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18 de agosto de 2021

Sexta Turma mantém ordem de prisão contra foragido denunciado por furto de cofre de banco no Pará

 A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o pedido de revogação da ordem de prisão preventiva contra um homem acusado de integrar grupo criminoso que, com o uso de armamentos pesados, furtou o cofre de uma agência bancária em Igarapé-Mirim (PA).

Na decisão, além da gravidade do crime e do modo como ele foi praticado, o colegiado levou em consideração que o investigado está foragido.

De acordo com a denúncia, o delito ocorreu no início da madrugada. O grupo, portando armas de grosso calibre, teria arrombado a agência e levado o cofre inteiro, depois de fracassar na tentativa de abri-lo no próprio local. Denunciados por associação criminosa e furto qualificado, os envolvidos tiveram a prisão preventiva decretada, mas, segundo consta do processo, o cofre ainda não havia sido encontrado.

Cofre ainda não foi recuperado

No recurso em habeas corpus, a defesa de um dos denunciados – que, segundo as investigações, teria sido o responsável por organizar a ação do grupo e fornecer material para a prática do crime – alegou que a prisão seria desproporcional, sendo suficientes as medidas cautelares mais brandas previstas no Código de Processo Penal. A defesa também afirmou que o réu é primário e de bons antecedentes.

O relator do recurso, ministro Antonio Saldanha Palheiro, destacou que, na decisão que decretou a prisão preventiva, o magistrado de primeiro grau apontou a gravidade do crime imputado aos réus e ressaltou que era necessário garantir a instrução criminal.

Além disso, o ministro enfatizou que o grupo criminoso envolvido no assalto seria composto de nove membros, seis dos quais – incluindo o recorrente – permanecem foragidos.

"Tais circunstâncias evidenciam a gravidade concreta da conduta, porquanto extrapolam a mera descrição dos elementos próprios do tipo de furto. Assim, por conseguinte, a segregação cautelar faz-se necessária como forma de acautelar a ordem pública", concluiu o relator ao negar a revogação da ordem de prisão.

Leia o acórdão no RHC 143.695. ​

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):RHC 143695

17 de agosto de 2021

A ausência de afirmação da autoridade policial de sua própria suspeição não eiva de nulidade o processo judicial por si só, sendo necessária a demonstração do prejuízo suportado pelo réu.

Processo

REsp 1.942.942-RO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 10/08/2021.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL PENAL

  • Paz, Justiça e Instituições Eficazes
Tema

Exceção de suspeição da autoridade policial. Impossibilidade. Art. 107 do CPP. Possibilidade de resolução na esfera administrativa. Fase inquisitorial. Nulidade da ação penal. Necessidade de demonstração do prejuízo.

 

DESTAQUE

A ausência de afirmação da autoridade policial de sua própria suspeição não eiva de nulidade o processo judicial por si só, sendo necessária a demonstração do prejuízo suportado pelo réu.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Trata-se de discussão sobre o art. 107 do CPP, segundo o qual "não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal". Tal previsão é bastante criticada em sede doutrinária, mormente pela contradição que encerra: se a autoridade deverá pronunciar sua suspeição, soa paradoxal, em certa medida, impedir que a parte investigada a aponte no inquérito.

De todo modo, tendo em vista a dicção legal - que permanece válida e vigente, inexistindo declaração de sua não recepção pelo STF -, seu teor segue aplicável. Uma solução possível para a parte que se julgue prejudicada é buscar, na esfera administrativa, o afastamento da autoridade suspeita.

Assim, o descumprimento do art. 107 do CPP - quando a autoridade policial deixa de afirmar sua própria suspeição - não eiva de nulidade o processo judicial por si só, sendo necessária a demonstração do prejuízo suportado pela parte ré.

Vale ressaltar que, segundo a tradicional compreensão doutrinária e pretoriana hoje predominante, o inquérito é uma peça de informação, destinada a auxiliar a construção da opinio delicti do órgão acusador. Por conseguinte, possíveis irregularidades nele ocorridas não afetam a ação penal. Lembre-se que, ressalvadas as provas irrepetíveis, cautelares e antecipadas, nos termos do art. 155 do CPP, não há propriamente produção de provas na fase inquisitorial, mas apenas colheita de elementos informativos para subsidiar a convicção do Ministério Público quanto ao oferecimento (ou não) da denúncia. Também por isso, o inquérito é uma peça facultativa, como se depreende do art. 39, § 5º, do CPP.

Com efeito todos os elementos colhidos no inquérito, quando integram a acusação e são considerados pela sentença, submetem-se ao contraditório no processo judicial, e é este o locus adequado para rebatê-los. Também as provas irrepetíveis, cautelares e antecipadas passam pelo crivo do contraditório, ainda que de forma diferida, cabendo à defesa o ônus de apontar possíveis vícios processuais e apresentar suas impugnações fáticas. Por isso, como resta preservada a ampla possibilidade de debate dos elementos de prova em juízo, é correto manter incólume o processo mesmo diante de alguma irregularidade cometida na fase inquisitorial (desde que, é claro, não tenham sido descumpridas regras de licitude da atividade probatória).

