30 de abril de 2021

Direito de ação - naturezas material e processual - REsp. 1.736.091, Rel. Min. Nancy Andrighi, 16/05/2019

REsp. 1.736.091, Rel. Min. Nancy Andrighi, 16/05/2019

Direito de ação e sua relação com a pretensão 

Uma vez exigível a prestação, dando origem à pretensão, cabe averiguar sua relação com o direito de ação. No ponto, a doutrina vislumbra a existência de um direito de ação de cunho material, o qual surge no momento em que a pretensão é exigida pelo próprio sujeito ativo ao passivo, que se nega a adimpli-la. 

Esse direito de ação de cunho material é, portanto, o agir do próprio titular para a realização do direito em relação ao sujeito passivo e independentemente da vontade do último. Realmente, a ação de direito material pode ser definida como “exercício do próprio direito por ato de seu titular, independentemente de qualquer atividade voluntária do obrigado” (NERY JUNIOR, Nelson. ABBOUD, Georges. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, p. 89-107, maio 2014). 

2.4. Do direito de ação, de natureza material e processual 

O campo de atuação do direito de ação de cunho material é, todavia, bastante reduzido em razão da proibição da justiça com as próprias mãos e do monopólio estatal da violência e da força física institucionalizada, característicos do Estado Democrático de Direito. 

Assim, segundo a lição de OVÍDIO BATISTA “pode-se afirmar que [...] ocorreu uma duplicação do direito de ação que pode ser tanto a material (possibilidade de obrigar o sujeito passivo a cumprir/adimplir a pretensão) quanto a processual, que não é dirigida contra o particular obrigado a cumprir a pretensão, mas sim contra o Estado, para que este, por meio do juiz, pratique a ação cuja realização privada, pelo titular do direito, o próprio Estado proibiu” (Apud: NERY JUNIOR, Nelson. ABBOUD, Georges. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, p. 89-107, maio 2014, sem destaque no original). 

No Estado Democrático de Direito há, portanto, o desdobramento do direito de ação e a consequente previsão de um direito processual e abstrato de agir, de titularidade de qualquer sujeito e que é dirigido ao Estado, como forma de obtenção da prestação jurisdicional. 

Esse direito de ação processual é, segundo a mais moderna doutrina, abstrato, pois não deriva diretamente da exigibilidade da prestação (pretensão), mas sim da impossibilidade da exigência de quaisquer prestações pela atuação autônoma do sujeito (ação de direito material) e, assim, independe da procedência ou não do pedido deduzido pelo autor, não tendo relação com o mérito da demanda. 

Portanto, se de um lado o direito de ação material dirige-se contra o particular sujeito passivo da relação de direito material, por outro, a ação processual é dirigida em face do Estado, em razão do monopólio da jurisdição, e conduz a que o Estado forneça a prestação jurisdicional e, somente se for cabível, faça o uso da força para tornar efetiva a pretensão de direito material. 

Com efeito, sempre que o Judiciário é provocado e pronuncia-se, ainda que para julgar improcedente a demanda, a ação processual foi exercida, porque se obteve do Judiciário um pronunciamento, ainda que desfavorável. 

Assim, o direito processual de ação: a) é dirigido contra o Estado, e não contra o sujeito passivo da relação de direito material; b) não exige que o sujeito que o exerce seja o efetivo titular do direito subjetivo material; c) não é um poder de obter uma sentença favorável, senão unicamente o direito de obter uma decisão; d) é uma relação e, nisso, distingue-se da pretensão, que é um ato, uma exigência de subordinação. 

2.5. Do direito público subjetivo e abstrato de ação e sua relação com a passagem do tempo 

É preciso, nesse ponto, verificar se o direito público subjetivo e abstrato de ação, de cunho processual, dirigido ao Estado, se submete aos efeitos da passagem do tempo e em quais circunstâncias, sobretudo porque, por ser abstrato, não tem qualquer relação com o direito material deduzido pelo sujeito que movimenta a máquina jurisdicional estatal. 

