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5 de maio de 2021

DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE MÉRITO. NECESSIDADE DE EXAME DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM O PEDIDO E DA POSSIBILIDADE DE DECOMPOSIÇÃO DO PEDIDO. ASPECTOS DE MÉRITO DO PROCESSO. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONDIÇÃO DA AÇÃO AO TEMPO DO CPC/73. SUPERAÇÃO LEGAL. ASPECTO DO MÉRITO APÓS O CPC/15. RECORRIBILIDADE IMEDIATA DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE AFASTA A ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ADMISSIBILIDADE.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.757.123 - SP (2018/0190866-9) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE MÉRITO. NECESSIDADE DE EXAME DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM O PEDIDO E DA POSSIBILIDADE DE DECOMPOSIÇÃO DO PEDIDO. ASPECTOS DE MÉRITO DO PROCESSO. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONDIÇÃO DA AÇÃO AO TEMPO DO CPC/73. SUPERAÇÃO LEGAL. ASPECTO DO MÉRITO APÓS O CPC/15. RECORRIBILIDADE IMEDIATA DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE AFASTA A ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ADMISSIBILIDADE. ART. 1.015, II, CPC/15. 

1- Ação proposta em 03/04/2017. Recurso especial interposto em 23/02/2018 e atribuído à Relatora em 16/08/2018. 

2- O propósito recursal é definir se cabe agravo de instrumento, com base no art. 1.015, II, do CPC/15, contra a decisão interlocutória que afasta a arguição de impossibilidade jurídica do pedido. 

3- Ao admitir expressamente a possibilidade de decisões parciais de mérito quando uma parcela de um pedido suscetível de decomposição puder ser solucionada antecipadamente, o CPC/15 passou a exigir o exame detalhado dos elementos que compõem o pedido, especialmente em virtude da possibilidade de impugnação imediata por agravo de instrumento da decisão interlocutória que versar sobre mérito do processo (art. 1.015, II, CPC/15). 

4- Para o adequado exame do conteúdo do pedido, não basta apenas que se investigue a questão sob a ótica da relação jurídica de direito material subjacente e que ampara o bem da vida buscado em juízo, mas, ao revés, também é necessário o exame de outros aspectos relacionados ao mérito, como, por exemplo, os aspectos temporais que permitem identificar a ocorrência de prescrição ou decadência e, ainda, os termos inicial e final da relação jurídica de direito material. Precedentes. 

5- O enquadramento da possibilidade jurídica do pedido, na vigência do CPC/73, na categoria das condições da ação, sempre foi objeto de severas críticas da doutrina brasileira, que reconhecia o fenômeno como um aspecto do mérito do processo, tendo sido esse o entendimento adotado pelo CPC/15, conforme se depreende de sua exposição de motivos e dos dispositivos legais que atualmente versam sobre os requisitos de admissibilidade da ação. 

6- A possibilidade jurídica do pedido após o CPC/15, pois, compõe uma parcela do mérito em discussão no processo, suscetível de decomposição e que pode ser examinada em separado dos demais fragmentos que o compõem, de modo que a decisão interlocutória que versar sobre essa matéria, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, poderá ser objeto de impugnação imediata por agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, CPC/15. 

7- Recurso especial conhecido e provido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). MARIANA CUNHA GLIORIO GOZZANO, pela parte RECORRENTE: OLAVO GLIORIO GOZZANO E ADVOGADOS ASSOCIADOS e Outro. 

Brasília (DF), 13 de agosto de 2019(Data do Julgamento) 

RELATÓRIO A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): Cuida-se de recurso especial interposto por OLAVO GLIORIO GOZZANO E ADVOGADOS ASSOCIADOS e OLAVO GLIORIO GOZZANO, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/SP que, por unanimidade, não conheceu do agravo de instrumento interposto pelos recorrentes. 

Recurso especial interposto em: 23/02/2018. Atribuído ao gabinete e m: 16/08/2018. 

Ação: de exigir contas ajuizada por RENATA CRISTINA OREFICE, recorrida, em face dos recorrentes. 

Decisão interlocutória: afastou a preliminar, arguida pelos recorrentes, de impossibilidade jurídica do pedido, “pois na inicial a autora relatou os fatos e especificou os motivos que a levaram a exigir contas” (fl. 19, e-STJ). 

Acórdão: por unanimidade, não conheceu do agravo de instrumento interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXIGIR CONTAS – MANDATO – DECISÃO QUE NÃO ACOLHEU AS ALEGAÇÕES DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, INTERESSE DE AGIR E INÉPCIA DA INICIAL – MATÉRIAS QUE NÃO SE ENQUADRAM NO ROL TAXATIVO DO ARTIGO 1.015 DO NOVO CPC – RECURSO DE QUE NÃO SE CONHECE. (fls. 1.468/1.470, e-STJ). 

Recurso especial: alega-se violação ao art. 1.015, II, do CPC/2015, ao fundamento de que a decisão que não acolhe a arguição de impossibilidade jurídica do pedido passou, a partir da nova legislação processual, a ser considerada como uma decisão que diz respeito ao mérito do processo (fls. 1.473/1.492, e-STJ). 

VOTO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): O propósito recursal é definir se cabe agravo de instrumento, com base no art. 1.015, II, do CPC/15, contra a decisão interlocutória que afasta a arguição de impossibilidade jurídica do pedido. 

1. DA IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE AFASTA A ARGUIÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.015, II, DO CPC/15. 

Inicialmente, lembre-se que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento dos recursos especiais representativos da controvérsia nº 1.696.396/MT e 1.704.520/MT, ambos com acórdãos publicados no DJe de 19/12/2018, pronunciou-se expressamente pela impossibilidade de uso da interpretação extensiva e da analogia para alargar as hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento. 

No ponto, aliás, anote-se ter havido unanimidade da Corte Especial, na medida em que os e. Ministros que foram contrários à tese vencedora – taxatividade mitigada – filiaram-se ao entendimento de que o rol do art. 1.015 do CPC/15 era de taxatividade irrestrita, negando, consequentemente, a possibilidade de interpretação extensiva ou de uso da analogia. 

A tese veiculada neste recurso especial, contudo, não está fundada na extensão ou na analogia, mas, sim, na abrangência e no exato conteúdo do art. 1.015, II, do CPC/15, merecendo trânsito o recurso, pois, sob esse enfoque. 

Estabelecida essa premissa, anote-se que o conceito de decisão interlocutória que versa sobre “mérito do processo” é composto por conceito jurídico indeterminado que, sobretudo após a entrada em vigor do CPC/15, precisa ser objeto profundas e renovadas reflexões, notadamente, em primeiro lugar, porque a nova legislação processual civil incorpora ao direito positivo, de modo expresso, a possibilidade de serem proferidas decisões parciais de mérito. 

Como se assentou em recente precedente desta 3ª Turma, o CPC/15 “passou a reconhecer, expressamente, o fenômeno segundo o qual pedidos ou parcelas de pedidos podem amadurecer em momentos processuais distintos, seja em razão de inexistir controvérsia sobre a questão, seja em virtude da desnecessidade de dilação probatória para resolução daquela matéria”, a fim de que “que tais questões possam ser solucionadas antecipadamente, por intermédio de uma decisão parcial de mérito com aptidão para a formação de coisa julgada material”. (REsp 1.798.975/SP, 3ª Turma, DJe 04/04/2019). No mesmo sentido: REsp 1.702.725/RJ, 3ª Turma, DJe 28/06/2019. 

Assim, é correto afirmar que algum dos pedidos cumulados ou parcela do pedido único suscetível de decomposição podem ser solucionados antecipadamente por intermédio de uma decisão parcial de mérito, como, aliás, leciona-se na melhor doutrina: 

2. Situações em que ocorre cumulação própria e simples de pedidos e formulação de pedido único decomponível. O NCPC não deixa mais qualquer dúvida, estabelecendo de forma clara a possibilidade de fracionamento do mérito ou, em outras palavras, de que a resolução do mérito possa ocorrer não só em sentença, ao final da fase cognitiva do procedimento comum, mas também no curso do processo. O desmembramento do julgamento de mérito em pronunciamentos distintos pressupõe que haja cumulação própria e simples de pedidos, que é aquela em que o autor formula mais de um pedido, no mesmo processo, esperando que todos sejam acolhidos simultaneamente (art. 327). Nessa espécie de cumulação, inexiste dependência lógica entre os pedidos, de maneira que é possível, por exemplo, que o réu reconheceu a procedência jurídica de um deles e impugne os demais. A fragmentação do julgamento de mérito pode ocorrer, ainda, quando há formulação de um único pedido, que permite ser decomposto. (ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 687/688). (...) 

3. Fracionamento do mérito pode se referir a alguns pedidos ou parcela deles. O juiz decidirá de forma parcial o mérito quando alguns dos pedidos formulados (na demanda originária ou na reconvencional) se enquadrar nas hipóteses indicadas nos incisos do texto legal em destaque. O importante é que os pedidos em condições de imediato julgamento sejam independentes dos demais, não podendo haver, por exemplo, cumulação sucessiva de pedidos, sendo aquele que ainda depende de outras provas pressuposto lógico para o acolhimento do outro pedido, que já estaria em condições de ser apreciado. Assim, por exemplo, se o autor deduziu pedidos de indenização por danos morais e materiais, mas se apenas o primeiro está em condições de imediato julgamento, o juiz decidirá conclusivamente o pleito relativa aos danos morais, determinando o prosseguimento do processo quanto à indenização por danos materiais, para que outras provas sejam produzidas. 3.1. O fatiamento pode se dar dentro de um mesmo pedido. Assim, por exemplo, em ação de cobrança em que se postula o pagamento de cem mil reais, se o réu admite ser devido o valor de cinquenta mil reais, esse montante se torna incontroverso e poderá o juiz apreciar conclusivamente essa parcela, prosseguindo o processo para a fase instrutória, relativamente à diferença controvertida. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016. p. 163). 

