemunha ou a pressione, na fase da apuração preliminar, ou que documentos ou ativos sejam suprimidos, destruídos ou desviados.” (ARAS, Vladimir. Debaixo de vara: a condução coercitiva como cautelar pessoal autônoma. Disponível em: https://vladimiraras.blog/2013/07/16/a-conducao-coercitiva-como-cautelar-pessoal-autonoma/>; acesso em 27 ago. 2018.

Inconstitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório
O STF, recentemente, decidiu que não é válida a condução coercitiva do investigado ou do réu para interrogatório no âmbito da investigação ou da ação penal.
O CPP, ao tratar sobre a condução coercitiva, prevê o seguinte:
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
O STF declarou que a expressão “para o interrogatório” prevista no art. 260 do CPP não foi recepcionada pela Constituição Federal.
Assim, caso seja determinada a condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tal conduta poderá ensejar:
• a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade
• a ilicitude das provas obtidas
• a responsabilidade civil do Estado.
STF. Plenário. ADPF 395/DF e ADPF 444/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgados em 13 e 14/6/2018 (Info 906).


ANÁLISE DO TIPO PENAL DO ART. 10
Em que consiste o delito:
CONDUÇÃO COERCITIVA E ABUSO DE AUTORIDADE (ART. 10 DA LEI)
Decretar condução coercitiva de...
• testemunha ou
• investigado
1) de forma manifestamente descabida; ou
2) sem que a testemunha ou investigado tenham sido previamente intimados para comparecerem espontaneamente ao juízo.

Perceba, portanto, que existem duas hipóteses em que haverá abuso de autoridade na condução coercitiva:
1) quando ela for manifestamente descabida; ou
2) quando a autoridade judicial não der oportunidade para que a testemunha ou o investigado compareçam espontaneamente ao juízo.

A primeira hipótese abrange a segunda. Isso porque se a testemunha ou o investigado não foram previamente intimados para comparecerem espontaneamente, essa condução coercitiva é abusiva, desproporcional, ou seja, é manifestamente descabida já que não houve recusa.

Sujeito ativo
Se o intérprete fizer uma leitura apressada do art. 10 poderá defender a ideia de que apenas o magistrado é sujeito ativo deste delito. Isso porque a parte final do tipo penal fala em “comparecimento ao juízo”.
Essa, contudo, não é a melhor intepretação.
Conforme explicado acima, existem duas hipóteses em que a decretação da condução coercitiva poderá ensejar a responsabilização criminal pelo art. 10:
1) quando a condução coercitiva for manifestamente descabida ou
2) quando a condução coercitiva for decretada sem prévia intimação de comparecimento ao juízo.

A segunda hipótese é, de fato, restrita às autoridades judiciais, ou seja, apenas o magistrado poderá praticar considerando que somente ele pode determinar o comparecimento da testemunha ou investigado ao juízo.
Contudo, a primeira hipótese pode ser praticada por outras autoridades, como é o caso do Delegado de Polícia, do membro do Ministério Público e do presidente de CPI.
Assim, se o Delegado de Polícia decretar condução coercitiva manifestamente descabida, poderá ser responsabilizado pelo crime do art. 10 da Lei.

Juiz que decreta condução coercitiva do investigado na deflagração de operações policiais
Se o juiz decretar condução coercitiva do investigado para interrogatório em desacordo com o que decidiu o STF nas ADPF 395 e 444: comete o crime do art. 10. Isso porque o STF já afirmou que não cabe condução coercitiva nesses casos.

Sujeito passivo
É possível identificar duas vítimas:
• a Administração da Justiça;
• a testemunha ou o investigado que submetido ao constrangimento de ser objeto de condução coercitiva indevida.

Prévia intimação de comparecimento
A intimação prévia da testemunha ou do investigado deve ser pessoal.

Elemento subjetivo
Dolo acrescido do elemento subjetivo especial (finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal).
Não se pune a conduta culposa. Ex: juiz expediu o mandado de intimação prévia; testemunha não compareceu; magistrado determinou a condução coercitiva e depois se atestou que a testemunha não havia recebido a intimação anterior; mesmo que fique demonstrado que o juiz foi negligente por não ter conferido o efetivo cumprimento do mandado, não haverá crime.

Só haverá crime em caso de testemunha ou investigado
Se o juiz determinou a condução coercitiva do perito ou do ofendido, não haverá o crime do art. 10 mesmo que essa condução tenha sido manifestamente descabida ou sem prévia intimação dos destinatários. Isso porque o tipo penal fala apenas em testemunha ou investigado.

“Investigado” abrange também o réu?
Penso que o STJ responderá que sim. Isso porque existem precedentes daquele Tribunal analisando o crime do art. 2º, § 1º da Lei nº 12.850/2013 e dizendo que a palavra “investigação” não se limita à fase do inquérito policial. A “investigação” da infração penal se prolonga durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal iniciada com o recebimento da denúncia. Nesse sentido, confira trecho da ementa do julgado mencionado do STJ:
(...) 3. A tese de que a investigação criminal descrita no art. 2º, § 1º, da Lei n. 12.850/13 cinge-se à fase do inquérito, não deve prosperar, eis que as investigações se prolongam durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal deflagrada pelo recebimento da denúncia. Com efeito, não havendo o legislador inserido no tipo a expressão estrita "inquérito policial", compreende-se ter conferido à investigação de infração penal o sentido de persecução penal, até porque carece de razoabilidade punir mais severamente a obstrução das investigações do inquérito do que a obstrução da ação penal. Ademais, sabe-se que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar inquérito e ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal. (...)
STJ. 5ª Turma. HC 487.962/SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/05/2019.

Não apenas processos criminais
Vale ressaltar que a condução coercitiva pode ser decretada não apenas em investigações ou processos criminais. É possível que isso ocorra em outros casos, como, por exemplo:
• em inquérito civil;
• em procedimentos do ECA;
• em processos cíveis;
• em processos trabalhistas.

Consumação
O crime se consuma com a decretação, ou seja, com a prolação da decisão determinando a condução coercitiva, ainda que ela não se consuma.
Trata-se, portanto, de crime formal, que não depende da produção de resultado naturalístico.
Desse modo, imagine que o juiz decreta a condução coercitiva do investigado mesmo sendo manifestamente descabida. Antes que a providência seja cumprida, o investigado consegue do Tribunal uma ordem em habeas corpus cassando a decisão de 1ª instância. Em tese, o crime estará consumado mesmo não tendo havido a efetiva condução coercitiva.

Suspensão condicional do processo
Como a pena mínima é igual a 1 ano, cabe suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

Competência
A competência para julgamento deste crime dependerá das funções desempenhadas pela autoridade que determinou a condução coercitiva.
Ex: se a condução coercitiva for decretada pelo magistrado que estiver atuando em função judicante de natureza federal, a competência será da Justiça Federal. É o caso, por exemplo, de um Juiz Federal, de um Juiz do Trabalho, de um Juiz Militar ou mesmo de um Juiz de Direito atuando em processo de competência delega (ex: causas previdenciárias – art. 109, § 3º, da CF/88).
Em caso contrário, a competência será da Justiça Estadual.