RECURSO ESPECIAL Nº 1.661.481 - SP (2016/0088638-2)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. BEM
HIPOTECADO EM FAVOR DO EXEQUENTE. HASTA PÚBLICA. LEVANTAMENTO
DOS VALORES. INSURGÊNCIA DA FAZENDA NACIONAL. AUSÊNCIA DE
INTIMAÇÃO. EXECUÇÃO FISCAL COM PENHORA SOBRE O BEM ALIENADO.
CRÉDITO PREFERENCIAL. RESTITUIÇÃO DEVIDA. AUSÊNCIA DE OBSERVÂNCIA
AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.
1. Execução ajuizada em 1/6/1994. Recurso especial interposto em
14/5/2014. Autos encaminhados à Relatora em 25/8/2016, redistribuídos em
18/9/2019 e novamente conclusos em 7/2/2020.
2. O propósito recursal é definir se os valores levantados pelo recorrente
devem ser restituídos ao juízo da execução em virtude da existência de
crédito preferencial, cujo titular manifestou-se nos autos depois de
perfectibilizada a arrematação do bem objeto da penhora.
3. O entendimento desta Corte aponta no sentido de que, coexistindo
execução fiscal e execução civil, contra o mesmo devedor, com pluralidade
de penhoras recaindo sobre o mesmo bem, o produto da venda judicial, por
força de lei, deve satisfazer o crédito fiscal em primeiro lugar. Precedente.
4. A postura adotada pela instituição financeira recorrente, que, mesmo
ciente da existência de crédito preferencial em favor de terceiros, deixa de
sinalizar tal fato ao juiz e vem aos autos requerer o levantamento do
montante depositado, revela atitude contrária à boa-fé objetiva.
5. A decisão que deferiu o pedido de levantamento do produto da
arrematação em benefício do credor particular não foi antecedida da
necessária intimação da Fazenda Nacional - titular de crédito preferencial
perseguido em execução fiscal garantida por penhora sobre o bem
arrematado.
6. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a alegação de violação ao art.
6º da LINDB não viabiliza a interposição de recurso especial, pois os princípios contidos nesse dispositivo – direito adquirido, ato jurídico perfeito
e coisa julgada – apesar de previstos em lei ordinária, são institutos de
índole marcadamente constitucional.
RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso
especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso
Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram
com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 10 de março de 2020(Data do Julgamento)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por BANCO BAMERINDUS DO
BRASIL S/A - EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL, com fundamento nas alíneas "a" e
"c" do permissivo constitucional.
Ação: execução de título extrajudicial, ajuizada pelo recorrente em
face de SEIVAFERTIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE FERTILIZANTES LTDA.
Decisão: determinou ao recorrente que restituísse os valores por ele
levantados, relativos à alienação judicial de um imóvel.
Acórdão: por maioria, deu parcial provimento ao agravo de
instrumento interposto pelo recorrente, nos termos da seguinte ementa:
AÇÃO DE EXECUÇÃO. ARREMATAÇÃO. ORDEM DE PAGAMENTO.
PRELAÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO SOBRE O DÉBITO HIPOTECÁRIO. EXEGESE
DOS ARTIGOS 711 DO CPC E 186 DO CTN. DETERMINAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DOS
VALORES LEVANTADOS PELO CREDOR QUIROGRAFÁRIO, PARA SATISFAÇÃO DO
DÉBITO FEDERAL, QUE SE SOBREPÕE AO SEU. PRECEDENTES DO STJ. A ordem de
pagamento dos credores deve atender às disposições contidas nos artigos 711,
612 e 613 do Código de Processo Civil, em consonância com as demais previsões
legais que versem sobre o direito de preferência de credores. Nota-se que, no
caso de entrega de produto de arrematação de determinado bem penhorado,
verificar-se- á se existe direito de preferência legal (artigo 711 do Código de
Processo Civil) e, somente após, será considerado o direito de preferência que decorre da penhora (artigo 612 do Código de Processo Civil). Da análise dos
fatos, verifica-se que a Fazenda Nacional realizou a constrição do imóvel, em
momento anterior ao próprio ato de avaliação do bem e, assim, não há que se
falar em ato jurídico perfeito, posto que o gravame sobre o bem foi realizado em
momento anterior à sua arrematação devendo, pois, prevalecer a norma contida
no artigo 186 do CTN, sendo de rigor a determinação da restituição dos valores
levantados, até os limites da dívida tributária, cobrada nos autos da execução
fiscal. Agravo parcialmente provido, com determinação.