28 de junho de 2021

O Poder Judiciário não pode impor ao MP a obrigação de ofertar ANPP

DIREITO PROCESSUAL PENAL - ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL 

O Poder Judiciário não pode impor ao MP a obrigação de ofertar ANPP 

O Poder Judiciário não pode impor ao Ministério Público a obrigação de ofertar acordo de não persecução penal (ANPP). Não cabe ao Poder Judiciário, que não detém atribuição para participar de negociações na seara investigatória, impor ao MP a celebração de acordos. Não se tratando de hipótese de manifesta inadmissibilidade do ANPP, a defesa pode requerer o reexame de sua negativa, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP, não sendo legítimo, em regra, que o Judiciário controle o ato de recusa, quanto ao mérito, a fim de impedir a remessa ao órgão superior no MP. Isso porque a redação do art. 28-A, § 14, do CPP determina a iniciativa da defesa para requerer a sua aplicação. STF. 2ª Turma. HC 194677/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/5/2021 (Info 1017). 

O julgado a seguir comentado trata sobre acordo de não persecução penal (ANPP). Antes de verificar o que foi decidido, vamos fazer uma breve revisão sobre o tema com base na excelente obra de Leonardo Barreto (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021): 

Acordo de não persecução penal (ANPP) 

A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) inseriu o art. 28-A ao CPP, prevendo o instituto do acordo de não persecução penal (ANPP), que pode ser assim conceituado: 

- é um acordo (negócio jurídico) 

- celebrado entre o Ministério Público e o investigado, mas com a necessidade de homologação judicial 

- firmado, em regra, antes do início da ação penal (em regra, é pré-processual) 

- ajuste esse permitido apenas para certos tipos de crimes 

- no ajuste, o investigado se compromete a cumprir determinadas condições 

- e caso cumpra integralmente o acordo, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. 

Mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal 

Segundo o princípio da obrigatoriedade, havendo justa causa e estando preenchidos todos os requisitos legais, o membro do Ministério Público é obrigado a oferecer a denúncia. Trata-se de um dever, e não uma faculdade, não sendo reservado ao Ministério Público um juízo discricionário sobre a conveniência e oportunidade de seu ajuizamento. Pode-se dizer, então, que o ANPP é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade. Outro exemplo de exceção: o acordo de colaboração premiada, no qual o MP pode conceder ao colaborador como benefício o não oferecimento da denúncia. 

Justiça Penal Consensual 

O instituto do ANPP está diretamente ligado ao movimento chamado Justiça Penal Consensual ou Negociada ou Pactual. O Min. Reynaldo Soares da Fonseca afirma que se trata de instrumento para otimização dos recursos públicos e a efetivação da chamada Justiça multiportas, com a perspectiva restaurativa (HC 607003-SC). 

Formalidades do acordo 

O acordo será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor (§ 3º do art. 28-A). A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para ficar registrado que esse mesmo investigado não poderá fazer novo ANPP no prazo de 5 anos (§ 12 do art. 28-A). 

O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia 

A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o ANPP, é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. Assim, mostra-se impossível realizar o ANPP quando já recebida a denúncia em data anterior à entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019. 

STJ. 5ª Turma. HC 607003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683). 

STF. 1ª Turma. HC 191464 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020. 

Requisitos (caput e § 2º do art. 28-A) 

REQUISITOS PARA QUE O MP POSSA PROPOR O ANPP 

1) não ser o caso de arquivamento: Se não houver justa causa ou existir alguma outra razão que impeça a propositura da ação penal, não é caso de oferecer o acordo, devendo o MP pedir o arquivamento do inquérito policial ou investigação criminal. 

2) o investigado deve ter confessado a prática da infração penal: O ANPP exige que o investigado tenha confessado formal (em ato solene) e circunstancialmente (com detalhes) a prática da infração penal. O art. 18, § 2º, da Res. 181/2017-CNMP exige que a confissão seja registrada em áudio e vídeo. 

3) infração penal foi cometida sem violência e sem grave ameaça: A infração penal não pode ter sido cometida com violência ou grave ameaça. Prevalece que é cabível ANPP se a infração foi cometida com violência contra coisa. Assim, o ANPP somente é proibido se a infração foi praticada com grave ameaça ou violência contra pessoa. 

4) a pena mínima da infração penal é menor que 4 anos: A infração penal cometida deve ter pena mínima inferior a 4 anos. Se a pena mínima for igual ou superior a 4 anos, não cabe. Para aferição da pena mínima, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. Aplicam-se ao ANPP, por analogia, as súmulas 243-STJ e 723-STF. 

5) o acordo deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime no caso concreto: Esse requisito revela que a propositura, ou não, do acordo está atrelada a certo grau de discricionariedade do membro do MP, que avaliará se essa necessidade e suficiência estão presentes no caso concreto. 

6) não caber transação penal: Se for cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve propor a transação (e não o ANPP). Isso porque se trata de benefício mais vantajoso ao investigado. Por outro lado, mesmo que seja cabível a suspensão condicional do processo, ainda assim, o membro do MP pode propor o ANPP. 