Para melhor compreensão do fenômeno da possibilidade de decomposição do pedido em fragmentos, é preciso destacar que o pedido é inicialmente cindível em imediato e mediato. Como destaca Carlos Eduardo Stefen Elias: 

O pedido imediato corresponde ao tipo de providência solicitada (classicamente, no processo de conhecimento: declaração, constituição ou condenação do réu), o que determinará a natureza do processo e a forma do procedimento; enquanto o pedido mediato carreia o comportamento ou, conforme termo utilizado correntemente na doutrina, o “bem da vida” pleiteado pelo autor. (ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. As reformas processuais e o princípio da congruência entre sentença e pedido in Revista de Processo: RePro, vol. 33, nº 158, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr. 2008, p. 46/47). 

Daí porque, conforme lecionam Olavo de Oliveira Neto e Patrícia Elias Cozzolino de Oliveira, “O objeto da ação, que entre nos tomou a denominação de pedido, nada mais é do que aquilo que o autor pretende obter ao ingressar com sua demanda em juízo, seja no tocante ao tipo de provimento jurisdicional que requer do Estado, seja no tocante ao bem da vida que requer do sujeito passivo da ação. É o próprio mérito da ação”. (OLIVEIRA NETO, Olavo de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. A necessidade de pedido específico na ação de indenização por dano moral in Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo: RIASP, v. 12, nº 23, jan./jun. 2009. p. 254). 

Para o adequado exame do pedido, não basta apenas que se investigue a questão sob a ótica da relação jurídica de direito material subjacente e que ampara o bem da vida buscado em juízo, mas, ao revés, também é necessário o exame de outros aspectos relacionados ao mérito. 

Nesse contexto, merece destaque o exame de aspectos temporais do pedido, como, por exemplo, se ele foi deduzido em tempo hábil para que se possa, ato contínuo, enfrentar o mérito sob a específica perspectiva da relação de direito material. 

Não é por outro motivo que esta Corte consolidou o entendimento de que as decisões interlocutórias sobre prescrição e decadência (art. 487, II, do CPC/15), por dizerem respeito a um aspecto temporal do pedido, versam sobre o mérito e, assim, são agraváveis com base no art. 1.015, II, do CPC/15. A esse respeito: REsp 1.738.756/MG, 3ª Turma, DJe 22/02/2019; REsp 1.695.936/MG, 2ª Turma, DJe 19/12/2017; REsp 1.778.237/RS, 4ª Turma, DJe 28/03/2019 e REsp 1.772.839/SP, 4ª Turma, DJe 23/05/2019. 

O aspecto da temporalidade do pedido pode ser visto ainda sob outros e diferentes enfoques, como nas hipóteses em que a resolução da controvérsia pressupõe a definição da data inicial e da data final da relação jurídica de direito material. É um aspecto temporal do pedido (e, consequentemente, do mérito) dizer, por exemplo, em ação em que se pretenda a partilha de bens, qual o termo inicial e o termo final da relação havida entre os cônjuges ou conviventes (REsp 1.798.795/SP, 3ª Turma, DJe 04/04/2019). 

É nesse contexto, pois, que deve ser examinado o correto enquadramento da possibilidade jurídica do pedido após a entrada em vigor da nova legislação processual e, consequentemente, a eventual recorribilidade imediata da decisão interlocutória que versa sobre o tema, a teor do art. 1.015, II, do CPC/15. 

Como é cediço, a inserção, no CPC/73, da possibilidade jurídica do pedido na categoria das condições da ação decorre da adoção, por Alfredo Buzaid, da teoria eclética da ação desenvolvida por Enrico Tullio Liebman e que se fundava, essencialmente, em apenas uma situação exemplificativa: o ajuizamento da ação de divórcio, ao tempo proibido na Itália. 

Ocorre que, como detalhadamente noticia a doutrina, Liebman, já na terceira edição de seu clássico Manual de Direito Processual Civil (publicado no ano em que foi aprovado o CPC/73), abandonou a possibilidade jurídica do pedido como uma terceira condição da ação, o que se deve, justamente, ao fato de ter sido aprovada a Lei nº 898 de 1970, que passou a permitir o divórcio na Itália, fazendo com que, na doutrina de Liebman, a possibilidade jurídica do pedido passasse a ser classificada, a partir daquele momento, conjuntamente com o interesse de agir. (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 11ª edição. Bahia: JusPodivm, 2009. p. 201). 

Conclui-se, assim, que a possibilidade jurídica do pedido como terceira condição da ação foi obra exclusiva do legislador do CPC/73 (que decorria, em especial, do art. 267, VI) e que sofreu, desde a sua entrada em vigor, contundentes críticas da doutrina que, àquela época, já qualificava a possibilidade jurídica do pedido como uma questão de mérito. 

Nesse sentido, confira-se a precisa lição de Ovídio Araújo Baptista da Silva, Luiz Melíbio Uiraçaba Machado, Ruy Armando Gessinger e Fábio Luiz Gomes: 

Quanto à possibilidade jurídica do pedido, a lição de Calmon de Passos é insuperável. Demonstra ele que não há qualquer distinção entre a impossibilidade da tutela em abstrato e a pretendida no caso concreto, citando como exemplo uma ação de usucapião em que o autor declinasse na inicial estar na posse de determinado imóvel há oito anos com “animus” de dono, requerendo a final que o juiz lhe declarasse proprietário; obviamente, pela sistemática do Código seria julgado “carecedor da ação” ante a ausência de previsão legal para o atendimento do pedido; por igual não se poderia falar em julgamento de mérito. Contudo, segue Calmon, se este mesmo autor houvesse ingressado com a ação alegando possuir a área há mais de dez anos e invocasse o art. 156, §3º (da Constituição Federal de 1946), estaria presente a referida “condição” da ação, ainda que durante a instrução do feito viesse a ficar comprovada a posse só de oito anos; mas neste caso não haveria “carência” de ação e sim julgamento de improcedência, ainda que resultante da impossibilidade de aplicar a vontade da lei. Qual a diferença entre as duas decisões, pergunta Calmon; ao que responde: Nenhuma, rigorosamente nenhuma. (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da; MACHADO, Luiz Melíbio Uiraçaba; GESSINGER, Ruy Armando; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil. Porto Alegre: Letras Jurídicas, 1983. p. 122). 

É sintomático, pois, que o CPC/15 não tenha reproduzido a possibilidade jurídica do pedido no atual art. 485, VI (que corresponde ao revogado art. 267, VI, do CPC/73), limitando-se a dizer, agora, que o juiz não resolverá o mérito somente quando “verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual”.

Nesse sentido, anote-se que a requalificação da possibilidade jurídica do pedido, de uma condição da ação para uma questão de mérito, consta expressamente da Exposição de Motivos do CPC/15: 

Com o objetivo de se dar maior rendimento a cada processo, individualmente considerado, e atendendo a críticas tradicionais da doutrina, deixou, a possibilidade jurídica do pedido, de ser condição da ação. A sentença que, à luz da lei revogada seria de carência da ação, à luz do Novo CPC é de improcedência e resolve definitivamente a controvérsia. 

No âmbito doutrinário, ensinam José Maria Rosa Tesheiner e Rennan Faria Krüger Thamay que “certo é que desapareceu a “possibilidade jurídica do pedido” como condição da ação, e com razão, porque a doutrina veio a concluir que ela não era senão uma hipótese de improcedência manifesta, tratando-se, pois, de questão de mérito”. (TESHEINER, José Maria Rosa; THAMAY, Rennan Faria Krüger. Condições da ação no novo CPC in Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 12, nº 68, set./out. 2015, p. 18). 

