31 de março de 2021

AÇÃO CIVIL PÚBLICA; TRIBUNAL DE JUSTIÇA; CONVÊNIO CELEBRADO COM O BANCO DO BRASIL; DEPÓSITOS JUDICIAIS; TRANSFERÊNCIA INTERBANCÁRIA DE VALORES; COBRANÇA DE TARIFAS; ILEGALIDADE

RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO DO CONSUMIDOR. CONVÊNIO CELEBRADO ENTRE O BANCO DO BRASIL E O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO PARA O RECEBIMENTO E REMUNERAÇÃO DE DEPÓSITOS JUDICIAIS REALIZADOS EM CONTA À ORDEM DO PODER JUDICIÁRIO NAS AÇÕES EM TRÂMITE EM TODOS OS JUÍZOS PERTENCENTES À CORTE DE JUSTIÇA FLUMINENSE. DISCUSSÃO ACERCA DA LEGITIMIDADE DA COBRANÇA DE TARIFAS (DOC E TED) PARA TRANSFERÊNCIA INTERBANCÁRIA DO NUMERÁRIO AUFERIDO PELOS CONSUMIDORES-JURISDICIONADOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1º, §1º E §2º, I DA RESOLUÇÃO BACEN N. 3.919/2010 QUE DEVE SER EFETIVADA DA FORMA MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR, DADA A SUA VULNERABILIDADE FRENTE AOS CONTRATANTES. TRANSFERÊNCIA INTERBANCÁRIA QUE CONSISTE EM UM DESDOBRAMENTO LÓGICO DO DEPÓSITO JUDICIAL EFETUADO. ATUAÇÃO DO BANCO APELADO COMO AUXILIAR DA JUSTIÇA NA CONDIÇÃO DE DEPOSITÁRIO DOS VALORES PROVENIENTES DE DISPUTA JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE DE RETENÇÃO DA QUANTIA DEPOSITADA A QUALQUER TÍTULO. OPERAÇÃO BANCÁRIA TIDA POR OBRIGATÓRIA PARA AQUELES QUE NÃO DETÉM CONTA CORRENTE NA INSTITUIÇÃO APELADA, POIS A ALTERNATIVA DISPONIBILIZADA, SAQUE DO VALOR EM ESPÉCIE, NÃO É VIÁVEL OU SEQUER RECOMENDADA, DIANTE DO CENÁRIO DE CRESCENTE VIOLÊNCIA URBANA E DESCRÉDITO DA POPULAÇÃO NA SEGURANÇA PÚBLICA INSTITUCIONALIZADA. INEXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL PREVENDO A COBRANÇA DAS TARIFAS QUESTIONADAS NO INSTRUMENTO DO CONVÊNIO FIRMADO. NORMA REGULAMENTADORA DA MATÉRIA QUE CONDICIONA A LEGALIDADE DE COBRANÇA DE QUAISQUER TARIFAS PELOS SERVIÇOS PRESTADOS A CLIENTES À PRÉVIA DISPOSIÇÃO CONTRATUAL. PATENTE ILEGALIDADE DA COBRANÇA PARA CONCRETIZAÇÃO DAS TRANSFERÊNCIAS INTERBANCÁRIAS. INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO DO CDC. INEXISTÊNCIA DE MÁ-FÉ DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA APELADA. DANO MORAL E MATERIAL, INDIVIDUALMENTE CONSIDERADOS, QUE DEVEM SER AVERIGUADOS E QUANTIFICADOS, CASO A CASO, EM EVENTUAL LIQUIDAÇÃO INDIVIDUAL DE DECISUM COLETIVO. DANOS MORAIS COLETIVOS NÃO CONFIGURADOS. INOCORRÊNCIA DE GRAVE SITUAÇÃO QUE SEJA CAPAZ, POR SI SÓ, DE ABALAR A PAZ SOCIAL. PUBLICAÇÃO DO DISPOSITIVO DO PRESENTE ACÓRDÃO EM DOIS JORNAIS DE GRANDE CIRCULAÇÃO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. MEDIDA QUE SE AFIGURA NECESSÁRIA PARA QUE SE DÊ EFETIVIDADE À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL, DANDO CIÊNCIA AOS CONSUMIDORES QUANTO AO RESULTADO DO PROCESSO. PRECEDENTES DESTA CORTE DE JUSTIÇA. REFORMA DO JULGADO. Cinge-se a controvérsia recursal sobre a legitimidade da cobrança de tarifas (DOC/TED) para a transferência de valores oriundos de depósitos judiciais para contas bancárias pertencentes a outras instituições financeiras que não o próprio banco apelado (Banco do Brasil). Tem-se que, na origem, tratou-se de ação civil pública deflagrada, conjuntamente, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2019, na qual se objetivou a declaração de ilegalidade da cobrança de tarifas bancárias para a realização de transferência de valores dos beneficiários de depósitos advindos de ações em curso nesse Tribunal de Justiça para outra instituição financeira. Assim, requereram os autores que fosse declarada nula a cobrança dessa tarifa, bem como fosse o réu condenado a devolver em dobro os valores pagos pelos jurisdicionados-consumidores, a indenizá-los por danos morais e materiais que tenham sofrido, individual e coletivamente, e também informá-los acerca da condenação. Com efeito, a demanda versa matéria exclusivamente de direito, notadamente, a legalidade da cobrança de tarifas bancárias para transferência de valores oriundos de depósitos judiciais para outras instituições financeiras que não o Banco do Brasil, ora apelado. Em assim sendo, total relevância tem a exclusividade mantida pelo banco recorrido quanto ao recebimento de numerários oriundos de ações movidas nesse Tribunal de Justiça, o que constitui verdadeiro monopólio, haja vista que é impossível solicitar-se em juízo que o depósito judicial se dê diretamente em conta corrente de outra instituição financeira. Todas as chamadas "contas judiciais" se encontram atualmente ativas na instituição apelada. E isso se deve ao convênio firmado entre o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e o Banco do Brasil, onde restou acordado o recebimento e remuneração dos depósitos judiciais daquele órgão por essa instituição, a contar de 