6 de maio de 2021

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO APÓS PENHORA DE BENS DO DEVEDOR. POSSIBILIDADE. OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA. SUPERAÇÃO DO PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS MEIOS EXECUTIVOS

RECURSO ESPECIAL Nº 1.733.697 - RS (2018/0051020-5) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO APÓS PENHORA DE BENS DO DEVEDOR. POSSIBILIDADE. OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA. SUPERAÇÃO DO PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS MEIOS EXECUTIVOS EXISTENTE NO CPC/73. SATISFATIVIDADE DO DIREITO RECONHECIDO JUDICIALMENTE. NORMA FUNDAMENTAL. CRIAÇÃO DE UM PODER GERAL DE EFETIVAÇÃO DA TUTELA EXECUTIVA QUE ROMPE O DOGMA DA TIPICIDADE. CRIAÇÃO E ADOÇÃO DE MEDIDAS ATÍPICAS APENAS EXISTENTES EM OUTRAS MODALIDADES EXECUTVAS E COMBINAÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS. POSSIBILIDADE. PONDERAÇÃO ENTRE A MÁXIMA EFETIVIDADE DA EXECUÇÃO E MENOR ONEROSIDADE DO DEVEDOR. CRITÉRIOS. HIPÓTESE CONCRETA. DÉBITO ALIMENTAR ANTIGO E DE GRANDE VALOR. DESCONTO EM FOLHA PARCELADO E EXPROPRIAÇÃO DE BENS PENHORADOS. POSSIBILIDADE. 

1- Ação proposta em 21/03/2005. Recurso especial interposto em 29/05/2017 e atribuído à Relatora em 14/03/2018. 

2- O propósito recursal consiste em definir se é admissível o uso da técnica executiva de desconto em folha da dívida de natureza alimentar quando há anterior penhora de bens do devedor. 

3- Diferentemente do CPC/73, em que vigorava o princípio da tipicidade dos meios executivos para a satisfação das obrigações de pagar quantia certa, o CPC/15, ao estabelecer que a satisfação do direito é uma norma fundamental do processo civil e permitir que o juiz adote todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para assegurar o cumprimento da ordem judicial, conferiu ao magistrado um poder geral de efetivação de amplo espectro e que rompe com o dogma da tipicidade. 

4- Respeitada a necessidade fundamentação adequada e que justifique a técnica adotada a partir de critérios objetivos de ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, conformando os princípios da máxima efetividade da execução e da menor onerosidade do devedor, permite-se, a partir do CPC/15, a adoção de técnicas de executivas apenas existentes em outras modalidades de execução, a criação de técnicas executivas mais apropriadas para cada situação concreta e a combinação de técnicas típicas e atípicas, sempre com o objetivo de conferir ao credor o bem da vida que a decisão judicial lhe atribuiu. 

5- Na hipótese, pretende-se o adimplemento de obrigação de natureza alimentar devida pelo genitor há mais de 24 (vinte e quatro) anos, com valor nominal superior a um milhão e trezentos mil reais e que já foi objeto de sucessivas impugnações do devedor, sendo admissível o deferimento do desconto em folha de pagamento do débito, parceladamente e observado o limite de 10% sobre os subsídios líquidos do devedor, observando-se que, se adotada apenas essa modalidade executiva, a dívida somente seria inteiramente quitada em 60 (sessenta) anos, motivo pelo qual se deve admitir a combinação da referida técnica sub-rogatória com a possibilidade de expropriação dos bens penhorados. 

6- Recurso especial conhecido e desprovido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso especial e negar-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. 

Brasília (DF), 11 de dezembro de 2018(Data do Julgamento) 

RELATÓRIO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): Cuida-se de recurso especial interposto por J P R R, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/RS que, por unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento por ele interposto. 

Recurso especial interposto e m: 29/05/2017. Atribuído ao gabinete e m: 14/03/2018. 

Ação: execução de alimentos ajuizada por A C R R. 

Decisão monocrática: deferiu o desconto em folha do débito alimentar objeto da execução, no montante de 10% sobre o subsídio do auferido pelo recorrente (excluídos os descontos obrigatórios, IRPF e INSS), sem prejuízo da prática de atos de expropriação para a satisfação do crédito (fls. 15/17 e fls. 57/58, e-STJ). 

Acórdão: por unanimidade, negou-se provimento ao agravo de instrumento, nos termos da seguinte ementa: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. O fato de terem sido penhorados bens do devedor não obsta seja procedido o desconto de parte da sua renda, de acordo com o previsto no art. 529 do CPC, aplicável ao caso em exame, mormente considerando o longo período de tramitação do feito executivo. A circunstância do art. 530 do CPC prever que no caso de não ter sido satisfeita a obrigação a execução deve observar o disposto nos arts. 831 e seguintes do CPC também não impede o desconto, pois aludido dispositivo legal não tem por finalidade privar o credor de meios de satisfação do crédito, mas de dar-lhe outro meio adicional de busca o adimplemento do débito. Ademais, no caso, o valor devido supera um milhão de reais e o arresto foi convertido em penhora há mais de 10 anos, de forma que o desconto de parte da renda será, por certo, a forma mais efetiva da cobrança da verba alimentar. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (fls. 114/119, e-STJ). 

