Fonte: Dizer o Direito
Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/04/info-691-stj.pdf
ESTELIONATO - A mudança na ação penal do crime de estelionato, promovida pela Lei 13.964/2019, retroage para alcançar os processos penais que já estavam em curso?
A exigência de representação da vítima no crime de estelionato não retroage aos processos cuja denúncia já foi oferecida. STJ. 3ª Seção. HC 610.201/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/03/2021 (Info 691).
Estelionato
O crime de estelionato está tipificado no art. 171 do CP:
Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
Qual é a ação penal no caso do crime de estelionato? O tema foi recentemente alterado pela Lei nº 13.964/2019, que ficou conhecida como “Pacote Anticrime”. Compare:
QUAL É A AÇÃO PENAL NO CASO DO CRIME DE ESTELIONATO?
Antes
Regra geral: Ação penal pública INCONDICIONADA
Exceções: art. 182 do CP
Depois da Lei nº 13.964/2019
Regra geral: ação pública CONDICIONADA à representação.
Exceções: Será de ação penal incondicionada quando a vítima for:
a) a Administração Pública, direta ou indireta;
b) criança ou adolescente;
c) pessoa com deficiência mental; ou
d) maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Veja o § 5º inserido no art. 171 do CP pela Lei nº 13.964/2019:
Art. 171. (...) § 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: I - a Administração Pública, direta ou indireta; II - criança ou adolescente; III - pessoa com deficiência mental; ou IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Essa mudança é mais favorável ou prejudicial aos autores do crime de estelionato?
Mais favorável, considerando que agora existe, como regra, uma nova condição para que o Ministério Público possa ajuizar a ação penal contra o autor do estelionato: a representação da vítima.
A norma que altera a espécie de ação penal de um crime é norma de direito material ou processual? (ex: a lei determina que o crime “X” deixará de ser de ação penal pública condicionada e passará a ser de ação pública incondicionada)
As normas que tratam sobre a “ação penal” possuem natureza híbrida, ou seja, são normas de direito processual penal que, no entanto, também apresentam efeitos materiais (influenciam no direito penal). A lei que dispõe sobre o tipo de ação penal aplicável a cada crime possui influência direta no jus puniendi (direito de punir do Estado), pois interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa. Logo, a lei que disciplina a espécie de ação penal possui também efeito material.
As normas processuais são retroativas?
NÃO. As leis processuais possuem aplicação imediata (tempus regit actum - art. 2º do CPP), não retroagindo para alcançar fatos anteriores à sua vigência e regulando os atos processuais a serem realizados após entrar em vigor.
As normas penais são retroativas?
NÃO, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, da CF e art. 2º, parágrafo único, do CP). Assim, temos o seguinte:
• Se a lei penal posterior é favorável ao réu: retroage.
• Se a lei penal posterior é contrária ao réu: não retroage.
E as normas híbridas?
As leis híbridas, como possuem reflexos penais, recebem o mesmo tratamento que as normas penais no que tange à sua aplicação no tempo. Logo, as normas híbridas não retroagem, salvo se para beneficiar o réu. Desse modo, a norma que altera a espécie de ação penal de um crime não retroage, salvo se for para beneficiar o réu.
Ex: antes da Lei nº 9.099/95, o crime de lesão corporal leve era de ação penal pública incondicionada; depois da Lei, esse delito passou a ser de ação penal pública condicionada. Isso é mais benéfico para o réu que responde ao processo? Sim, porque na ação penal pública condicionada existe a possibilidade de renúncia e de decadência, que não são permitidas na ação pública incondicionada. Logo, a lei foi retroativa nesse ponto.
Ex2: o crime de injúria racial era de ação penal privada e, por força da Lei nº 12.033/2009, passou a ser de ação penal pública condicionada à representação. Essa Lei é mais benéfica para o réu? Não, porque limita as causas de extinção da punibilidade. Logo, para as pessoas que cometeram o delito antes da Lei nº 12.033/2009, a ação continua sendo privada, não retroagindo a lei.
Isso significa que essa alteração irá retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência?
SIM. O § 5º do art. 171 do CP apresenta caráter híbrido (norma mista) e, além disso, é mais favorável ao autor do fato. Logo, tem caráter retroativo. A dúvida, no entanto, reside na extensão dessa retroatividade:
A mudança na ação penal do crime de estelionato, promovida pela Lei 13.964/2019, retroage para alcançar os processos penais que já estavam em curso? Mesmo que já houvesse denúncia oferecida, será necessário intimar a vítima para que ela manifeste interesse na continuidade do processo? NÃO. Havia divergência entre as Turmas do STJ, no entanto, o tema foi pacificado. Ficou decidido que:
A exigência de representação da vítima no crime de estelionato não retroage aos processos cuja denúncia já foi oferecida. STJ. 3ª Seção. HC 610.201/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/03/2021 (Info 691).
A retroatividade da representação prevista no § 5º do art. 171 do CP deve se restringir à fase policial. A exigência de representação no crime de estelionato, trazida pelo Pacote Anticrime, não afeta os processos que já estavam em curso quando entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019. Assim, se já havia denúncia oferecida quando entrou em vigor a nova Lei, não será necessária representação do ofendido.
O § 5º do art. 171 é uma condição de procedibilidade (e não de prosseguibilidade)
O novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade. Assim, pode-se afirmar que a irretroatividade do art. 171, §5º, do CP decorre da própria mens legis, considerando que, mesmo podendo, o legislador previu apenas a condição de procedibilidade, nada dispondo sobre a condição de prosseguibilidade.
Segurança jurídica e ato jurídico perfeito
Ademais, é importante registrar que essa conclusão pela não-retroatividade resguarda a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito (art. 25 do CPP), quando já oferecida a denúncia. Prevalece, tanto neste STJ quanto no STF, o entendimento no sentido de que “a representação, nos crimes de ação penal pública condicionada, não exige maiores formalidades, sendo suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tem interesse na persecução penal. Dessa forma, não há necessidade da existência nos autos de peça processual com esse título, sendo suficiente que a vítima ou seu representante legal leve o fato ao conhecimento das autoridades” (STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 435.751/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe 04/09/2018).
STF
Vale ressaltar que esse já era o entendimento do STF:
Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do art. 2º, do CPP, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal”. Assim, é inaplicável a retroatividade do §5º do art. 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo. Em suma, a nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público.
STF. 1ª Turma. HC 187341, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 13/10/2020.
STF. 2ª Turma. ARE 1230095 AgR, Rel. Gilmar Mendes, julgado em 24/08/2020.
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