01.08.2016, conforme cópia do contrato administrativo colacionada às fls. 72/76. Como principais argumentos, dos quais lançou mão o banco apelado, a fim de veementemente defender a legitimidade da cobrança aqui abordada, podem ser destacados que a postura adotada, no que concerne às transferências interbancárias, se subsumiria ao disposto no art. 1° da Resolução BACEN n°3.919, de 25 de novembro de 2010, bem como que as cobranças seriam efetuadas sobre a operação de transferência, que consubstanciaria o fato gerador da tarifa, e não sobre conta à disposição do Poder Judiciário, conforme no §2° do mesmo diploma legal. Da leitura dos dispositivos do ato regulamentador é fácil constatar a impropriedade cometida pela interpretação isolada de tal provimento, mormente se desconsiderado que a "solicitação" de prestação do serviço de transferência, realizada por "usuário" dos serviços bancários, portanto não-cliente da instituição, impõe, necessariamente, a existência de uma opção outra ao consumidor, que não a impositiva transferência de valores com dedução do numerário referente ao pagamento de "DOC" ou "TED". Isso porque, em que pese a possibilidade, apenas em tese, de que o consumidor saque gratuitamente os valores em espécie, levando-os consigo até outra instituição financeira de sua preferência para nela realizar o devido depósito do numerário auferido, por certo, essa situação é de realidade inimaginável na conjuntura vivenciada pelos cidadãos fluminenses, cuja violência e sensação de ineficaz segurança pública permeia o dia-a-dia de quem se arrisca a sair às ruas. Dessa sorte, já de plano é possível constatar que a transferência bancária, neste específico caso, constitui serviço atrelado ao depósito judicial realizado em favor do consumidor, obrigatoriamente usuário dos serviços bancários da instituição apelada, pois esse é consequência lógica da disponibilização dos valores ao jurisdicionado. Paralelamente a essa primeira e importante constatação, e ainda sob o entendimento de que a operação aqui discutida consiste em um lógico desdobramento do monopólio exercido pelo banco apelado sobre os depósitos judiciais, relevante é observar o disposto no art. 1º, §2º, I da Resolução BACEN n. 3.919/2010. Pela dicção do referido regramento, cabe ao Poder Judiciário (através do convênio firmado com o banco) vedar ou definir os casos em que é admitida a cobrança de remuneração pela prestação de serviços decorrentes da condição de depositária, e os seus respectivos valores. Sob esse prisma, recorrendo-se aos termos do convênio efetivamente firmado entre o Banco do Brasil e o TJERJ, verifica-se a inexistência de qualquer previsão de cobrança de tarifa para transferência bancária dos depósitos judiciais. E em se tratando o convênio celebrado de contrato administrativo, suas cláusulas se regulam por normas e preceitos de direito público, aplicando-se, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado, o que, no caso da matéria em discussão, motiva a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Dessa forma, a existência ou inexistência de cláusulas contratuais deverá ter sempre como norte a interpretação mais favorável à parte vulnerável dessa tríade, o consumidor. Ou seja, a inexistência de cláusula no contrato administrativo (convênio) firmado quanto à possibilidade de cobrança das tarifas bancárias para transferência ora debatidas, esbarra não só na vedação a cobranças não previstas no instrumento contratual, como também na necessária interpretação conforme as regras do direito consumerista, de forma subsidiaria. Não se olvida que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à hipótese é, necessariamente, realizada de modo excepcional, sendo que sua incidência se restringe aos beneficiários da contratação, tidos por usuários obrigatórios dos serviços bancários do apelado. E ainda que assim não fosse, a impossibilidade da cobrança perpetrada também é manifestada pela própria dicção do suscitado art. 1° da Resolução BACEN n° 3.919, de 25 de novembro de 2010, que estabelece que a imposição de tarifas bancárias somente se dá com prévia previsão contratual, isto é, com previsão no instrumento contratual firmado entre instituição e cliente, no caso, o Tribunal de Justiça, o que, como já reiteradamente pontuado, não ocorreu. Ora, se não há previsão contratual, não é legítima a cobrança perpetrada, e isso conclui-se com facilidade. A título de esclarecimento, a remuneração do banco pelo serviço prestado advém do denominado "spread" bancário, como convencionado entre as partes e como determinado pelo CNJ, sendo que a cobrança perpetrada recorrentemente representa uma forma de remuneração não prevista no instrumento contratual, que confere à