Ainda nesse sentido, o tema foi amplamente abordado por Adroaldo Furtado Fabrício, que assim leciona: 

Antes de qualquer outra dúvida suscitada pela possibilidade jurídica da demanda, uma primeira sempre inquietou a doutrina: seria mesmo logicamente possível apartar do mérito essa questão? Ainda antes: faria sentido, a respeito de qualquer objeto, indagar se ele é possível ou não, para só depois dirimir a questão de como ele é e o que é? E, sobretudo, seria razoável afirmar-se que, quando se diz que a coisa não pode ser, continua viva a questão de apurar se ela é? Algo assim como, em debate sobre haver o homem posto o pé na Lua, perguntar-se previamente, e sem responder àquela outra questão, se esse feito era ou não possível. Ora, se ele foi, era possível; se não foi, toda indagação sobre ser ou não possível cai no vazio da mais absoluta inutilidade. O impossível é aquilo que não se fez. A imprestabilidade do conceito é patente. Concluindo-se que sim, o pedido é compatível com o sistema, mas não se afirma desde logo sua procedência, ter-se-á um fútil exercício acadêmico, a brigar com o escopo prático do processo. Se a conclusão é negativa, frustram-se o esforço e o passivo processual já acumulado e tudo retorna à estaca zero, permanecendo aberta a porta à mesma demanda. Em um e outro caso, nada se ganhou ou progrediu; ao contrário, perde-se o que já se haja feito e retorna-se à situação existente antes da formação do processo. Argumentar-se que o exame prévio da possibilidade economizaria dispêndios talvez necessários à outra resposta seria inconclusivo: há todo um juízo de admissibilidade, com abrangência muito maior, a ser exercitado. A verificação prévia da razoabilidade da postulação (não apenas jurídica), permitindo o eventual indeferimento liminar, assim como as muitas hipóteses de julgamento sem resolução do mérito, asseguram ao julgador amplo instrumental de filtragem das demandas inviáveis. Não há razão para destacar-se desse conjunto o requisito em menção. Por que não, por exemplo, a impossibilidade material, física, que também se pode expor prima facie? É arbitrário o critério que erige em condição de existência (ou mesmo de regular exercício) da ação (como direito, faculdade) um requisito de sua procedência, vale dizer, do acolhimento à pretensão. O brilhante alvitre de restringir-se a verificação dessa condição ao pedido imediato (de prestação jurisdicional) não soluciona o impasse. Por certo, parcela considerável das objeções que oponho ao conceito resultaria afastada. Mas, de outra banda, esse mesmo conceito, assim desfigurado, já não corresponderia ao laboriosamente construído pela doutrina anterior e, o que é mais grave, o descaracterizaria como requisito ao qual se pretende subordinar o conceito de ação. À parte essas considerações, não há como sustentar-se que a decisão declaratória da impossibilidade jurídica seja estranha ao meritum causae – salvo, talvez, na modalidade atenuada que só contempla a inviabilidade da pretensão processual. Essa negativa envolve necessariamente a afirmação de que o autor não tem razão. Mais enfaticamente até do que ocorre na sentença de improcedência, que declara a inexistência em concreto do direito subjetivo invocado pelo autor: responde-lhe o juiz que esse pedido não se poderia atender em qualquer caso ou circunstância, porque contrário ao próprio sistema. Qualquer que seja o momento processual, e sem importar a extensão e natureza do material com que trabalhou o julgador, o resultado final é de improcedência da demanda porque estabelecido o convencimento judicial da sem-razão do autor. O ser impossível o objeto da postulação é apenas um dos motivos pelos quais ela pode ser repelida. Se dizemos ser impossível o homem ir à Lua, já fica dito que o homem não foi à Lua. Por outro lado, se afirmada a possibilidade jurídica, sem avaliar-se ainda a procedência, nada de útil se terá adiantado. Apenas estaria excluído um dos motivos possíveis de improcedência, em exercício estéril de raciocínio. Em regra, aliás, os juízes, sabiamente, não costumam entregar-se a esse onanismo intelectual: se não é caso de improcedência prima facie da demanda (entre cujos fundamentos cogitáveis está a impossibilidade), com evidência então já suficiente, remetem o exame da matéria à sentença final de mérito – sua sede natural (FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. O interesse de agir como pressuposto processual in Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, nº 1, jan./abr. 2018, p. 174/176). 

Finalmente, este também foi o entendimento desta Corte em recente precedente, no qual se consignou: 

“De se notar, ainda, que a terceira das tradicionais condições da ação, a possibilidade jurídica do pedido, deixou de ser prevista como requisito de admissibilidade da demanda, o que denota o acolhimento pelo legislador da corrente doutrinária que há muito contestava a possibilidade jurídica do pedido como categoria válida, pois que na verdade se trataria de matéria de mérito (posição que posteriormente chegou mesmo a ser adotada por Liebman). Com efeito, verifica-se que, no novo CPC, a possibilidade jurídica do pedido passou a integrar o mérito da causa”. (AR 3.667/DF, 1ª Seção, DJe 23/05/2016). 

A conclusão, pois, é de que a possibilidade jurídica do pedido compõe uma parcela do mérito em discussão no processo, suscetível de decomposição e que pode ser examinada em separado dos demais fragmentos que o compõem, razão pela qual a decisão interlocutória que versar sobre esse tema, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, em verdade, versará sobre uma parte do mérito que se cristalizará após o julgamento. 

Na hipótese, a decisão interlocutória proferida em 1º grau de jurisdição afastou a alegada impossibilidade jurídica do pedido, qualificando-a ainda como preliminar, ao fundamento de que “na inicial a autora relatou os fatos e especificou os motivos que a levaram a exigir contas”. (fl. 19, e-STJ). 

O acórdão recorrido, por sua vez, não conheceu do agravo de instrumento interposto ao fundamento de que a preliminar de arguição de impossibilidade jurídica do pedido não se amoldaria às hipóteses de cabimento do referido recurso (fls. 1.468/1.470, e-STJ). 

Ocorre que, conforme amplamente exposto nas razões de decidir acima delineadas, a possibilidade jurídica do pedido, além de não ser mais uma condição da ação a ser examinada em caráter preliminar (como era no CPC/73 por expressa disposição legal), trata-se de parte da questão de mérito discutida no processo, pouco importando, a esse respeito, que se trate de situação não capitulada especificamente como hipótese de julgamento liminar de improcedência do pedido (art. 332 do CPC/15), sobretudo porque a questão pode não ser aferível ictu oculi, mas, ao revés, demandar a instauração de regular contraditório. 

Em síntese, por qualquer ângulo que se examine a questão em debate, conclui-se que o acórdão recorrido violou o art. 1.015, II, do CPC/15. 

2. CONCLUSÕES. 

Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial, determinando o retorno do processo ao TJ/SP para que, afastado o óbice do cabimento, examine a alegação de que o pedido seria juridicamente impossível. 

Filigrana doutrinária: Impossibilidade jurídica do pedido como condição da - Fredie Didier

Ocorre que, como detalhadamente noticia a doutrina, Liebman, já na terceira edição de seu clássico Manual de Direito Processual Civil (publicado no ano em que foi aprovado o CPC/73), abandonou a possibilidade jurídica do pedido como uma terceira condição da ação, o que se deve, justamente, ao fato de ter sido aprovada a Lei nº 898 de 1970, que passou a permitir o divórcio na Itália, fazendo com que, na doutrina de Liebman, a possibilidade jurídica do pedido passasse a ser classificada, a partir daquele momento, conjuntamente com o interesse de agir. 


DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 11ª edição. Bahia: JusPodivm, 2009. p. 201. 

17 de abril de 2021

Cabe agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que acolhe ou afasta a arguição de impossibilidade jurídica do pedido

Fonte: Dizer o Direito 

Referência: https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/cabe-agravo-de-instrumento-contra.html


Imagine a seguinte situação hipotética:
João ajuizou ação de exigir contas contra Pedro.
Em sua contestação, Pedro, dentre outros argumentos, suscitou, como preliminar, a impossibilidade jurídica do pedido.
O juiz proferiu decisão interlocutória rejeitando (afastando) a arguição de impossibilidade jurídica do pedido.
Pedro interpôs agravo de instrumento contra essa decisão interlocutória.
O Tribunal de Justiça não conheceu do recurso afirmando que as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento estão elencadas taxativamente no art. 1.015 do CPC/2015 e que neste rol não há previsão de agravo contra decisão interlocutória que rejeita a arguição de impossibilidade jurídica do pedido:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
I - tutelas provisórias;
II - mérito do processo;
III - rejeição da alegação de convenção de arbitragem;
IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica;
V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação;
VI - exibição ou posse de documento ou coisa;
VII - exclusão de litisconsorte;
VIII - rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio;
IX - admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros;
X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução;
XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º;
XII - (VETADO);
XIII - outros casos expressamente referidos em lei.
Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.

Pedro não se conformou e recorreu ao STJ, que apreciou o tema. Cabe agravo de instrumento neste caso?
SIM.



Com base em qual hipótese de cabimento?
Inciso II. A decisão que trate sobre a impossibilidade jurídica do pedido, sem extinguir o processo, é uma decisão interlocutória que versa sobre o mérito do processo, enquadrando-se, portanto, no inciso II do art. 1.015 do CPC/2015.

Mas a “possibilidade jurídica” do pedido não é uma condição da ação?
NÃO, não é.

Possibilidade jurídica no CPC/1973
No CPC/1973, a possibilidade jurídica do pedido foi prevista como sendo uma das condições da ação. Isso foi inspirado na teoria eclética da ação desenvolvida pelo jurista italiano Enrico Tullio Liebman. O exemplo que inspirou Liebman a criar essa “condição” era o ajuizamento da ação de divórcio na Itália. O divórcio era proibido naquele país e Liebman dizia que, se fosse ajuizada uma ação requerendo o divórcio, haveria impossibilidade jurídica do pedido.
Ocorre que Liebman, já na 3ª edição de seu livro “Manual de Direito Processual Civil “(publicado no ano em que foi aprovado o CPC/1973), deixou de defender a ideia de que a “possibilidade jurídica do pedido” seria uma terceira condição da ação. Isso se deu pelo fato, em 1970, de ter sido aprovada, na Itália, uma lei que passou a permitir o divórcio naquela país. Assim, o exemplo que era dado pelo jurista deixou de existir. Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 11ª ed., Salvador: Juspodivm, 2009, p. 201.
Conclui-se, assim, que a possibilidade jurídica do pedido como terceira condição da ação foi obra exclusiva do legislador do CPC/1973 e que sofreu, desde a sua entrada em vigor, contundentes críticas da doutrina que, àquela época, já qualificava a possibilidade jurídica do pedido como uma questão de mérito.