Recurso especial: aponta e existência de dissídio jurisprudencial e
alega violação dos arts. 711 do CPC/73 e 6º, caput e § 1º, da LINDB. Defende a
tese de que a manifestação tardia da Fazenda Pública quanto à preferência de seu
crédito não enseja a devolução de valores já levantados, uma vez que atos jurídicos
perfeitos e acabados, atingidos pela preclusão, não podem ser desfeitos. Postula,
ao final, o provimento da irresignação, para que se declare "a irreversibilidade do
pagamento feito" e "a preclusão da pretensão da Fazenda Nacional de se habilitar
na execução aforada pelo Recorrente porquanto inviável a instalação do concurso
depois de realizado o pagamento" (e-STJ fl. 237).
Juízo de admissibilidade: o Tribunal de origem negou seguimento à
irresignação, tendo sido interposto agravo da decisão denegatória, o qual foi
convertido em recurso especial.
Competência interna: após ter sido redistribuído a uma das turmas
integrantes da Primeira Seção, o presente recurso especial foi novamente
encaminhado à Terceira Turma, uma vez definido que a natureza da relação
jurídica litigiosa é de Direito Privado (execução de título extrajudicial).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
O propósito recursal é definir se os valores levantados pelo recorrente
devem ser restituídos ao juízo da execução em virtude da existência de crédito
preferencial, cujo titular manifestou-se nos autos depois de perfectibilizada a
arrematação do bem objeto da penhora.
DELINEAMENTO FÁTICO.
1. Depreende-se dos autos que, em 17/8/1993, a recorrida ofereceu
ao banco recorrente, como garantia hipotecária da obrigação contratualmente
assumida perante ele, o imóvel descrito à fl. 28 (e-STJ).
2. A avença firmada não foi adimplida, o que ensejou o ajuizamento da
presente execução, protocolizada em 1/6/1994 (e-STJ fl. 22). Em seu curso, foi
determinada a penhora do bem hipotecado, ato que foi levado a registro em
12/7/1996 (e-STJ fl. 34).
3. Em 10/9/2009, contudo, foi registrada no cartório competente a penhora do mesmo bem para fins de garantia de execução fiscal ajuizada pela
Fazenda Nacional (e-STJ fl. 53).
4. Seguiu-se, então, nestes autos, à hasta pública do imóvel (em
24/2/2010), resultando no depósito judicial da quantia de R$ 34.198,56 (trinta e
quatro mil cento e noventa e oito reais e cinquenta e seis centavos).
5. Diante da ausência de oposição de embargos, determinou-se, em
6/12/2012, a expedição de carta de arrematação e de mandado de imissão na
posse em favor do adquirente e, em razão de o bem alienado também ter sido
penhorado como garantia da execução fiscal supramencionada, ordenou-se que
fosse comunicado o juízo competente (e-STJ fl. 107).
6. Ato contínuo, o juízo de primeiro grau deferiu o pedido do credor,
ora recorrente, de levantamento do produto da arrematação.
7. Todavia, diante da manifestação da Fazenda Nacional (e-STJ fls.
151/152), requerendo que o valor recebido fosse transferido para satisfação do
crédito cobrado no executivo fiscal por ela movido, houve por bem o juiz
determinar ao credor a restituição do montante levantado.
8. Contra essa decisão insurgiu-se o recorrente, ao argumento de que
a circunstância de a União ter deixado transcorrer in albis o prazo de que dispunha
para instalação do concurso de credores inviabiliza a o pedido de restituição.
9. O Tribunal a quo, ao julgar o agravo de instrumento interposto pela
instituição financeira, decidiu manter a determinação de devolução da quantia,
limitando-a, contudo, ao valor do crédito tributário perseguido pela Fazenda
Nacional.