7) o investigado deve ser primário: Se o investigado for reincidente (genérico ou específico), não cabe ANPP. 

8) não haver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas: Regra: se houver elementos probatórios que indiquem que o investigado possui uma conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, não cabe ANPP. Exceção: se essas infrações pretéritas que o investigado se envolveu forem consideradas “insignificantes”, será possível propor ANPP. 

9) o agente não pode ter sido beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo: No momento de decidir se vai propor o ANPP, o membro do MP deverá analisar se, nos últimos 5 anos (contados da infração), aquele investigado já foi beneficiado: • com outro ANPP; • com transação penal ou • com suspensão condicional do processo. 

10) a infração praticada não pode estar submetida à Lei Maria da Penha Não cabe ANPP nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. 

Condições 

O Ministério Público irá propor que o investigado cumpra as seguintes condições “ajustadas cumulativa e alternativamente”: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de 1/3 a 2/3, em local a ser indicado pelo juízo da execução; IV - pagar prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. 

Recusa do MP de oferecer o acordo 

No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 do CPP (§ 14º do art. 28-A). 

Obrigatória a realização de audiência 

Conforme vimos acima, o ANPP precisa de homologação judicial. Antes de decidir pela homologação, o juiz deverá designar audiência para analisar: a) a legalidade do acordo, isto é, se todos os requisitos do art. 28-A do CPP foram cumpridos; e b) a voluntariedade, ou seja, se o investigado deseja realmente o ajuste. Para isso, o magistrado irá fazer oitiva do investigado na presença do seu defensor. 

“Quanto à voluntariedade, o magistrado verificará a ocorrência de algum tipo de vício de vontade, como o erro, o dolo e a coação. Além disso, deverá observar se o agente possui pleno e integral conhecimento do conteúdo do acordo por ele celebrado. No que diz respeito à legalidade, o juiz deverá examinar se o ANPP foi firmado em atendimento às hipóteses legais, assim como se as suas cláusulas estão em consonância com o regramento contido no art. 28-A do CPP. Certo é que o magistrado não poderá apreciar o mérito/conteúdo do acordo, matéria privativa do Ministério Público e do investigado, dentro do campo de negociação reconhecido pela Justiça Penal Consensual, sob pena de violação da sua imparcialidade e do próprio sistema acusatório.” (MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 356). 

Devolução dos autos ao MP 

Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor (§ 5º do art. 28-A). 

Recusa à homologação 

O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º do art. 28-A acima mencionado (§ 7º do art. 28-A). Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia (§ 8º do art. 28-A). 

Homologação do acordo 

Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal (§ 6º do art. 28-A). 

Vítima deverá ser informada da celebração do acordo e de eventual descumprimento 

A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento (§ 9º do art. 28-A). 

Cumprimento do acordo 

Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade (§ 13 do art. 28-A). 

Descumprimento do acordo 

Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia (§ 10 do art. 28-A). O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo (§ 11 do art. 28-A). 

Feita essa revisão, imagine agora a seguinte situação adaptada: 

Beatriz foi denunciada pela prática do crime de tráfico transnacional de drogas, na forma do caput do art. 33 c/c art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006: 

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. 

Durante a instrução penal, ficou demonstrado que Beatriz é primária, possui bons antecedentes, não se dedicava a atividades criminosas nem integrava organização criminosa. Logo, o Ministério Público requereu a sua condenação, mas pediu que fosse a ela aplicada a causa de diminuição de pena do § 4º do art. 33 (tráfico privilegiado): 

Art. 33 (...) § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. 

Diante disso, a defesa sustentou a seguinte tese: 

- a pena mínima do crime de tráfico de drogas é 5 anos; 

- logo, em regra, não cabe acordo de não persecução penal (ANPP); 

- ocorre que o próprio MP reconhece que a acusada tem direito à redução da pena de 1/6 a 2/3; 

- se a pena original (5 anos) for reduzida em 1/6, ficará em 4 anos e 2 meses (não terá direito ao ANPP); 

- se a pena original (5 anos) for reduzida em 1/5, ficará em 4 anos (também não terá direito ao ANPP); 

- porém, se houver a redução em 1/4, 1/3, 1/2 ou 2/3, a pena ficará abaixo de 4 anos, de maneira que a acusada teria, em tese, direito ao ANPP; 

- desse modo, diante do reconhecimento do tráfico privilegiado pelo Parquet, deveria ser oferecida proposta de ANPP mesmo nesta fase processual. 

O juiz abriu vista ao MP que, no entanto, não manifestou interesse na formulação da proposta ao fundamento de que a pena em concreto seria superior a 4 anos. A defesa pediu, então, que o caso fosse analisado pelo órgão superior do MP. O magistrado, contudo, não aceitou a argumentação da defesa, tendo proferido sentença que condenou a ré à pena de 4 anos e 10 meses de reclusão. A defesa da ré, irresignada, impetrou habeas corpus perante o TRF3 pretendendo o reconhecimento do referido benefício, tendo a Corte denegado a ordem. Ao julgar recurso ordinário, o STJ também negou o pedido da defesa. O caso chegou, então, ao STF por meio de habeas corpus. 