Possibilidade jurídica no CPC/2015
O CPC/2015 deixou de considerar a possibilidade jurídica do pedido como sendo uma condição da ação e passou a entender que se trata de uma “questão de mérito”, conforme constou expressamente na Exposição de Motivos do novo Código:
“Com o objetivo de se dar maior rendimento a cada processo, individualmente considerado, e atendendo a críticas tradicionais da doutrina, deixou, a possibilidade jurídica do pedido, de ser condição da ação. A sentença que, à luz da lei revogada seria de carência da ação, à luz do Novo CPC é de improcedência e resolve definitivamente a controvérsia.”

Justamente por isso, o CPC/2015 não fala em “possibilidade jurídica do pedido” em seu art. 485, VI (que corresponde ao revogado art. 267, VI, do CPC/73):
CPC/2015
CPC/1973
Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:
(...)
VI - verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
(...)
VI - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;

Em suma, atualmente, após o CPC/2015 a “possibilidade jurídica do pedido” compõe uma “parcela do mérito” que está sendo discutido no processo, suscetível de decomposição e que pode ser examinada em separado dos demais fragmentos que o compõem, de modo que a decisão interlocutória que versar sobre essa matéria, seja para acolher a alegação, seja também para afastá-la, poderá ser objeto de impugnação imediata por agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, CPC/2015.

Cabe agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que acolhe ou afasta a arguição de impossibilidade jurídica do pedido.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.757.123-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/08/2019 (Info 654).

5 de abril de 2021

RECURSOS ESPECIAIS. REGISTROS PÚBLICOS. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. AÇÃO DE DESPEJO COM RECONVENÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL. DESMEMBRAMENTO. AVERBAÇÃO. NECESSIDADE. MATRÍCULA INDIVIDUALIZADA. AUSÊNCIA. REGISTRO DO TÍTULO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO. CONDIÇÃO. COAÇÃO. FALTA DE PAGAMENTO DO PREÇO. ALEGAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.851.104 - SP (2017/0260598-3)

RELATOR : MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

TERCEIRA TURMA, POR UNANIMIDADE

EMENTA

RECURSOS ESPECIAIS. REGISTROS PÚBLICOS. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. AÇÃO DE DESPEJO COM RECONVENÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL. DESMEMBRAMENTO. AVERBAÇÃO. NECESSIDADE. MATRÍCULA INDIVIDUALIZADA. AUSÊNCIA. REGISTRO DO TÍTULO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO. CONDIÇÃO. COAÇÃO. FALTA DE PAGAMENTO DO PREÇO. ALEGAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. Os recursos especiais têm origem em três ações (ação de adjudicação compulsória, ação de anulação de negócio jurídico de compra e venda de imóvel e ação de despejo com reconvenção) julgadas em sentença única.

3. As questões controvertidas nos presentes recursos especiais podem ser assim resumidas: (i) se o acórdão recorrido padece de vício de nulidade por negativa de prestação jurisdicional; (ii) se a ausência de averbação do desdobro do imóvel prometido à venda no Registro de Imóveis é obstáculo à procedência da ação de adjudicação compulsória; (iii) se o negócio jurídico de compra e venda está viciado pela coação e (iv) se houve pagamento do preço pela venda do imóvel objeto do contrato.

4. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.

5. A averbação do desmembramento do imóvel urbano, devidamente aprovado pelo Município, é formalidade que deve anteceder qualquer registro da área desmembrada.

6. A existência de imóvel registrável é condição específica da ação de adjudicação compulsória.

7. No caso dos autos, o desmembramento do terreno não foi averbado na matrícula do imóvel, condição indispensável para a procedência da ação de adjudicação compulsória.

8. A inversão das conclusões das instâncias de cognição plena - quanto às alegações de coação e de ausência de pagamento do preço - demandaria o reexame de matéria fático-probatória, procedimento inviável em recurso especial, nos termos da Súmula nº 7 do Superior Tribunal de Justiça. 

9. Recursos especiais não providos.

RELATÓRIO 

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): 

Trata-se de dois recursos especiais interpostos por JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. e por DIMENSÃO ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. M.E. (PARAH PATRIMÔNIO IMOBILIÁRIO LTDA.), respectivamente, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 

Os recursos especiais têm origem em três ações (ação de adjudicação compulsória, ação de anulação de negócio jurídico de compra e venda de imóvel e ação de despejo com reconvenção), julgadas em sentença única. 

Conforme o relatório da sentença, 

"(...) JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. propôs a presente AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA sob o nº 1368/04 contra DIMENSÃO - ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. ME. (antiga denominação para PAPELARIA E TIPOGRAFIA NOSSA SENHORA DE NAZARÉ LTDA.), alegando em síntese que, através de contrato de compra e venda de 25.01.2002, adquiriu o lote, objeto da matrícula 25.818 no 2º Cartório de Registro de Imóveis de Santos-SP, o qual também se encontrava em fase de desmembramento perante a Prefeitura de Santos-SP, através do P.A nº 16.568/2002-82. Apesar de celebrado o negócio, não foi outorgada a escritura definitiva. Notificada extrajudicialmente em 29.09.2004, a ré quedou-se inerte. Em razão da omissão no cumprimento de sua obrigação, pleiteia seja o imóvel adjudicado, outorgando-lhe judicialmente a escritura definitiva. Com a petição inicial, vieram os documentos de fls. 08/34. 

(...) 

DIMENSÃO - ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. ME. propôs a AÇÃO DE ANULAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO sob o nº 933/05 contra JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. (em apenso a estes autos), alegando em síntese que, em Maio/1997 o Instituto Santista de Empreendimentos Culturais S/A foi autuado pelo Fisco Federal, cuja autuação foi lavrada pelo Auditor Fiscal do Tesouro Nacional, Sr. Rafael Meis. Diante dos fatos e, em que pese tenha apresentado o respectivo recurso administrativo, não obteve sucesso e, como não havia condições de saldar o débito tributário, o valor foi encaminhado para Procuradoria da Fazenda Nacional para inscrição na dívida ativa da União. Assim, aproveitando-se da situação, sabedor que a ré não possuía caixa suficiente para quitar o débito tributário, Rafael Meis, o referido auditor fiscal à época dos fatos, exigiu que lhe fossem cedidos os direitos do imóvel, descrito no instrumento particular de compra e venda que se pretende anular, argumentando que seria a única forma de anular a autuação que ele mesmo tinha realizado e evitar as futuras autuações. Por essa razão e diante de todo o sofrimento imposto pelo mencionado auditor, o contrato de compra e venda de imóvel foi lavrado em 25/01/2002, tendo de um lado a vendedora-autora (proprietária do imóvel de maiores proporções) e do outro a compradora-ré Jasmim, esta figurando como imposição do auditor para se lavrar o referido instrumento, frisando-se que a mulher de Rafael Meis, Alzira Tinen Lores, é a sócia majoritária da ré. Ressaltou, ainda, que no ano de 2004, por intermédio de alteração societária da empresa Jasmim, o referido auditor Rafael tornou-se sócio controlador da empresa. Não bastasse, a ré, manipulada pelo Sr. Rafael, a fim de criar elementos que dessem características de legitimidade à situação, elaborou contrato aditivo de locação cuja autora figurava como locatária, visto que jamais perdeu a posse direta do referido imóvel, tendo, inclusive, opção de recomprá-lo. Ressalta que referida cláusula de 'recompra' foi incluída no aditivo, com o fim de garantir as 'promessas' realizadas pelo dito auditor posto que se não fossem cumpridas (anulação da autuação, que de fato não ocorreu), seria uma maneira de minimizar a gravidade das exigências e o imóvel seria devolvido ao proprietário originário. 

Em razão dos fatos, pretende a ora autora nos autos da Ação Anulatória, anular o contrato em questão sob a alegação de vício de consentimento, na modalidade coação. Com a petição inicial, vieram os documentos de fls. 15/171. 

(...) 

JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. propôs a AÇÃO DE DESPEJO pelo rito ordinário, sob o nº 1077/07 igualmente em apenso aos autos dos Processos 1368/2004 e 933/2005, contra DIMENSÃO - ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. ME. (antiga denominação para PAPELARIA E TIPOGRAFIA NOSSA SENHORA DE NAZARÉ LTDA.), alegando em síntese que, através de contrato de compra e venda de 25.01.2002, adquiriu o lote, objeto da matrícula 25.818 no 2º Cartório de Registro de Imóveis de Santos -SP. Assim, permitiu que a vendedora, ora ré, ficasse no imóvel como locatária pelo período de cinco anos: Março/2002 a Março/2007, pelo aluguel mensal de R$ 6.000,00, conforme o contrato de locação que instrui a petição inicial, firmado em 30/01/2002. Aduz que os aluguéis referentes aos meses de março/02 a junho/03 foram depositados pela locatária, mensalmente, em sua conta bancária. Ocorre que a partir do mês de Julho/2003, a ré deixou de efetuar os pagamentos devidos, infringindo, pois, cláusula contratual, permitindo o desfazimento da locação. Ante os fatos, pleiteia a decretação do despejo da ré, condenando-a ao pagamento dos aluguéis vencidos e os que se venceram desde a distribuição da presente ação, e que nesse momento perfazem o montante de R$ 356.301,68. Com a petição inicial, vieram os documentos de fls. 05/23. 