Recurso especial: alega-se violação aos arts. 530, 805, caput, 831 e 913, todos do CPC/15, ao fundamento de que é incabível o desconto parcelado da dívida alimentar em folha de pagamento na hipótese quando há anterior penhora de bens do devedor, tratando-se de dupla execução pelo mesmo objeto (fls. 130/135, e-STJ). 

Ministério Público Federal: opinou pelo não conhecimento do recurso especial (fls. 211/214, e-STJ). 

É o relatório. 

VOTO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): O propósito recursal consiste em definir se é admissível o uso da técnica executiva de desconto em folha da dívida de natureza alimentar quando há anterior penhora de bens do devedor. 

1. DA IMPOSSIBILIDADE DE DESCONTO EM FOLHA QUANDO HÁ ANTERIOR PENHORA DE BENS. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 530, 805, CAPUT, 831 E 913, TODOS DO CPC/15. 

Inicialmente, é relevante examinar o rol de dispositivos legais aplicáveis à espécie: 

Art. 529. Quando o executado for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa ou empregado sujeito à legislação do trabalho, o exequente poderá requerer o desconto em folha de pagamento da importância da prestação alimentícia. §3o Sem prejuízo do pagamento dos alimentos vincendos, o débito objeto de execução pode ser descontado dos rendimentos ou rendas do executado, de forma parcelada, nos termos do caput deste artigo, contanto que, somado à parcela devida, não ultrapasse cinquenta por cento de seus ganhos líquidos. 

(...) 

Art. 530. Não cumprida a obrigação, observar-se-á o disposto nos arts. 831 e seguintes. 

(...) 

Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado. 

(...) 

Art. 831. A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios. 

(...) 

Art. 913. Não requerida a execução nos termos deste Capítulo, observar-se-á o disposto no art. 824 e seguintes, com a ressalva de que, recaindo a penhora em dinheiro, a concessão de efeito suspensivo aos embargos à execução não obsta a que o exequente levante mensalmente a importância da prestação. 

Em síntese, a tese recursal é de que, havendo anterior medida constritiva típica – penhora de bens –, é inviável a adoção da técnica executiva consubstanciada no desconto parcelado do débito de natureza alimentar em folha de pagamento. 

A esse respeito, saliente-se que, por muito tempo, vigorou no Brasil um sistema processual assentado na tipicidade dos meios executivos. 

Nesse aspecto, anote-se que a legislação revogada, em sua versão original, consagrava tão somente a expropriação de bens como técnica executiva nas obrigações de pagar quantia certa (art. 646 do CPC/73), ao passo que, para as obrigações de fazer e de não fazer, estabelecia-se a possibilidade de imposição de uma multa como única forma de evitar a conversão em perdas e danos na hipótese de renitência do devedor em cumprir a obrigação definida em sentença em sua modalidade específica (art. 287 do CPC/73), pois, naquela época, ainda vigorava a ideia de intangibilidade da vontade humana. 

Contudo, a tipicidade dos meios executivos, nesse contexto, servia essencialmente à demasiada proteção ao devedor, na medida em que o engessamento da execução, caracterizado essencialmente pela possibilidade de se adotar apenas a técnica executiva indicada na lei para aquela modalidade específica, conduziu à chamada crise de ineficiência da execução, fenômeno que se observou não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, e que levou uma série de países a, sistematicamente, modificar o seu modelo de execução civil, como, por exemplo, a Espanha em 2000, Portugal em 2003 e a Itália em 2005. 

No Brasil, as reformas processuais ocorridas em 1994 sinalizaram uma nítida guinada do legislador em direção à atipicidade dos meios executivos, iniciando-se pelas obrigações de fazer e de não fazer, mediante a inserção, por exemplo, do art. 461, §5º, do CPC/73, segundo o qual “para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”. 

Para as obrigações de pagar quantia certa, contudo, ainda não se vislumbrava uma tendência de superação do dogma da tipicidade, não se prestando a esse fim nem mesmo a multa do art. 475-J do CPC/73, inserida em 2005, e cujo objetivo era, evidentemente, buscar a satisfação tempestiva da obrigação com a eventual ameaça imposição de uma específica e determinada penalidade pecuniária. 

Entretanto, é preciso atentar que o CPC/15 evoluiu substancialmente nesse aspecto, a começar pelo reconhecimento, com o status de norma fundamental do processo civil (art. 4º), que o direito que possuem as partes de obter a solução integral do mérito compreende, como não poderia deixar de ser, não apenas a declaração do direito (atividade de acertamento da relação jurídica de direito material), mas também a sua efetiva satisfação (atividade de implementação, no mundo dos fatos, daquilo que fora determinado na decisão judicial). 