O STF determinou que o Ministério Público ofereça o ANPP? É possível ordem judicial nesse sentido? NÃO. 

O Poder Judiciário não pode impor ao Ministério Público a obrigação de ofertar acordo de não persecução penal (ANPP). Não cabe ao Poder Judiciário, que não detém atribuição para participar de negociações na seara investigatória, impor ao MP a celebração de acordos. STF. 2ª Turma. HC 194677/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/5/2021 (Info 1017). 

No caso concreto, o juiz agiu corretamente? 

Para o STF, não. No caso, a defesa pediu que fosse proposto o acordo. O MP se recusou. A defesa pediu que a recusa fosse analisada pelo órgão superior do Parquet. Diante disso, o que o magistrado deveria ter feito era aplicar § 14 do art. 28-A do CPP, determinando a remessa dos autos ao órgão superior do MPF, que iria analisar se a recusa do Procurador da República foi correta, ou não. Essa é a solução prevista no § 14 do art. 28-A do CPP: 

Art. 28-A (...) § 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código. 

Se o MP se recusar a oferecer o acordo e a defesa requerer a remessa dos autos ao órgão superior, o juiz é obrigado a remeter? 

Regra: sim. Em regra, não cabe ao Poder Judiciário analisar a recusa do MP e, portanto, se a defesa não se conformar, deverá remeter os autos ao órgão superior do Parquet. Exceção: o STF afirmou que o juiz não precisa remeter ao órgão superior do MP em caso de manifesta inadmissibilidade do ANPP. 

Nas palavras do Min. Gilmar Mendes: 

“Não se tratando de hipótese de manifesta inadmissibilidade do ANPP, a defesa pode requerer o reexame de sua negativa, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP, não sendo legítimo, em regra, que o Judiciário controle o ato de recusa, quanto ao mérito, a fim de impedir a remessa ao órgão superior no MP. Isso porque a redação do art. 28-A, § 14, do CPP determina a iniciativa da defesa para requerer a sua aplicação.” 

Com base nesse entendimento, a 2ª Turma do STF concedeu parcialmente a ordem, para determinar a remessa dos autos à Câmara de Revisão do Ministério Público Federal, a fim de que seja apreciado o ato que negou a oferta de ANPP. 

20 de junho de 2021

É ilegal a quebra do sigilo telefônico mediante a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/06/info-696-stj.pdf


DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVAS: É ilegal a quebra do sigilo telefônico mediante a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha 

A Lei nº 9.296/96 não autoriza a suspensão do serviço telefônico ou do fluxo da comunicação telemática mantida pelo usuário, tampouco a substituição do investigado e titular da linha por agente indicado pela autoridade policial. STJ. 6ª Turma. REsp 1.806.792-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11/05/2021 (Info 696). 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte: 

A Polícia Federal requereu ao Juiz Federal, com base na Lei nº 9.296/96, a quebra de sigilo telefônico para que fosse decretada a interceptação de determinados terminais telefônicos, mediante a habilitação temporária de SIMCARDS* (chips) indicados pela autoridade policial, em substituição às linhas do investigado. * SIMCARD: card = cartão em inglês; “SIM” é a sigla da expressão inglesa “Subscriber Identity Module”, que significa módulo de identificação do assinante (comumente conhecido no Brasil como “chip”). 

Explicando de forma mais simples: é como se a “linha telefônica” de cada investigado fosse redirecionada para aparelhos telefônicos em poder da polícia. Assim, por exemplo, quando alguém ligasse para um dos investigados, essa chamada iria ser redirecionada para um aparelho de celular que estaria na posse de algum policial. Além disso, os policiais teriam acesso, em tempo real, aos dados enviados aos telefones dos investigados, como as chamadas recebidas e as mensagens criptografadas enviadas através de aplicativos de troca instantânea de conteúdo, como WhatsApp e Telegram, aos telefones dos investigados. Seria possível, inclusive, que a autoridade policial acessasse o “backup” das conversas trocadas nesses programas. A medida pretendida pela autoridade policial englobava, portanto: a) o fluxo das comunicações (a polícia teria acesso às mensagens e ligações dos investigados, instantaneamente); e também b) os “dados” contidos nos celulares dos investigados (histórico das conversas e ligações). Era, então, um misto de interceptação telefônica e acesso à base na qual se encontram os dados. O pedido foi deferido pelo juiz. A operadora de telefonia impetrou mandado de segurança contra a decisão alegando que a medida deferida não tem amparo na lei e que houve uma interferência direta na prestação do serviço público prestado pela concessionária. A ordem foi concedida pelo TRF da 3ª Região. O MPF interpôs recurso especial ao STJ defendendo a legalidade da decisão judicial. 

Antes de adentrar ao mérito do caso, indaga-se: a empresa de telefonia possuía legitimidade para impetrar mandado de segurança neste caso, mesmo envolvendo direito de terceiros (investigados)? 