(...) 

A requerida (Dimensão) ofereceu, ainda, nos autos da ação de Despejo, a reconvenção de fls. 221/236, alegando que o contrato de locação em questão não existe, posto estar viciado pela coação, uma vez maculado o consentimento na sua formulação, argumentando sua pretensão nos mesmos fatos já expostos nas demais ações supramencionadas. Requereu a procedência do pedido, com a declaração de nulidade do contrato de locação por vício de consentimento, na modalidade de coação" (e-STJ fls. 672-676 - grifou-se).

O juízo de primeiro grau julgou 

(i) "(...) PROCEDENTE o pedido inicial da ação anulatória (Processo 933/2005), para ANULAR o 'Instrumento Particular de Compromisso de Venda e Compra', bem como, o 'Aditivo a Contrato de Compromisso de Venda e Compra', ambos lavrados junto ao 5º Cartório de Notas de Santos, documentos de fls. 136/139 e de fls. 161/162 (...)" (e-STJ fl. 683); 

(ii) "(...) IMPROCEDENTES os pedidos das ações de Adjudicação Compulsória (Processo 1368/2004) e Despejo (Processo 1077/2007), propostas pela, ora ré, Jasmim Participações Ltda. (...)" (e-STJ fl. 683), e 

(iii) "(...) PROCEDENTE a reconvenção proposta pela, ora autora, Dimensão, nos autos da ação de Despejo, para ANULAR o 'Contrato de Locação' que instruiu o pedido inicial, documento de fl. 16/19 dos autos 1077/2007 (...)" (e-STJ fl. 683). 

Irresignada, JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. interpôs recurso de apelação (e-STJ fls. 699-751), que foi seguido de recurso adesivo por DIMENSÃO ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. M.E. (e-STJ fls. 809-816). 

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, conferiu parcial provimento ao recurso de apelação e negou provimento ao recurso adesivo em acórdão assim ementado:

"ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO. COAÇÃO. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. DESPEJO. Sentença de procedência da ação anulatória, com improcedência das ações conexas de adjudicação compulsória e de despejo. Reforma em parte. 1. Nulidade da sentença. Inexistência. Litisconsórcio necessário não configurado. Anulação de contrato de compra e venda firmado exclusivamente entre as partes. Desnecessidade de participação do agente coator e do paciente da coação. Inteligência do artigo 47 do Código de Processo Civil e do artigo 101, §§1º e 2º, do Código Civil de 1916. Julgamento extra e ultra petita. Não caracterização. Anulação do contrato de compra e venda que leva à anulação decorrente dos aditivos contratuais e do contrato de locação. Acessório que segue o principal (art. 59, CC/1916). Cerceamento de defesa. Provas dos autos suficientes para o julgamento. Desnecessidade de prova pericial contábil (art. 130, CPC). Apelante que apresentou memorial antes da sentença. Preclusão lógica. Alegação de nulidade da sentença afastada. 2. Prescrição e decadência. Não configuração. Prazo de quatro anos, conforme artigo 178, §9º, inciso V, 'a', do Código Civil de 1916. Prazo prescricional iniciado na data da contratação, em 25 de janeiro de 2002. Emenda à inicial e juntada de documentos para citação da ré em 29 de setembro de 2005, antes do esgotamento do prazo prescricional. Ordem de citação proferida em 06 de outubro de 2005. Citação tentada por carta, não consumada por ausência da apelante. Citação por oficial de justiça cumprida positivamente em 19 de abril de 2006. Atraso da citação, para interrupção do prazo prescricional (art. 219, caput, CPC), não causado por ato da apelada. Entendimento da súmula 106 do STJ. Não acolhimento. 3. Coação. Não caracterização. Ausência de nulidade do negócio jurídico. Apreciação da coação levando-se em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e as demais circunstâncias que influam na gravidade do ato (art. 99, CC/1916). Provas testemunhais que comprovam a não gravidade do ato de coação. Compra e venda pactuada livremente entre as partes, principalmente para o interesse, em conluio, de cancelar auto de infração tributária. Condições dos pacientes que afastam a caracterização da coação. Obrigação cumprida em parte pelo devedor, ciente do vício (art. 150, CC/1916). Renúncia em relação à pretensão de anular o contrato (art. 151, CC/1916). Coação afastada. Negócio jurídico válido. 4. Adjudicação compulsória. Improcedência. Não especificação do parcelamento do terreno na matrícula do imóvel junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Inteligência do artigo 37 da Lei 6.766/1979. Necessidade de prévio registro do desmembramento do imóvel, antes da adjudicação compulsória. Possibilidade de adjudicação para outorga de escritura pública definitiva da compra e venda do imóvel. Pedido não formulado pela autora. Impossibilidade de acolhimento. Improcedência mantida. 5. Despejo. Ré que confessa não ter pago alguns aluguéis, por entender inválido o contrato. Validade do contrato de locação. Possibilidade de retomada do imóvel pelo locador. Aplicação do artigo 9º, inciso III, da Lei 8.245/1991. Procedência. 6. Recurso adesivo. Honorários advocatícios. Três processos. Sucumbência fixada em cada um deles. Sucumbência de Dimensão Espaço de Educação e Cultura Ltda., como autora, na ação anulatória e na reconvenção, julgadas improcedentes: honorários fixados em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) (art. 20, §4º, CPC). Sucumbência de Jasmim Participações Ltda. na ação de adjudicação compulsória, julgada improcedente: honorários fixados em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) (art. 20, §4º, CPC). Sucumbência de Dimensão Espaço de Educação e Cultura Ltda., como ré, na ação de despejo, julgada procedente: honorários fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais) (art. 20, §4º, CPC). Manutenção. Reformada a sentença para se julgar improcedente a ação anulatória e a reconvenção, movidas por Dimensão Espaço de Educação e Cultura Ltda. em face de Jasmim Participações Ltda., afastando-se a anulação dos contratos firmados entre as partes; e para se julgar procedente a ação de despejo, ajuizada por Jasmim Participações Ltda. em face de Dimensão Espaço de Educação e Cultura Ltda. Mantém-se a improcedência da ação de adjudicação compulsória. Recurso parcialmente provido e recurso adesivo desprovido" (e-STJ fls. 874-876). 

Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 929-932). 

Seguiu-se a oposição de embargos infringentes, que foram rejeitados em aresto assim resumido: 

"EMBARGOS INFRINGENTES. NEGÓCIO JURÍDICO. Apelação parcialmente provida, majoritariamente, para reformar sentença de procedência de ação anulatória, fundada em coação. Afastamento do vício de consentimento. Voto divergente no sentido de manutenção da anulação do negócio jurídico, porém, com fundamento em ocorrência de simulação. Inconformismo. Cabimento dos embargos infringentes. A falta de conformidade entre a sentença e o voto vencido não inviabiliza o recurso interposto. Petição inicial que não contém fundamentação de simulação, mas sim de coação. Coação não reconhecida. Negócio jurídico que se pretende anular celebrado sob a égide do Código Civil de 1916. Impossibilidade de reconhecimento, de ofício, de simulação. Artigo 104 do Código Civil de 1916 dispunha que, tendo havido intuito de prejudicar a terceiros ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contraentes em juízo, quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros. Inviabilidade de se alegar a própria torpeza. Negócio efetuado com o objetivo de burlar a lei, ainda que em conluio com a embargada. Embargos infringentes rejeitados" (e-STJ fl. 1.011). 

Os novos aclaratórios também foram rejeitados (e-STJ fl. 1.036). 

Em suas razões (e-STJ fls. 978-990), JASMIM PARTICIPAÇÕES LTDA. aponta violação dos artigos 466-B e 535, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973 e 37 da Lei nº 6.766/1979. 

Sustenta, inicialmente, que a ausência de registro do desdobro do imóvel prometido à venda no Registro de Imóveis não é obstáculo à procedência da ação de adjudicação compulsória. 

Afirma, ainda, que teria havido negativa de prestação jurisdicional ao deixar o Tribunal de origem de se manifestar acerca de aspectos relevantes da demanda suscitados em embargos de declaração. 

Assevera que, a despeito do nome dado à ação (ação de adjudicação compulsória), o pedido veio embasado no artigo 466-B do Código de Processo Civil de 1973, de modo que poderia ser parcialmente acolhido a fim de permitir "a adjudicação compulsória somente para a outorga da escritura, não para o registro" (e-STJ fl. 988). 

DIMENSÃO ESPAÇO EDUCAÇÃO E CULTURA LTDA. M.E., por sua vez (e-STJ fls. 1.043-1.070), aduz, além de divergência jurisprudencial, violação dos seguintes dispositivos legais e respectivas teses: 

(i) artigos 98 e seguintes do Código Civil de 1916 (artigos 151, 154 e 171 do Código Civil de 2002) - defendendo a necessidade de anulação do negócio jurídico de compra e venda por vício do consentimento (coação), e 

(ii) artigo 1.122 do Código Civil de 1916 (artigos 481, 482 e seguintes do Código Civil de 2002) - entendendo que estaria descaracterizado o contrato de compra e venda pela ausência de pagamento do preço. 