A partir dessa mudança de paradigma, é mais simples perceber que o legislador efetivamente quis disponibilizar ao magistrado um ferramental executivo de amplo espectro, tão ou mais poderoso do que aquele existente para o adequado acertamento do direito, de que é o melhor exemplo o art. 139, VI, do CPC/15, que preconiza incumbir ao juiz a determinação de “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária” e que rompe, em caráter definitivo, irrevogável e irretratável, com o antigo dogma da tipicidade executiva. 

Significa dizer, pois, que foram substancialmente afrouxadas as amarras até então existentes para permitir que o julgador, agora, não apenas possa empregar outras técnicas, importando-as de outras modalidades executivas ou criando-as para a hipótese concreta, como também possa combinar técnicas típicas e atípicas com vistas a atingir a desejável eficiência da atividade satisfativa. 

Diante desse novo cenário, não é mais correto afirmar que a atividade satisfativa somente poderá ser efetivada de acordo com as específicas regras daquela modalidade executiva, mas, sim, que o legislador conferiu ao magistrado um poder geral de efetivação, que deve, todavia, observar a necessidade de fundamentação adequada e que justifique a técnica adotada a partir de critérios objetivos de ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, de modo a conformar, concretamente, os princípios da máxima efetividade da execução e da menor onerosidade do devedor, inclusive no que se refere às impenhorabilidades legais e à subsidiariedade dos meios atípicos em relação aos típicos. 

Tendo em mira tais premissas, verifica-se que, na hipótese em exame, a execução foi ajuizada no ano de 2005 e diz respeito a alimentos pagos a menor pelo genitor no período compreendido entre os anos de 1994 e 2004, cujo valor originário era de R$ 286.215,27 (duzentos e oitenta e seis mil, duzentos e quinze reais e vinte e sete reais) e que, em Outubro de 2016, totalizava o montante de R$ 1.341.840,99 (um milhão, trezentos e quarenta e um reais e noventa e nove centavos). 

Após a conversão dos arrestos em penhora, ocorrido há mais de 10 (dez) anos, o devedor interpôs agravo de instrumento, desprovido; embargos à execução, julgados improcedentes; e embargos de terceiro, cujo desfecho não se tem notícia, mas que acarretaram a suspensão da execução. 

Como não houve, até o momento, a adjudicação ou a arrematação dos bens penhorados, a credora requereu o desconto em folha do débito, parceladamente, o que foi deferido em 1º grau de jurisdição (fls. 15/17, e-STJ), observando-se o limite de 10% sobre os subsídios líquidos do devedor, que era, ao tempo da decisão (em Outubro de 2016), de R$ 18.637,88 (dezoito mil, seiscentos e trinta e sete reais e oitenta e oito centavos). 

Dessa forma, a parcela debitada em folha para adimplemento da obrigação alimentar será de R$ 1.863,78 (um mil, oitocentos e sessenta e três reais e setenta e oito centavos). 

Considerando que, ao tempo da prolação do acórdão recorrido (Abril de 2017), a dívida alimentar era de R$ 1.341.840,99 (um milhão, trezentos e quarenta e um reais e noventa e nove centavos), pode-se afirmar que, nessa toada, o crédito da recorrida será satisfeito em, no mínimo, 720 (setecentos e vinte) meses, ou seja, em 60 (sessenta) anos. 

Nada mais adequado do que permitir, na hipótese, a combinação das técnicas executivas consubstanciadas em uma medida sub-rogatória (desconto parcelado em folha de pagamento) e uma medida expropriatória típica (penhora dos bens), ressalvando-se que o acórdão recorrido, cuidadosamente, afirma que “o valor descontado como forma de pagamento do débito alimentar deverá ser considerado quando da alienação do bem penhorado”, de modo que não há absolutamente nenhum óbice em permitir que a adoção das referidas técnicas executivas de forma concomitante. 

Ressalte-se, finalmente, que a hipótese envolve verba que, a despeito da antiguidade da dívida, não perdeu a sua natureza alimentar, somada ao fato de que se trata, segundo se observa da decisão de 1º grau e do acórdão recorrido, de um devedor contumaz, comprovadamente renitente e que efetivamente possui formas de adimplir a obrigação. 

Por esses motivos, não há que se falar em violação aos dispositivos legais invocados – arts. 530, 805, caput, 831 e 913, todos do CPC/15 –, porque a escolha e combinação de técnicas executivas, inclusive no que se refere à adoção de medidas atípicas, encontra-se amplamente respaldada, na hipótese, pelos arts. 4º e 139, IV, ambos do CPC/15. 

2. CONCLUSÃO. 

Forte nessas razões, CONHEÇO e NEGO PROVIMENTO ao recurso especial. 

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