A empresa de telefonia possuía, sim, legitimidade, no entanto, neste caso, ela não está diretamente defendendo interesse dos investigados, mas sim direito próprio de não sofrer interferência indevida no serviço público que ela presta. Assim, a legitimidade ativa da empresa de telefonia foi reconhecida não para proteger direito dos usuários das linhas telefônicas que seriam prejudicados com a “interceptação telefônica”, mas sim para discutir a ausência de lei específica que amparasse a ordem judicial que determinou uma interferência direta na própria prestação do serviço público pela concessionária. 

A tese do MPF foi acolhida pelo STJ? A quebra do sigilo telefônico mediante a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado está autorizada pela Lei nº 9.296/96? A prova colhida dessa maneira seria considerada válida? NÃO. 

É ilegal a quebra do sigilo telefônico mediante a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha. STJ. 6ª Turma. REsp 1.806.792-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11/05/2021 (Info 696). 

A Lei nº 9.296/96 não autoriza a suspensão do serviço telefônico ou do fluxo da comunicação telemática mantida pelo usuário, tampouco a substituição do investigado e titular da linha por agente indicado pela autoridade policial. A decisão judicial que deferiu o pedido da autoridade policial permitiu a utilização de chip, em substituição ao do aparelho celular do usuário investigado, “pelo prazo de 15 (quinze) dias e a critério da autoridade policial, em horários previamente indicados, inclusive de madrugada." Se a operadora de telefonia não tivesse discordado da decisão judicial, o agente investigador, a critério da autoridade policial, teria acesso ilimitado e em tempo real a todas as chamadas e mensagens, inclusive via WhatsApp. Isso possibilitaria, inclusive, que os policiais enviassem mensagens ou excluíssem o conteúdo das mensagens, sem deixar vestígios, já que a operadora não armazena em nenhum servidor o teor das conversas dos usuários. 

Qual a diferença entre a interceptação telefônica autorizada pela lei e o acesso à linha telefônica e aos dados do investigado da forma como determinado no caso concreto? 

Na interceptação telefônica o agente investigador atua apenas como observador das conversas entre o interceptado e terceiros. Por outro lado, na troca do chip habilitado, o agente investigador atua como efetivo participante das conversas, já que é possível a interação direta com os interlocutores, bem como o envio de mensagens a qualquer contato do interceptado. Além disso, seria possível, ainda, excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, as mensagens enviadas pelo WhatsApp. E, nesse interregno, o investigado permaneceria com todos seus serviços de telefonia suspensos. Assim, considerando que a interceptação telefônica e telemática deve se dar nos estritos limites da lei, por se tratar de providência que excepciona a garantia constitucional à inviolabilidade das comunicações (art. 5º, XII, da CF/88), não é possível interpretação extensiva com a finalidade de alargar as hipóteses nela previstas ou de criar procedimento diverso dos por ela autorizados. 

O caso acima se assemelha a outro julgado do STJ envolvendo espelhamento de conversas do WhatsApp Web. Relembre abaixo: 

É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp para que a Polícia acompanhe as conversas do suspeito pelo WhatsApp Web. 

É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp via Código QR para acesso no WhatsApp Web. Também são nulas todas as provas e atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes. Não é possível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp. STJ. 6ª Turma. RHC 99735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018 (Info 640)

19 de junho de 2021

É lícito o compartilhamento de dados bancários feito por órgão de investigação do país estrangeiro para a polícia brasileira, mesmo que, no Estado de origem, essas informações não tenham sido obtidas com autorização judicial, já que isso não é exigido naquele país

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/06/info-695-stj.pdf


DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVAS: É lícito o compartilhamento de dados bancários feito por órgão de investigação do país estrangeiro para a polícia brasileira, mesmo que, no Estado de origem, essas informações não tenham sido obtidas com autorização judicial, já que isso não é exigido naquele país 

Caso concreto: a Procuradoria de Nova Iorque (EUA) compartilhou com a Polícia Federal do Brasil uma relação de brasileiros que mantinham contas bancárias nos EUA. A partir dessa informação, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar os fatos e representou pela quebra do sigilo bancário dos investigados. O juiz federal deferiu o pedido e expediu um MLAT aos EUA solicitando todos os detalhes das contas bancárias mantidas naquele país. Esses dados foram enviados. O compartilhamento de dados feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal foi realizado sem autorização judicial. Mesmo assim, não há nulidade e tais elementos informativos podem ser utilizados no Brasil, já que, no Estado de origem, não era necessária autorização judicial. Assim, não viola a ordem pública brasileira o compartilhamento direto de dados bancários pelos órgãos investigativos, mesmo que, no Estado de origem, sejam obtidos sem prévia autorização judicial, se a reserva de jurisdição não é exigida pela legislação daquele local. Ainda neste mesmo caso concreto, o STJ decidiu que a cooperação internacional feita pelo MLAT não será nula, ainda que não tenha sido concretizada com a intermediação das autoridades centrais do Brasil e dos EUA. Respeitadas as garantias processuais do investigado, não há prejuízo na cooperação direta entre as agências investigativas, sem a participação das autoridades centrais. A ilicitude da prova ou do meio de sua obtenção somente poderia ser pronunciada se o réu demonstrasse alguma violação de suas garantias ou das específicas regras de produção probatória. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695). 

