REsp. 1.704.520-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, por maioria, Julgado em 05/12/2018 (Tema 988)
2) HISTÓRICO DA RECORRIBILIDADE DAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS POR MEIO DO RECURSO DE AGRAVO.
A recorribilidade de decisões sobre questões incidentes e que não diziam respeito diretamente ao mérito da controvérsia remontam, ao menos, ao direito português do Século XII, ocasião em que, conforme lição de José Carlos Barbosa Moreira, as partes dirigiam petições ao Rei, chamadas de querimas ou querimônias, em que buscavam a concessão de uma “carta de justiça”, subordinada ao exame de veracidade da alegação do requerente. Posteriormente, essa espécie de petição passou a ser examinada pelo Rei em conjunto com a resposta do juiz prolator da decisão, quando passou a se chamar “carta testemunhável” ou “instrumento de agravo”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil – Vol. 5 – Arts. 476 a 565. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 482/483).
Nas subsequentes legislações sobre processo – Ordenações Manuelinas e Filipinas, Regulamento 737 de 1850, Decreto 763 de 1890 e os códigos de processo estaduais que vigoraram entre a Constituição de 1891 e a de 1937 – diversas foram as formas de disciplinar a recorribilidade das interlocutórias, com variações acerca do cabimento (ora mais amplo, ora mais restrito) e da própria modalidade recursal adequada (agravo de petição, agravo no auto do processo, agravo ordinário, agravo por instrumento, etc.).Retomada a competência exclusiva da União para legislar sobre direito processual, sobreveio então o CPC/39, constando da exposição de motivos elaborada por Francisco Campos, especialmente no que diz respeito à seara recursal:
Aqui devem ser feitas algumas distinções que não são necessárias quando a decisão diz respeito à simples determinação dos fatos. A primeira distinção é entre as falhas de processo que afetam materialmente os direitos das partes, isto é, que pela sua natureza hajam influído realmente no julgamento proferido, e aquelas que são de uma natureza menos importante ou puramente técnica, as quais, ainda que admitidas como erros, não dão motivos razoáveis para se acreditar que tenham impedido a parte agravada de apresentar inteiramente o seu interesse ou que tenham influído sobre o juiz, ou o juri, no proferir suas decisões. Manifestamente, nos argumentos em favor da permissão de uma reforma da decisão, no caso de erros da primeira categoria, são mais fortes que no caso dos da segunda. Permitir os recursos em todos os casos em que se alegue estar errado o julgamento com relação à aplicação de regras, sejam ou não tais erros de natureza a se supôr que tenham afetado o julgamento, acarretará males desproporcionados aos benefícios que se podem verificar em casos relativamente raros. Abre a porta ao uso do direito de recorrer simplesmente com propósitos protelatórios, e aumenta as despesas do pleito, o que tudo trabalha em desfavor da parte fraca.
Como se percebe da exposição de motivos, a preocupação precípua naquele momento histórico foi de permitir a recorribilidade imediata das decisões que pudessem comprometer a higidez do pronunciamento de mérito e, a partir dessa premissa, optou-se por eleger um rol pretensamente exaustivo de situações que seriam capazes de atingir o direito das partes e de influir no julgamento da controvérsia, elencando-se, no art. 842 do CPC/39 e também na legislação extravagante, hipóteses de cabimento do agravo na modalidade instrumental.
Ademais, o CPC/39 também instituiu, em elenco que pretendeu ser taxativo, as hipóteses de cabimento do agravo de petição (admissível quando não se tratasse de hipótese de agravo de instrumento e houvesse decisão terminativa sem resolução de mérito, na forma do art. 846) e do agravo no auto do processo (que cabia apenas em hipóteses específicas, conforme art. 851, I a IV, e que seria examinado como preliminar de apelação).
O sistema recursal existente no CPC/39, todavia, era claramente imperfeito e inadequado, motivo pelo qual foi objeto de severas críticas da doutrina.
De um lado, uma parcela considerável de decisões se enquadrava em mais de uma espécie recursal ou, ao revés, não se enquadrava em nenhuma modalidade recursal existente, gerando fundada dúvida acerca da existência e de um meio apropriado de impugnação, o que explica, inclusive, a existência do art. 810 no CPC/39, uma regra legal de fungibilidade por intermédio da qual seria admissível um recurso pelo outro quando ausente má-fé ou erro grosseiro.
De outro lado, verificou-se também que uma série de questões que poderiam causar prejuízos às partes ou comprometer o adequado exame de mérito da controvérsia não seriam recorríveis de imediato, na medida em que não se enquadravam nas hipóteses de cabimento do agravo de petição ou do agravo de instrumento, ficando relegadas somente ao agravo no auto do processo ou, até mesmo, à própria irrecorribilidade. A esse respeito, leciona Teresa Arruda Alvim, em obra de referência escrita na vigência do CPC/73:
Como se viu na exposição precedente, no Código de Processo Civil revogado, o recurso de agravo de instrumento ou no auto do processo tinha cabimento desde que houvesse previsão expressa a respeito. Inúmeras outras decisões, que podiam ter como efeito dano irreparável, ou de dificílima reparação, ao direito das partes ou influenciar o teor da sentença final, ficavam, teoricamente, imunes a ataques recursais. Foi precisamente esta circunstância que fez com que os advogados acabassem por se valer de outros meios, que não recursais, com o fito de tentar modificar estas decisões. Estes sucedâneos recursais eram o pedido de reconsideração, a correição parcial ou a reclamação, o conflito de competência, a ação rescisória e o mandado de segurança (ALVIM, Teresa Arruda. Os agravos no CPC brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 81).