DA PREFERÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO, DA PRECLUSÃO E
DA HIPÓTESE DOS AUTOS.
10. Dispõe o art. 711 do CPC/73, vigente à época dos fatos sob análise
e indicado como violado pelo recorrente:
Art. 711. Concorrendo vários credores, o dinheiro ser-lhes-á
distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas prelações; não
havendo título legal à preferência, receberá em primeiro lugar o credor que
promoveu a execução, cabendo aos demais concorrentes direito sobre a
importância restante, observada a anterioridade de cada penhora.
11. Do teor da norma, extrai-se que a preferência oriunda da natureza
do crédito sobrepõe-se àquela decorrente da anterioridade da penhora.
12. Assim, na espécie, considerando que os créditos titularizados pela
Fazenda Nacional, de natureza tributária, não se sujeitam a concurso de credores e
detém preferência sobre os do banco recorrente – conforme preceituam os arts.
186 e 187 do CTN –, afigura-se irrelevante para solução da controvérsia o fato de a
penhora do imóvel alienado ter sido levada a registro primeiramente em benefício
da instituição financeira.
13. De fato, o entendimento desta Corte aponta no sentido de que,
“[c]oexistindo execução fiscal e execução civil, contra o mesmo devedor, com
pluralidade de penhoras recaindo sobre o mesmo bem, o produto da venda
judicial, por força de lei, deve satisfazer o crédito fiscal em primeiro lugar” (REsp
623.415/RS, Primeira Turma, DJ 25/10/2004).
14. No particular, verifica-se da narrativa fática integrante do acórdão
recorrido que, muito embora o juízo de primeiro grau tenha comunicado o juízo da
execução fiscal acerca da arrematação ocorrida nestes autos, o pedido de
levantamento do produto da alienação foi deferido em favor do recorrente sem que se tivesse aguardado a manifestação do ente público (e-STJ fl. 210).
15. Quanto ao ponto, o acórdão recorrido assentou que a própria
arrematante apresentou petição nos autos protestando “pelo bloqueio do
levantamento daqueles valores, devido à existência da penhora registrada pela
Fazenda Nacional sobre o bem adjudicado, para garantia do adimplemento de
débito tributário, o qual possui preferência sobre o crédito do agravante” (e-STJ fl.
210).
16. Também constou do aresto impugnado que o banco recorrente
“tinha plena ciência da existência do gravame realizado pela União sobre o imóvel
e, mesmo sabedor desse fato, manejou o pedido de liberação dos valores, sem
qualquer menção ao fato” (e-STJ, fl. 213).
17. Essa circunstância é bastante para ilustrar que a postura adotada
pela instituição financeira foi de encontro ao princípio da boa-fé, revelando atitude
incompatível com o padrão ético de comportamento (alicerçado na honestidade,
lealdade e probidade) que se espera dos sujeitos de uma relação jurídica, pois,
mesmo estando ciente da existência de crédito preferencial em favor de terceiros,
deixou ela de sinalizar tal fato ao juiz quando do pedido de levantamento da
quantia.
18. Destacada essa relevante intercorrência, passe-se ao exame da
alegada ineficácia da manifestação extemporânea apresentada pela União.
19. Ao contrário do que defende o recorrente, não há de se cogitar da
ocorrência de preclusão.
20. Isso porque, de um lado, não há prazo específico estipulado em lei
a estabelecer marco final para que o titular de crédito preferencial reclame participação no produto da arrematação levada a cabo em processo diverso;
tampouco, na espécie em exame, houve determinação expressa do juízo
estipulando limite temporal para que a Fazenda Nacional apresentasse sua
manifestação.
21. De outro lado, não há notícia nos autos de que a Fazenda Nacional
tenha praticado qualquer ato que possa ser considerado incompatível com seu
interesse em receber o produto da arrematação.
22. Ao contrário, o que se constata do acórdão recorrido é que, logo
depois de ter tomado ciência da excussão do bem, o ente público opôs-se de
modo expresso “ao levantamento da quantia, protestando pela observação de sua
preferência sobre os valores da arrematação do imóvel” (e-STJ fl. 210).