Imagine a seguinte situação adaptada: 

O Ministério Público federal ofereceu denúncia contra João pela prática do crime de evasão de divisas, delito tipificado no art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86: 

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente. 

O MPF alegou que o acusado manteve dinheiro em conta bancária nos EUA sem informar esse fato ao Banco Central do Brasil. 

Modo como foram obtidos os dados bancários 

A Procuradoria de Nova Iorque compartilhou com a Polícia Federal do Brasil uma relação de brasileiros que mantinham contas bancárias nos EUA. Uma dessas pessoas era João. A partir dessa informação, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar os fatos e representou pela quebra do sigilo bancário de João. O juiz federal deferiu o pedido e expediu um MLAT aos EUA solicitando todos os detalhes da conta bancária mantida por João naquele país. Esses dados foram enviados. 

O que é o MLAT? 

Na prática diária da Justiça Federal, é muito comum a utilização de provas emprestadas da Justiça norteamericana, por força de um acordo celebrado entre o Brasil e os EUA e que ficou conhecido pela sua sigla (MLAT). Em inglês, MLAT significa “Mutual Legal Assistance Treaty” e consiste em um acordo bilateral por meio do qual os EUA e o Brasil se comprometem a prestar auxílio jurídico direto em matéria processual. O MLAT foi a forma encontrada para desburocratizar e tornar mais célere e fácil a cooperação jurídica internacional, que antes era feita apenas por meio de cartas rogatórias que, no entanto, são caras e demoradas. As cartas rogatórias demoram mais para serem cumpridas porque exigem maiores formalidades e, para serem enviadas e recebidas, precisam passar pelos canais diplomáticos de cada país. No Brasil, para serem cumpridas, precisam ainda da autorização do STJ. O MLAT, por sua vez, é um instrumento de Auxílio Direto, permitindo que o pedido de auxílio seja formulado diretamente pelo juiz de 1ª instância, sendo desnecessário o juízo prévio de delibação do STJ. A tramitação desses pedidos é coordenada pela Autoridade Central brasileira designada em cada tratado firmado, conforme explica o Manual de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça editado em 2012 (www.portal.mj.gov.br). O MLAT entre o Brasil e os EUA foi assinado em 1997, mas promulgado apenas em 2001, por meio do Decreto nº 3.810/2001. Por meio desse acordo, as partes (Brasil e EUA) se obrigam a prestar assistência mútua, em matéria de investigação, inquérito, ação penal, prevenção de crimes e processos relacionados a delitos de natureza criminal. A assistência incluirá: a) tomada de depoimentos ou declarações de pessoas; b) fornecimento de documentos, registros e bens; c) localização ou identificação de pessoas (físicas ou jurídicas) ou bens; d) entrega de documentos; e) transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento ou outros fins; f) execução de pedidos de busca e apreensão; g) assistência em procedimentos relacionados a imobilização e confisco de bens, restituição, cobrança de multas; e h) qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado Requerido. Os EUA mantêm acordos semelhantes com diversos outros países do mundo. 

João foi condenado e a defesa recorreu alegando duas teses. A primeira delas foi a de que o compartilhamento de dados feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal foi realizada sem autorização judicial. Logo, seria nula. O STJ concordou com essa tese? NÃO. 

Não viola a ordem pública brasileira o compartilhamento direto de dados bancários pelos órgãos investigativos mesmo que, no Estado (país) de origem, essas informações tenham sido obtidas sem prévia autorização judicial, se a reserva de jurisdição não é exigida pela legislação local. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695). 

Como os valores estavam depositados em conta bancária de instituição financeira localizada em Nova Iorque, a licitude do compartilhamento deve ser examinada à luz da legislação daquele Estado: 

A provas obtidas por meio de cooperação internacional em matéria penal devem ter como parâmetro de validade a lei do Estado no qual foram produzidas, conforme a previsão do art. 13 da LINDB. STJ. Corte Especial. APn 856/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/10/2017. 

No caso concreto, a obtenção dos dados cadastrais, do contrato de abertura da conta e dos extratos de sua movimentação ocorreu em conformidade com a legislação vigente no Estado de Nova Iorque. Logo, o compartilhamento dessas informações feito pela Procuradoria de Nova Iorque com a Polícia Federal obedeceu à legislação daquele Estado. No direito brasileiro, como se sabe, a quebra do sigilo de tais informações se submete à reserva de jurisdição, na forma dos arts. 1º, § 4º, e 3º da Lei Complementar 105/2001. Essa exigência do ordenamento brasileiro, contudo, não existe na legislação nova-iorquina. Em Nova Iorque, ainda na década de 1970, a Suprema Corte daquele Estado afirmou que a acusação tem a prerrogativa de encaminhar, ela própria, intimação (subpoena) para a entrega de documentos bancários (Shapiro v. Chase Manhattan Bank, 53 A.D. 2d 542, julgado em 15/6/1976); este entendimento, inclusive, tem sido confirmado em casos mais recentes (por exemplo: People v. Lomma, 35 Misc. 3d 396, julgado em 1/2/2012). Por conseguinte, na forma do art. 13 da LINDB, não é possível declarar nulidade pela falta de prévia decisão judicial quando da obtenção do documento no qual foram elencadas as contas de brasileiros no Delta National Bank, de Nova Iorque: 

Art. 13. A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça. 