Com as contrarrazões (e-STJ fls. 1.083-1.093 e 1.095-1.106), e não admitidos os recursos na origem (e-STJ fls. 1.108-1.110 e 1.111-1.113), foram providos os recursos de agravo para melhor exame dos recursos especiais (e-STJ fls. 1.184-1.186 e 1.187-1.189). 

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): 

De início, registra-se que o acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 

1. Da delimitação da controvérsia recursal 

As questões controvertidas nos presentes recursos especiais podem ser assim resumidas: (i) se o acórdão recorrido padece de vício de nulidade por negativa de prestação jurisdicional; (ii) se a ausência de registro do desdobro do imóvel prometido à venda no Registro de Imóveis é obstáculo à procedência da ação de adjudicação compulsória; (iii) se o negócio jurídico de compra e venda está viciado pela coação e (iv) se houve pagamento do preço pela venda do imóvel objeto do contrato. 

2. Da negativa de prestação jurisdicional 

Inviável o acolhimento da pretensão recursal no tocante ao artigo 535, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973. 

Segundo a recorrente JASMIM, o Tribunal de origem teria deixado de se pronunciar acerca de ponto relevante, qual seja, a alegação de que, a despeito do nome dado à ação (ação de adjudicação compulsória), o pedido, em verdade, veio embasado no artigo 466-B do Código de Processo Civil de 1973, que admite a propositura de ação judicial para o fim de obtenção de sentença que substitua a vontade daquele que se comprometeu a concluir um contrato, e não o fez ("Art. 466-B. Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado."). 

Ocorre que, segundo consignado de forma categórica pela Corte local, "não foi esse o pedido da apelante, mas sim a adjudicação definitiva para averbação da transferência da parcela do imóvel junto ao 2º Cartório de Registro de Imóveis da comarca de Santos" (e-STJ fl. 886). 

Como cediço, a ausência de pedido na exordial obsta o deferimento do pleito. 

Logo, o Tribunal local, ao deixar de tecer considerações mais pormenorizadas acerca da exegese do supramencionado dispositivo legal, como era o intento da recorrente, não incorreu em negativa de prestação jurisdicional. 

3. Da ausência de matrícula própria 

Na visão da recorrente JASMIM, a ausência de averbação do desdobro do imóvel prometido à venda no registro de imóveis não seria obstáculo à procedência da ação de adjudicação compulsória. 

Para o Tribunal estadual, por outro lado, a especificação do desmembramento do terreno na matrícula do imóvel junto ao Cartório de Registro de Imóveis seria, sim, condição indispensável para a procedência da ação de adjudicação compulsória. 

Confira-se o trecho do acórdão recorrido: 

"(...) (...) a adjudicação compulsória não pode ser julgada procedente, não sem a especificação do parcelamento do terreno na matrícula do imóvel junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Veja-se que a matrícula de fls. 38/41 refere-se à totalidade do terreno de propriedade da apelada, sem o parcelamento aprovado pela Municipalidade de Santos pela certidão de fls. 23/24. Nos termos do artigo 37 da Lei 6.766/1979, é vedada a venda de lote de loteamento ou desmembramento ainda não registrado. Inexiste qualquer registro do desmembramento do imóvel em questão, mesmo após a aprovação pela prefeitura de Santos, junto à matrícula do imóvel desmembrado e que era de propriedade da apelada. Caberá à apelante proceder primeiramente ao registro do desmembramento do imóvel, antes de demandar a apelada pela adjudicação compulsória do imóvel e a averbação do lote do terreno. (...)" (e-STJ fl. 885 - grifou-se). 

O acórdão impugnado não está a merecer reforma. 

Com efeito, a teor do disposto no artigo 37 da Lei nº 6.766/1979 (Lei de parcelamento do solo urbano), "É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado". 

A par disso, segundo o regramento previsto no Decreto-Lei nº 58/1937, julgada procedente a ação de adjudicação compulsória, a sentença valerá como título para transcrição no cartório de registro de imóveis respectivo. 

Eis a redação dos artigos 15 e 16 do referido diploma legal: "Art. 15. Os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o pagamento integral do preço, e estando quites com os impostos e taxas, exigir a outorga da escritura de compra e venda". (grifou-se) "Art. 16. Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo. § 1º A ação não será acolhida se a parte, que a intentou, não cumprir a sua prestação nem a oferecer nos casos e formas legais. § 2º Julgada procedente a ação a sentença, uma vez transitada em julgado adjudicará o imóvel ao compromissário, valendo como título para a transcrição. § 3º Das sentenças proferidas nos casos deste artigo, caberá apelação. § 4º Das sentenças proferidas nos casos deste artigo caberá o recurso de agravo de petição. § 5 º Estando a propriedade hipotecada, cumprido o dispositivo do § 3º, do art. 1º, será o credor citado para, no caso deste artigo, autorizar o cancelamento parcial da inscrição, quanto aos lotes comprometidos". (grifou-se) 

Ora, se o imóvel cuja escritura se exige a outorga não possui matrícula própria, individualizada no registro de imóveis, eventual sentença que substitua a declaração de vontade do promitente vendedor torna-se inócua, pois insuscetível de transcrição. 

De fato, a ação de adjudicação compulsória, classificada como ação de execução em sentido lato, não se limita a condenar, dispensando qualquer necessidade de execução típica posterior. 

Daí porque a existência de imóvel registrável é condição específica da ação de adjudicação compulsória, de modo que "a averbação do desmembramento de imóvel urbano, devidamente aprovado pela Prefeitura Municipal, é formalidade prévia que deve anteceder qualquer registro da área desmembrada" (SILVA FILHO, Elvino. O desmembramento de imóvel perante o registro imobiliário. Revista de Direito Imobiliário, v. 4, n. 7, jan./jun. 1981, pág. 60), tudo em conformidade com o que preconiza a Lei de Registros Públicos: 

"Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. (...) II - a averbação: (...) 4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis;". (grifou-se) "Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. § 1º - As averbações a que se referem os itens 4 e 5 do inciso II do art. 167 serão as feitas a requerimento dos interessados, com firma reconhecida, instruído com documento dos interessados, com firma reconhecida, instruído com documento comprobatório fornecido pela autoridade competente. A alteração do nome só poderá ser averbada quando devidamente comprovada por certidão do Registro Civil". (grifou-se) 

Na mesma linha é a lição de Serpa Lopes: 

"(...) A averbação serve, em princípio, para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real. Representa, além disso, uma medida complementar, tendente a, pelo meio aludido, tornar o Registro de Imóveis um índice seguro do estado do imóvel, do seu desmembramento, da mudança de numeração, bem como da mudança de nome do titular do domínio, das alterações que possam influir na sua capacidade, etc. (...) A sanção da obrigatoriedade da averbação assenta em que, se constar do título a transcrever qualquer das circunstâncias suscetíveis dela, a respectiva transcrição fica dependendo de sua realização". (Tratado dos registros públicos. 6. ed. v. 4. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, págs. 174-175 - grifou-se) 

Nesse mesmo sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça em pelo menos uma oportunidade: 

"CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE PARCELA DE GLEBA RURAL NÃO DESMEMBRADA. AUSÊNCIA DE MATRÍCULA INDIVIDUALIZADA. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO REGISTRO DO TÍTULO. CARÊNCIA DE AÇÃO DECLARADA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Na ação de adjudicação compulsória, o ato jurisdicional, para ser exequível, deve reunir todas as exigências previstas na Lei de Registros Públicos, e nas demais ordenadoras do parcelamento do solo, a fim de facultar o registro do título no cartório respectivo. 2. Detectada, no caso concreto, a impossibilidade jurídica do pedido de registro, haja vista a falta de prévia averbação do desmembramento de gleba rural originária, e posteriores aberturas de matrículas individualizadas das glebas desvinculadas e prometidas à venda pelo réu. Ausente, portanto, de uma das condições específicas da ação de adjudicação compulsória, na dicção do art. 16, § 2º, do Decreto-lei n. 58/1937 - existência de imóvel registrável. 3. Recurso especial a que se nega provimento". (REsp 1.297.784/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 16/09/2014, DJe 24/09/2014 - grifou-se) 

No caso, o Tribunal de origem foi enfático ao afirmar que a matrícula encartada aos autos se refere à totalidade do terreno, sem a averbação do parcelamento/desmembramento aprovado pela municipalidade. 

Vale registrar que, ainda que se trate, como alega a recorrente JASMIM, de simples desdobro do imóvel em lotes menores (sem as características de um verdadeiro loteamento), cuja averbação para individualização da matrícula seria simplificada, não pode ser dispensado esse procedimento prévio à ação de adjudicação pelo mesmo motivo: ausência de imóvel registrável diante da falta de matrícula própria para cada lote. 

Alerta-se para as consequências nefastas que adviriam de eventual intervenção judicial para determinar, por vias transversas, a abertura de matrícula de áreas desmembradas e a titulação de domínio sobre frações não previamente definidas, frustrando as políticas públicas de parcelamento ordenado do solo urbano, com consequências urbanísticas, fiscais e sociais. 