É oportuna, novamente, a lição de OVÍDIO BATISTA, que, em homenagem à concepção abstrata e ao Estado Democrático de Direito, esclarece que o “direito subjetivo público de ação nasce no exato momento em que é estabelecido o monopólio da jurisdição pelo Estado, ou seja, quando da própria constituição deste; não necessita de norma expressa, por conseguinte, para que reste plenamente caracterizado, já que a vedação à autotutela é pressuposto da própria existência do Estado” (SILVA, Ovídio Baptista da; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo civil. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 133). 

Segundo essa definição mais moderna, portanto, o direito subjetivo público e processual de ação está relacionado unicamente à ideia de inércia do Poder Judiciário, de forma que o exercício desse direito público processual representa a mera provocação do Judiciário para que saia de sua imobilidade e se manifeste sobre o direito aplicável à relação jurídica deduzida em juízo. 

Ao direito subjetivo público e processual de ação corresponde, via de consequência, uma obrigação do Estado d e manifestar-se sobre o pedido formulado, para, se chegar a examinar o mérito, conforme o caso, deferi-lo ou indeferi-lo, segundo esteja ou não tutelado pelo direito objetivo. 

Assim, a conclusão necessária e inafastável é de que, como não depende da efetiva existência do direito subjetivo de cunho material vindicado por aquele que o exerce, decorrendo do próprio Estado Democrático de Direito, o direito subjetivo público de ação não se submete a passagem do tempo nos moldes estabelecidos para o direito material. 

Sendo uma consequência do próprio Estado Democrático de Direito, o direito público subjetivo e processual de ação deve ser considerado, em si, imprescritível, haja vista ser sempre possível requerer a manifestação do Estado sobre um determinado direito e obter a prestação jurisdicional, mesmo que ausente, por absoluto, o direito material. 

De fato, o direito de obter do Estado uma manifestação jurisdicional é imperecível, de forma que o máximo que pode que ocorrer é a impossibilidade da satisfação de uma determinada pretensão por meio de um específico procedimento processual, ante a passagem do tempo qualificada pela inércia do titular, apta a caracterizar a preclusão, a qual, todavia, por si só, não impossibilita o uso abstrato da específica ação ou procedimento. 

Um dos mais ilustrativos exemplos dessa circunstância é a da obrigação consubstanciada em cheque, cuja prestação pode ser exigida pelos procedimentos específicos da a) execução do art. 47 da Lei 7.357/85, no prazo de 6 (seis) meses contados do término do prazo para apresentação; b) ação de enriquecimento, no prazo de 2 anos do término do prazo para a apresentação; c) por meio de ação monitória (art. 1.102-A do CPC/73 e 700 do CPC/15, no prazo de 5 (cinco) anos (Súmula 503/STJ); ou ainda d) por meio de ação cobrança, de rito ordinário. 

Esse é o entendimento desta 2ª Seção, que vaticina que “prescrita a ação executiva do cheque, assiste ao credor a faculdade de ajuizar a ação cambial por locupletamento ilícito, no prazo de 2 (dois) anos (art. 61 da Lei 7.357/85); ação de cobrança fundada na relação causal (art. 62 do mesmo diploma legal) e, ainda, ação monitória, no prazo de 5 (cinco) anos, nos termos da Súmula 503/STJ” (REsp 1677772/RJ, Terceira Turma, DJe 20/11/2017). No mesmo sentido: REsp 926.312/SP, Quarta Turma, DJe 17/10/2011. 

A cobrança da dívida inscrita no cheque ilustra que, de fato, o direito abstrato de ação e a pretensão não se confundem, porquanto a prestação continua a ser exigível, a despeito da perda do direito de utilização de um específico procedimento e, de outro lado, o direito de requerer a prestação jurisdicional (de ação) não está vinculado ao direito material vindicado (dívida inscrita em cheque), que pode ser exercido por meio de diversas ações submetidas a diversos ritos. 

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