No presente caso, não há afronta à ordem pública brasileira, mas apenas a existência de um tratamento jurídico diferente sobre a produção de prova no Brasil e nos EUA. Para a obtenção das provas em análise, não foi violada qualquer norma cogente de direito internacional, não se agrediu a soberania brasileira e não se violou a dignidade do investigado. Logo, não se aplica, na situação, o art. 17 da LINDB: 

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. 

Situação diferente existiria se a obtenção da prova tivesse ocorrido, por exemplo, mediante tortura, ou em procedimento eivado de perseguição político-ideológica. Nestes casos, por certo, nem mesmo eventual permissão judicial poderia convalidar a prova, porquanto violada profundamente a dignidade do investigado. Isso mostra que, para avaliar a admissibilidade de uma prova à luz do art. 17 da LINDB, mais decisivo é o respeito à condição humana do indivíduo do que, propriamente, a reserva de jurisdição. 

Vamos agora tratar do segundo questionamento. A defesa alegou a nulidade do compartilhamento mais detalhado que foi feito por meio do MLAT 

Para a defesa, a decisão do juiz federal não poderia ter sido cumprida imediatamente no exterior. Em sua ótica, caberia à autoridade central brasileira (Ministério da Justiça) solicitar à autoridade central norteamericana (Procurador-Geral) o envio dos dados almejados pelo aparato investigador, conforme o procedimento previsto no MLAT. 

Essa segunda tese da defesa foi acolhida pelo STJ? 

NÃO. De fato, o art. 4º do MLAT firmado entre Brasil e EUA institui um procedimento específico para as solicitações de cooperação, com a participação das autoridades centrais de cada país (o Ministério da Justiça e o Procurador-Geral, respectivamente). Não obstante, o descumprimento deste rito, por si só, não é causa suficiente para declarar a nulidade das provas decorrentes da colaboração. É necessário interpretar sistematicamente o art. 4º, cotejando-o com as demais normas extraídas do MLAT, para que uma leitura isolada do dispositivo não conduza a resultados não contemplados no escopo do Tratado. O MLAT busca desburocratizar a cooperação internacional em matéria penal, pois permite a utilização de qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado requerido. Tratar o procedimento formal do art. 4º como impositivo, sob pena de nulidade das provas obtidas por formas atípicas de cooperação, desconsideraria o teor destes textos normativos e violaria frontalmente o art. 1º, n. 5, do MLAT. A veiculação de pedidos pelas autoridades centrais não é a única forma válida de compartilhamento - pelo menos no âmbito do Acordo de Assistência firmado entre Brasil e EUA -, que não veda a cooperação direta entre os órgãos investigadores de cada país. 

Em suma: Respeitadas as garantias processuais do investigado, não há prejuízo na cooperação direta entre as agências investigativas, sem a participação das autoridades centrais. A ilicitude da prova ou do meio de sua obtenção somente poderia ser pronunciada se o réu demonstrasse alguma violação de suas garantias ou das específicas regras de produção probatória. STJ. 5ª Turma. AREsp 701.833/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/05/2021 (Info 695). 

8 de junho de 2021

Compete ao Juízo Federal do endereço do destinatário da droga, importada via Correio, processar e julgar o crime de tráfico internacional.

 CC 177.882-PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 26/05/2021.


Tráfico internacional. Importação. Apreensão da droga em Centro Internacional dos Correios distante do local de destino. Facilidade para colheita de provas da autoria delitiva no endereço do destinatário do entorpecente. Competência do Juízo do local de destino da droga. Flexibilização da Súmula n. 528 do STJ.


Compete ao Juízo Federal do endereço do destinatário da droga, importada via Correio, processar e julgar o crime de tráfico internacional.


O núcleo da controvérsia consiste em verificar a possibilidade de redimensionar o alcance da Súmula n. 528/STJ, a qual cuida de tráfico de drogas praticado via postal, nos mesmos moldes em que a Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça, no precedente do CC 172.392/SP, flexibilizou a incidência da Súmula n. 151/STJ, no caso de contrabando e descaminho, quando a mercadoria apreendida estiver em trânsito e conhece-se o endereço da empresa importadora destinatária da mercadoria.

Conforme Súmula n. 528/STJ, "Compete ao Juiz Federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional". Feita a necessária digressão sobre os julgados inspiradores da Súmula n. 528/STJ, constata-se que o Ministro Rogerio Schietti Cruz, no julgamento do CC 134.421/TJ (DJe 4/12/2014), propôs a revisão do seu posicionamento para, exclusivamente no caso de importação de droga via correio (ou seja, quando conhecido o destinatário), reconhecer como competente o Juízo do local de destino da droga. Malgrado tenha vencido a tese pela competência do local da apreensão da droga, em nome da segurança jurídica, a dinâmica do tempo continua revelando as dificuldades investigativas no caso de importação via correios, quando a droga é apreendida em local distante do destino conhecido.