Justamente diante da malsucedida experiência havida com o sistema recursal existente no CPC/39, especialmente no que tange à recorribilidade imediata das decisões interlocutórias, é que Alfredo Buzaid propôs, por ocasião da elaboração do projeto de lei que resultou no CPC/73, um modelo de impugnação substancialmente distinto daquele existente no sistema anterior. Consta da exposição de motivos:
15. Outro ponto é o da irrecorribilidade, em separado, das decisões interlocutórias. A aplicação deste princípio entre nós provou que os litigantes, impacientes de qualquer demora no julgamento do recurso, acabaram por engendrar esdrúxulas formas de impugnação. Podem ser lembradas, a título de exemplo, a correição parcial e o mandado de segurança. Não sendo possível modificar a natureza das coisas, o projeto preferiu admitir agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias. (...) Era indispensável apontar essa ausência de unidade, especialmente porque várias leis extravagantes serão atingidas pela reforma do Código, devendo submeter-se às normas que regem o novo sistema de recursos. Não se justificava que, tratando-se de ações, gozassem de um tratamento especial, com recursos próprios, diferentes daqueles aplicados às ações em geral. Na tarefa de uniformizar a teoria geral dos recursos, foi preciso não só refundi-los, atendendo a razões práticas, mas até suprimir alguns, cuja manutenção não mais se explica à luz da ciência. O projeto aboliu os agravos de petição e no auto do processo. (...)
31. Convém, ainda, tecer alguns comentários sobre a nomenclatura do Código vigente. Os recursos de agravo de instrumento e no auto do processo (arts. 842 e 851) se fundam num critério meramente casuístico, que não exaure a totalidade dos casos que se apresentam na vida cotidiana dos tribunais. Daí a razão por que o dinamismo da vida judiciária teve de suprir as lacunas da ordem jurídica positiva, concedendo dois sucedâneos de recurso, a saber, a correição parcial e o mandado de segurança. A experiência demonstrou que esses dois remédios foram úteis corrigindo injustiças ou ilegalidades flagrantes, mas representavam uma grave deformação no sistema, pelo uso de expedientes estranhos ao quadro de recursos.
O CPC/73, em sua versão originária, tipificou a hipótese de cabimento do recurso para as interlocutórias por exclusão – se não se tratasse de despacho (irrecorrível) ou de sentença (recorrível por apelação), cabível seria o agravo de instrumento, facultando-se à parte escolher se o referido recurso tramitaria de imediato ou se ficaria retido nos autos para julgamento como preliminar da apelação – algo semelhante ao agravo no auto do processo previsto no CPC/39.
A estrutura procedimental desenhada pelo legislador de 1973, todavia, revelou-se inadequada. O fato de o agravo ainda ser interposto em 1º grau, com a formação do instrumento sob a responsabilidade do ofício judicial, aliado aos fatos de o contraditório se estabelecer também em 1º grau, de haver a possibilidade de retratação do juízo e de existir a concessão de efeito suspensivo apenas nas hipóteses taxativamente arroladas no art. 558 (prisão de depositário infiel, adjudicação, remição de bens e levantamento de dinheiro sem caução), deu significativa sobrevida ao mandado de segurança contra ato judicial, embora, desta feita, dirigido à concessão de efeito suspensivo ao recurso fora das hipóteses legais ou no lapso temporal entre a interposição do recurso e o seu efetivo exame em 2º grau de jurisdição.
Diante disso, houve a reforma do texto legal empreendida no ano de 1995, essencialmente sobre os pontos acima apontados. O agravo passou a ser interposto em 2º grau, com a formação do instrumento sob a responsabilidade da parte; o contraditório igualmente passou a acontecer em 2º grau, tornando cada vez menos relevante a possibilidade de retratação; finalmente, acrescentou-se a possibilidade de concessão do efeito suspensivo em quaisquer outros casos de que pudesse resultar lesão grave ou de difícil reparação, desde que relevante a fundamentação.
Praticamente 10 (dez) anos depois, sobreveio uma nova reforma legal acerca da dinâmica do agravo de instrumento, com a modificação da hipótese de cabimento do referido recurso (art. 522 do CPC/73), tornando regra a modalidade retida e excepcional a modalidade instrumental, que seria cabível somente quando a decisão impugnada fosse suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação.
A esse respeito, consta da justificativa do Projeto de Lei nº 4.727-A de 2004, que deu origem à Lei nº 11.187/2005, que, “sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da Justiça, faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa”.
Realizada essa contextualização histórica inicial, examinar-se-á adiante a disciplina que o CPC/15 destinou às hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento, bem como a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que se instalou sobre a natureza jurídica do rol previsto no art. 1.015 do novo diploma legal.
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