23. Ponto importante a ser sublinhado para auxiliar a solução da
controvérsia é que o juízo de primeiro grau, apesar de provocado em duas
oportunidades pela adquirente do imóvel (e-STJ fls. 127/128 e fls. 136/137),
sequer preocupou-se em determinar, previamente, a intimação do ente público – titular, frise-se, de crédito preferencial garantido por penhora incidente sobre o
mesmo bem – acerca da alienação judicial (conforme exige o art. 698 do CPC/73),
tendo ordenado, tão somente, que a arrematação fosse comunicada ao juízo onde
tramita a execução fiscal.
24. A ausência de manifestação da União em momento antecedente
ao levantamento do produto da arrematação, portanto, não pode ser vista como
desídia, de modo que não se afigura razoável – sobretudo diante do interesse
público subjacente à persecução do crédito tributário – obstaculizar a satisfação de
sua pretensão em razão de circunstância a que não deu causa.
25. Diante desse panorama, reconhecido o equívoco cometido pelo juízo de primeiro grau ao possibilitar o levantamento dos valores sem a prévia
intimação da Fazenda Pública, ao que se soma a prática de ato incompatível com a
boa-fé objetiva por parte do recorrente, a restituição do produto da arrematação,
nos moldes como definido pelo Tribunal a quo, é medida impositiva.
26. Vale registrar que, embora não se trate de precedente vinculante,
o STJ, por meio de sua Primeira Turma, já conferiu solução semelhante ao
examinar controvérsia análoga à presente, consoante se pode observar da ementa
que segue:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO
DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. ARREMATAÇÃO DE BEM PENHORADO EM
EXECUÇÃO DE CÉDULA RURAL COM GARANTIA HIPOTECÁRIA E EM EXECUÇÃO
FISCAL. PAGAMENTO. PRECLUSÃO. SÚMULA 7/STJ. DIREITO DE PREFERÊNCIA
DO CRÉDITO ESTAMPADO NA CÉDULA RURAL. DL 413/69. FALTA DE
PREQUESTIONAMENTO. SUJEIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO A CONCURSO DE
CREDORES. DESNECESSIDADE. ART. 187 DO CTN.
[...]
2. O agravante (Banco do Brasil) sustenta que, em face
da preclusão, não é possível reclamar direito de preferência do
crédito tributário depois de realizado o levantamento dos valores
pelo exequente. Entretanto, no caso dos autos, anteriormente ao
levantamento dos valores oriundos da arrematação pelo Banco do
Brasil, a União já havia informado a existência de créditos tributários
vinculados ao mesmo bem penhorado, fato esse que motivou o juízo
de primeiro grau admitir que o levantamento questionado decorreu
de equívoco no processamento do feito. Frise-se que o óbice contido na
Súmula 7/STJ não permite a revisão das premissas fáticas consideradas pelas
instâncias ordinárias para o afastamento da preclusão invocada.
[...]
4. "[a] Fazenda Pública não participa de concurso, tendo prelação
no recebimento do produto da venda judicial do bem penhorado, ainda que esta
alienação seja levada a efeito em autos de execução diversa" (REsp 538.656/SP,
Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 03/11/2003). No mesmo sentido:
REsp 1.194.742/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
DJe 31/03/2011; REsp 681.402/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma,
DJ 17/9/2007; REsp 617.820/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ
12/09/2005.
5. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1204972/MT, Rel. Ministro BENEDITO
GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/03/2012, DJe 06/03/2012)
27. Por fim, no que concerne à apontada violação do art. 6º da LINDB,
consigne-se que, nos termos da remansosa jurisprudência desta Corte, tal alegação
não viabiliza a interposição de recurso especial, pois os princípios contidos no
mencionado dispositivo – direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada – apesar de previstos em lei ordinária, são institutos de índole marcadamente
constitucional (art. 5º, XXXVI, da CF/88). Nesse sentido: AgInt no REsp
1.754.766/BA, Terceira Turma, DJe 5/12/2019, e AgInt no AREsp 1.057.376/GO,
Quarta Turma, DJe 15/4/2019.
CONCLUSÃO
Forte em tais razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.