Nessa ordem de ideias, revela-se imperioso concluir, como fez a Quarta Turma no REsp nº 1.297.784/DF, que 

"(...) (...) na ação de adjudicação compulsória, o ato jurisdicional, para ser exequível, deve reunir todas as exigências previstas na Lei de Registros Públicos, e nas demais ordenadoras do parcelamento do solo, a fim de que possa ser registrado no cartório respectivo, não bastando que o adjudicante obtenha sentença procedente, transitada em julgado. Detectada, assim, a impossibilidade jurídica do pedido de registro, ausente uma das condições específicas da ação de adjudicação compulsória, na dicção do art. 16, § 2º, do Decreto-lei n. 57/1937" (pág. 7 do voto - grifou-se). 

4. Das alegações de coação e de falta de pagamento do preço 

Quanto às alegações de coação e de falta de pagamento do preço, articuladas no recurso especial da recorrente DIMENSÃO, a inversão das conclusões das instâncias de cognição plena demandaria o reexame de matéria fático-probatória, procedimento inviável em recurso especial, nos termos da Súmula nº 7/STJ: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial." 

A propósito, vale citar o seguinte trecho do acórdão recorrido: 

"(...) A questão central da lide é a pretensão de anulação do negócio jurídico de compra e venda de imóvel, com aditivo da locação, por vício do consentimento consistente em coação da apelante à apelada, por meio de terceiro, o representante legal da apelante e, à época dos fatos, auditor fiscal federal. (...) As provas carreadas aos autos, apesar das alegações de grave ilícito penal realizado por funcionário público (concussão, art. 316, Código Penal, ou advocacia administrativa, art. 321, Código Penal), não caracterizam qualquer coação a viciar o negócio jurídico de compra e venda entre as partes. Os depoimentos testemunhais não dão conta de que o Sr. Rafael Méis, representante legal da apelante e, à época dos fatos, auditor fiscal, tenha coagido moralmente os representantes legais da apelada para alienarem parte do imóvel de sua propriedade à empresa apelante, a fim de liberar o grupo empresarial de que faz parte a apelada de dívida elevada de imposto de renda. Ao contrário, os depoimentos, mesmo os das testemunhas arroladas pela apelada, informam que a apelada anuiu com o contrato de compra e venda, para que pudesse se livrar de cobrança de imposto de renda que não havia conseguido declarar inexigível administrativamente. (...) Portanto, nota-se que a venda do imóvel foi pactuada não por coação, mas livremente pelos representantes legais da apelada, sob vários interesses distintos. O que importa para o caso, é que um desses interesses era o de cancelar um auto de infração tributária da apelada, já com processo administrativo concluído e inscrito em dívida ativa pouco depois da venda do imóvel (fls. 244/245 dos autos em apenso ao primeiro volume, em 02 de dezembro de 2002). Valendo-se da disposição do artigo 99 do Código Civil de 1916, o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento e demais condições dos sócios da apelada, que teriam sofrido a coação, afastam a exacerbada gravidade de que a apelada quer caracterizar a coação. As testemunhas da apelada afirmam que o contrato de venda do terreno ocorreu, por decisão do sr. Antônio Francisco Smolka, apesar do assessoramento por profissionais habilitados, como contadores, administradores e advogados. Os próprios sócios da apelada e que teriam sofrido a coação, eram empresários, conforme relatam, bem-sucedidos, possuindo uma série de empresas de um mesmo grupo empresarial educacional, do Colégio do Carmo, em Santos. As condições dos pacientes da pretensa coação afastam que ela tenha efetivamente ocorrido. Tudo indica que a compra e venda foi pactuada por livre vontade dos sócios da apelada, com o interesse deliberado e ilegal de tentar sonegar imposto de renda que havia sido inscrito em dívida ativa. A testemunha da apelada, Sr. Paulo Dal Cortivo Siqueira, diz claramente que aconselhou os sócios da apelada a não aceitar o pedido de dinheiro do auditor fiscal, Sr. Rafael Méis, pois poderia conseguir administrativamente o cancelamento da autuação. Mesmo assim, o Sr. Antônio Francisco Smolka, decidiu alienar o imóvel para poder resolver a pendência tributária em questão. Nota-se a consciência dos sócios da apelada em alienar o imóvel para tentar livrar o grupo empresarial de cobrança tributária, ao que tudo indica em conluio com o Sr. Rafael Méis. Não podem agora valerem-se de sua própria torpeza para anular contrato regular e intencionalmente pactuado entre as partes. Inexiste coação no caso. Os sócios da apelada assumiram o risco de, através de acordo ilegal, alienar parte do imóvel para tentar cancelar dívida tributária ativa, assumindo o risco de não haver o cancelamento e de perderem a parte do imóvel que foi alienada. A apelada firmou contrato, ao que tudo indica, em conluio com a apelante e o auditor fiscal, que hoje é representante legal da apelante, intencionalmente para se livrar de cobrança de débito tributário. Tal conduta pode eventualmente configurar ilícito penal ou administrativo, não ilícito contratual de natureza cível. Nada das alegações e provas dos autos leva à caracterização de coação, a eivar de nulidade o contrato cuja anulação se busca. (...) Recibos de fls. 218/221, assinados pelo representante legal da apelada e não impugnados expressamente pela apelada, nem mesmo sua veracidade, provam a ocorrência de quitação da totalidade do negócio de compra e venda que se pretende anular. Se o negócio fora realmente nulo, por coação, cabia à apelada, por seu ônus probatório, comprovar que não recebera o dinheiro cuja quitação está dada pelos recibos em questão, prova que não foi por ela requerida ou produzida em nenhum momento - inexistindo nem mesmo contabilidade da empresa apelada nos autos. No mesmo sentido, o contrato de locação foi inicialmente cumprido, como alega a apelante e provam os documentos de fls. 303/318, com transferências dos valores dos aluguéis feitas pelo Instituto Santista de Empreendimentos Culturais, empresa do mesmo grupo empresarial da apelada e a favor de quem fora locado o imóvel. A locação foi adimplida até julho de 2003, um ano e meio de vigência do contrato cuja nulidade se alega. Tudo isso afasta a caracterização da suposta coação. Em primeiro lugar, os sócios da apelada tinham plena consciência de que estavam alienando o imóvel da apelada para tentar 'sumir' com débito tributário inscrito em dívida ativa, após cancelamento de sua participação no REFIS. Em segundo lugar, a apelada cumpriu com as obrigações dos contratos anulandos por período de tempo razoável, cumprindo em parte considerável os contratos cuja anulação se pretende. Assim, nos termos dos artigos 98, 99, 150 e 151 do Código Civil de 1916, não está configurada qualquer coação que tenham sofrido os sócios da apelada pelo sócio da apelante, não devendo ser anulado o contrato de compra e venda e o de locação firmado entre as partes" (e-STJ fls. 880-885 - grifou-se). 

Assim como posta a matéria, a verificação da procedência dos argumentos expendidos no recurso obstado exigiria o reexame de matéria fática, o que é vedado pela Súmula nº 7/STJ, consoante iterativa jurisprudência desta Corte. 

5. Do dispositivo 

Ante o exposto, nego provimento aos recursos especiais. É o voto.

4 de abril de 2021

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. LOCAÇÃO RESIDENCIAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. NOTIFICAÇÃO PREMONITÓRIA. AUSÊNCIA. OBRIGATORIEDADE. EXTINÇÃO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO

1. Ação ajuizada em 11/04/2016. Recurso especial interposto em 23/05/2018 e atribuído a este gabinete em 31/11/2018. 2. O propósito recursal diz respeito à necessidade de notificação premonitória como pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. 3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o conhecimento nessa parte do recurso especial. 4. Mesmo de forma indireta, o STJ já apontava para a obrigatoriedade da ocorrência da notificação premonitória, ao denominá-la de “necessária” ou mesmo de “obrigatória”. 5. A necessidade de notificação premonitória, previamente ao ajuizamento da ação de despejo, encontra fundamentos em uma série de motivos práticos e sociais, e tem a finalidade precípua de reduzir os impactos negativos que necessariamente surgem com a efetivação do despejo. 6. “Caso a ação de despejo seja ajuizada sem a prévia notificação, deverá ser extinto o processo, sem a resolução do mérito, por falta de condição essencial ao seu normal desenvolvimento”. 7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.

(...)

1. Da controvérsia dos autos 

O propósito recursal diz respeito à necessidade de notificação premonitória como pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. Após ser dada a oportunidade para se manifestassem sobre a matéria, o Tribunal de origem extinguiu o processo, de ofício, por considerar que a notificação premonitória é pressuposto para o ajuizamento da ação de despejo por denúncia vazia. No entanto, a recorrente sustenta que não há previsão legal expressa no sentido de ser indispensável, para o ajuizamento da ação de despejo, a notificação prévia dos locatários. Aduz, ainda, que a notificação premonitória é suprida pela citação dos réus na ação judicial, pois teriam amplo prazo para apresentarem defesa ou mesmo para desocuparem o imóvel.

(...)

Lei 8.245/91, Art. 6º: "O locatário poderá denunciar a locação por prazo indeterminado mediante aviso por escrito ao locador, com antecedência mínima de trinta dias". 

CPC/2015, Art. 240: "A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)".

(...)