instituição bancária apelada uma descomedida fonte de arrecadação de receita não convencionada. Assim, é evidente a ilegitimidade das tarifas cobradas, e patente sua nulidade como consequência de sua não adequação ao ordenamento jurídico pátrio, como acima detalhado. Contudo, em atendimento à posição adotada recorrentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, não é a hipótese de aplicação do disposto no art. 42, parágrafo único do CDC, haja vista não só a inocorrência de má-fé comprovada nos autos, como também a notória ocorrência de engano justificável por parte da instituição bancária, que efetuou a cobrança acreditando estar respaldada pela lei e normas que regem a relação jurídica instituída, interpretando de forma equivocada os comandos normativos que lhe são impostos. Outrossim, sobre o pedido de condenação do banco à indenização por danos morais coletivos, temos que matéria não é nova no âmbito do C. STJ. Inicialmente, em julgamento por maioria, houve resistência jurisprudencial ao reconhecimento da categoria de dano moral coletivo, ao fundamento de que o dano extrapatrimonial vincular-se-ia necessariamente à noção de dor, sofrimento psíquico, de caráter individual, razão pela qual haveria incompatibilidade desse tipo de condenação com a noção de transindividualidade (REsp 598.281/MG, Rel. Ministro Luis Fux, Rel. p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 02.05.2006, DJ 01.06.2006). Posteriormente, sobreveio julgamento da Segunda Turma, de relatoria da eminente Ministra Eliana Calmon, que, em caso de indevida submissão de idosos a procedimento de cadastramento para gozo de benefício de passe livre, reconheceu a configuração do dano moral coletivo, apontando a prescindibilidade da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos (REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 01.12.2009, DJe 26.02.2010). Atualmente, contudo, a maioria ampla dos precedentes admite a possibilidade de condenação por dano moral coletivo, considerando-o categoria autônoma de dano, para cujo reconhecimento não se fazem necessárias indagações acerca de dor psíquica, sofrimento ou outros atributos próprios do dano individual. De fato, o próprio ordenamento jurídico prevê, expressamente, ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a bens e direitos de diversas categorias, entre os quais se destacam os direitos dos consumidores à prestação adequada do serviço bancário. Não é por outra razão que o dano extrapatrimonial coletivo resta caracterizado quando da ocorrência de injusta lesão a valores jurídicos fundamentais próprios das coletividades, independentemente da constatação de concretos efeitos negativos advindos da conduta ilícita, vale dizer, "a observação direta de lesão intolerável a direitos transindividuais titularizados por uma determinada coletividade, desvinculando-se, pois, a sua configuração da obrigatória presença e constatação de qualquer elemento referido a efeitos negativos, próprios da esfera da subjetividade, que venham a ser eventualmente apreendidos no plano coletivo (sentimento de desapreço; diminuição da estima; sensação de desvalor, de repulsa, de inferioridade, de menosprezo, etc.)"1. Contudo, pelas peculiaridades apresentadas pelo caso concretamente analisado, por certo não há que se falar em indenização por danos morais coletivos. Isso porque, não obstante tenha sido demonstrada a falha na prestação do serviço, não se evidencia o dano moral de ordem coletiva supostamente ocasionado pela simples cobrança de tarifa bancária que gira em torno de R$ 19,00 (dezenove reais) por operação, normalmente decotado do valor a ser transferido. Assim, não resta demonstrada gravidade tal na atuação do banco réu apto a caracterizar uma afronta à harmonia social e ao bem estar de quem se veja obrigado a utilizar dos serviços por ele oferecidos, não se descurando da possibilidade de, individualmente, cada consumidor que se entenda lesado acionar o Poder Judiciário na busca efetiva da concretização de seus direitos, oportunidade em que poderá comprovar sua condição de vítima dos eventos aqui tratados e a extensão dos eventuais danos suportados. Por fim, quanto ao pedido de publicação da parte dispositiva desse acórdão em jornais de grande circulação no Estado do Rio de Janeiro, sua fundamentação é certa pela necessidade de se promover a efetividade da prestação jurisdicional e garantir aos titulares do direito individual em discussão a devida ciência acerca do resultado do processo. Provimento parcial do recurso.



0094148-34.2019.8.19.0001 - APELAÇÃO

TERCEIRA CÂMARA CÍVEL

Des(a). RENATA MACHADO COTTA - Julg: 03/02/2021 - Data de Publicação: 05/02/2021

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