3. Da necessidade de notificação prévia ou premonitória 

Por outro lado, conforme mencionado acima, a questão controvertida nos autos diz respeito à interpretação que deve ser conferida ao art. 46, § 2º, da Lei 8.245/91, abaixo transcrito: 

"Art. 46. Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. 

§ 1º Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir - se - á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato. 

§ 2º Ocorrendo a prorrogação, o locador poderá denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para desocupação".

(...)

O entendimento esposado pelo Tribunal de origem afirma que a notificação premonitória, para o encerramento do contrato de locação por denúncia vazia, é obrigatória e, assim, não seria permitido ao locador ajuizar uma ação de despejo sem ser conferido ao locatório o aviso prévio de que trata o art. 46, § 2º, da Lei do Inquilinato...

(...)

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao se debruçar sobre o mencionado dispositivo legal, abordou questões próximas à que é discutida na hipótese dos autos. A título de exemplo, o STJ já discutiu se haveria algum prazo para o ajuizamento da ação de despejo após a ocorrência da notificação premonitória, conforme é possível verificar nos julgamentos abaixo: 

"Realizada a necessária notificação da recorrente e decorrido o lapso temporal nela previsto, poderá a respectiva ação de despejo ser ajuizada a qualquer tempo, uma vez que não está ela subordinada a nenhum prazo. (REsp 276.153/GO, Quinta Turma, DJ 01/08/2006, p. 507)"

"A ação de despejo, nos termos da Lei nº 8.245/91, depois de decorrido o lapso temporal previsto na notificação, não está subordinada a prazo algum, podendo ser ajuizada a qualquer tempo. (REsp 295.145/SP, Quinta Turma, julgado em 15/02/2001, DJ 12/03/2001, p. 172)"

"A Lei de Locação (8.245/91), em seus arts. 46, parág. 2º, e 78, não impõe prazo algum ao locador, após efetuada a obrigatória notificação, ao exercício de seu direito de retomada, através da propositura da competente ação de despejo por denúncia vazia. O locador, neste tipo de ação e obedecida a prévia comunicação legal, é árbitro de suas conveniências, não comportando a lei ou ao intérprete, mais restrições que as expressas. (REsp 137.353/SP, Quinta Turma, julgado em 21/09/1999, DJ 06/12/1999, p. 108)"

No entanto, mesmo de forma indireta, a Quinta Turma do STJ já apontava para a obrigatoriedade da ocorrência da notificação premonitória, ao denominá-la de “necessária” ou mesmo de “obrigatória” nas ementadas dos julgamentos mencionados acima. 

Da mesma forma, a doutrina especializada sobre o assunto também afirma que é obrigatória a ocorrência da notificação premonitória, para a hipótese de denúncia vazia de contrato com prazo indeterminado. Nesse sentido, ver GILDO DOS SANTOS (Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. São Paulo: RT, 6ª ed., 2011) e SÍLVIO VENOSA (Lei do Inquilinato Comentada. São Paulo: Atlas, 13ª ed., 2014). 

No entanto, é na lição de SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA em que esta questão é abordada de maneira mais contundente, ao afirmar a obrigatoriedade da notificação premonitória e apontar a consequência para a hipótese de ajuizamento de ação de despejo sem sua ocorrência, qual seja, sua extinção, sem resolução do mérito, in verbis: 

"Caso a ação de despejo seja ajuizada sem a prévia notificação, deverá ser extinto o processo, sem a resolução do mérito, por falta de condição essencial ao seu normal desenvolvimento. A notificação dispensa solenidade especial, podendo se revestir de qualquer forma, desde que inequívoca. A finalidade da notificação premonitória é a de evitar que o locatário seja surpreendido pelo ajuizamento da ação de despejo, o que ainda lhe poderá acarretar o pagamento dos ônus sucumbenciais. Por outro lado, o aviso permitirá ao locatário preparar-se para a desocupação e obtenção de um novo imóvel onde possa se instalar. Reveste-se, portanto, a exigência de importante finalidade social, para não se agravar, ainda mais, o prejuízo que a mudança certamente causará ao locatário. (Sylvio Capanema de Souza. A Lei do Inquilinato Comentada. Rio de Janeiro: GEN Forense, 9ª ed., 2014, p. 195)". 

Como corretamente apontado pela doutrina, a necessidade de notificação premonitória, previamente ao ajuizamento da ação de despejo, encontra fundamentos em uma série de motivos práticos e sociais, e tem a finalidade precípua de reduzir os impactos negativos que necessariamente surgem com a efetivação do despejo. 

Essa mesma doutrina também aponta uma exceção para a ocorrência da notificação premonitória, que é o ajuizamento da ação de despejo nos 30 (trinta) dias subsequentes ao término do prazo do contrato de locação. Somente nessa hipótese a citação da ação de despejo poderia substituir a notificação premonitória. Confira-se o que afirma a doutrina sobre esse ponto: 

"(...) terminado o prazo contratual, o ajuste estará findo, sem que haja necessidade de qualquer comunicação ou interpelação a fim de que o inquilino deixe o bem locado. De tal forma, se o fizer logo em seguida ao término do pacto, o locador pode ajuizar ação de despejo, não tendo de precedê-la de notificação judicial, extrajudicial ou de qualquer aviso. (...) Trata-se de ação de despejo por término do contrato, e não de despejo por denúncia vazia, uma vez que esta depende de aviso denunciando o liame locatício prorrogado, e aquela do simples findar- se do ajuste (Gildo dos Santos. Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. São Paulo: RT, 6ª ed., 2011, p. 678/679). Caso pretenda o locador despedir o locatário, por não mais lhe convir manter o vínculo, poderá ajuizar a ação de despejo, independentemente de notificação, desde que o faça dentro dos 30 dias subsequentes ao término do prazo do contrato. O Enunciado XV da Corregedoria de Justiça do Tribunal do Rio de Janeiro, confirma o entendimento, ao concluir que “prescinde de notificação a retomada imotivada do imóvel locado desde que intentada em até 30 dias do termo final do respectivo contrato”. (SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA. A Lei do Inquilinato Comentada. Rio de Janeiro: GEN Forense, 9ª ed., 2014, p. 244)". 

Portanto, é permitido ao locador ajuizar diretamente a ação de despejo, prescindindo da notificação prévia, desde que o ajuizamento ocorra nos 30 (trinta) dias seguintes ao termo final do contrato. No entanto, definitivamente, essa exceção não se aplica ao recurso em julgamento. 

É interessante notar, ainda, que a moderna doutrina do Direito Civil tem apontado para a existência de um princípio – ou mesmo um subprincípio – do aviso prévio a uma sanção, fundamentado na boa-fé objetiva, ao contraditório e à vedação da surpresa. Nesse sentido, a doutrina afirma que: 

"Pelo princípio do aviso prévio a uma sanção, todas as pessoas têm direito a serem lembradas previamente à imposição de uma sanção. Toma-se o verbete “sanção” no sentido mais amplo possível a fim de abranger qualquer restrição de direitos. Sabemos que a palavra “sanc¸aÞo” diz respeito a uma punic?aÞo, mas aqui estamos, por escolha metodológica nossa, a utilizá-la de um modo amplo para abranger qualquer situação jurídica em que uma pessoa haverá de sofrer alguma restrição de direito (punição ou não) por conduta de outrem. Assim, o corte da luz do devedor, a prisão civil do alimentado inadimplente, a constituição do devedor em mora são exemplos do que aqui chamamos de “sanc¸aÞo”. O fundamento do princípio ora enfocado é a boa-fé objetiva, do qual decorre a vedação à surpresa, e o princípio do contraditório, de que deflui o direito do interessado em contrapor-se a uma ameaça de restrição de direito. Embora estejamos a focar o Direito Civil e o Processo Civil, o princípio do aviso prévio a uma sanção ultrapassa essas fronteiras para iluminar todos os demais ramos do Direito, com as adaptações necessárias. É um princípio geral do direito brasileiro. Fazemos uma advertência. O princípio do aviso prévio a uma sanção é fruto de outros princípios, conforme já mencionamos. É, na verdade, um sub-princípio. Muitos casos concretos que iremos apontar aqui como exemplo de aplicação desse princípio, mas obviamente também poderiam ser resolvidos pela aplicação dos princípios matrizes, mas isso importaria um esforço argumentativo maior. O princípio do aviso prévio a uma sanção é uma cristalização didática de vários princípios com objetivo de facilitar a linguagem jurídica na resolução de casos concretos, na criação de regras (como na atividade legislativa) e na manutenção de uma coerência sistêmica do direito. (Oliveira, C.E.E. de. O princípio do Aviso Prévio a uma sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado Federal, Maio/2019 (texto para discussão nº 259)". 

Sob essa perspectiva, também é obrigatória a ocorrência da notificação premonitória considerando os aspectos negativos que a ação de despejo pode implicar sobre aquele que deve ser retirado do imóvel. 

Por todo o exposto acima, o julgamento do Tribunal de origem não merece qualquer reparo, ante a obrigatoriedade da ocorrência de notificação premonitória, antes do ajuizamento da ação de despejo.

4. Conclusão 

Forte nessas razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e, nessa parte, NEGO-LHE PROVIMENTO, com fundamento no art. 255, § 4º, I e II, do RISTJ. 

Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, os honorários sucumbenciais ficam majorados para o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), cuja exigibilidade resta suspensa em razão do deferimento do benefício da gratuidade da Justiça.