Com efeito, "Em situações excepcionais, a jurisprudência desta Corte tem admitido a fixação da competência para o julgamento do delito no local onde tiveram início os atos executórios, em nome da facilidade para a coleta de provas e para a instrução do processo, tendo em conta os princípios que atendem à finalidade maior do processo que é a busca da verdade real" (CC 151.836/GO, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 26/6/2017).

Ademais, uma vez abraçada a tese de que a consumação da importação da droga ocorre no momento da entabulação do negócio jurídico, o local de apreensão da mercadoria em trânsito não se confunde com o local da consumação do delito, o qual já se encontrava perfeito e acabado desde a negociação.

Ressalte-se que a prestação jurisdicional efetiva depende de investigação policial eficiente. Caso inicialmente o local da apreensão da droga possa apresentar-se como facilitador da colheita de provas no tocante à materialidade delitiva, em um segundo momento, a distância do local de destino da droga dificulta sobremaneira as investigações da autoria delitiva, sendo inegável que os autores do crime possuem alguma ligação com o endereço aposto na correspondência.

A fixação da competência no local de destino da droga, quando houver postagem do exterior para o Brasil com o conhecimento do endereço designado para a entrega, proporcionará eficiência da colheita de provas relativamente à autoria e, consequentemente, também viabilizará o exercício da defesa de forma mais ampla.

Desse modo, na hipótese de importação da droga via correio cumulada com o conhecimento do destinatário por meio do endereço aposto na correspondência, a Súmula n. 528/STJ deva ser flexibilizada para se fixar a competência no Juízo do local de destino da droga, em favor da facilitação da fase investigativa, da busca da verdade e da duração razoável do processo.

6 de junho de 2021

Não existe exigência legal de que o mandado de busca e apreensão detalhe o tipo de documento a ser apreendido, ainda que de natureza sigilosa

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/05/info-694-stj-1.pdf


DIREITO PROCESSUAL PENAL - BUSCA E APREENSÃO 

Não existe exigência legal de que o mandado de busca e apreensão detalhe o tipo de documento a ser apreendido, ainda que de natureza sigilosa 

Situação hipotética: João, médico, estava sendo investigado por, supostamente, ter adulterado prontuários de pacientes internados em clínica psiquiátrica, com o objetivo de camuflar ilicitudes que ocorriam no local. A autoridade policial formulou representação ao juiz pedindo a busca e apreensão na clínica psiquiátrica e na residência do investigado. O magistrado deferiu a medida e a polícia apreendeu diversos prontuários médicos que haviam sido assinados pelo investigado. João impetrou habeas corpus alegando que a apreensão foi ilícita, considerando que na decisão que autorizou a medida não existia autorização específica para a apreensão de prontuários médicos. Segundo a defesa, os prontuários são documentos sigilosos e, portanto, só poderiam ter sido recolhidos com autorização judicial específica. Embora os prontuários possam conter dados sigilosos, foram apreendidos a partir da imprescindível autorização judicial prévia. O fato de o mandado de busca não ter feito uma discriminação específica é irrelevante, até porque os prontuários médicos encontram-se inseridos na categoria de documentos em geral. Ademais, vale frisar que o sigilo do qual se revestem os prontuários médicos pertence única e exclusivamente aos pacientes, não ao médico. Assim, caso houvesse a violação do direito à intimidade, essa ofensa teria que ser arguida pelos seus titulares (pacientes) e não pelo investigado. STJ. 6ª Turma. RHC 141.737/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 27/04/2021 (Info 694). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

João, médico, estava sendo investigado pela polícia por, supostamente, ter adulterado prontuários de pacientes internados em clínica psiquiátrica. Os pacientes, mesmo sem indicação, permaneciam internados no hospital. Para concretizar isso, os prontuários eram supostamente adulterados com a inserção de informações falsas. A autoridade policial formulou representação ao juiz pedindo a busca e apreensão na clínica psiquiátrica e na residência do investigado. O magistrado deferiu a medida autorizando a apreensão de documentos indispensáveis à apuração dos fatos sob investigação. A polícia, ao cumprir o mandado, apreendeu diversos prontuários médicos que haviam sido assinados pelo investigado. João impetrou habeas corpus alegando que a apreensão foi ilícita. Isso porque na decisão que autorizou a medida não existia autorização específica para a apreensão de prontuários médicos. Segundo a defesa, os prontuários são documentos sigilosos e, portanto, só poderiam ter sido recolhidos com autorização judicial específica. 

A tese da defesa foi acolhida pelo STJ? 

NÃO. No caso concreto, conforme já explicado, a investigação foi deflagrada em virtude da adulteração de prontuários. Logo, é evidente que os principais objetos visados pela medida de busca e apreensão eram justamente os prontuários dos pacientes que haviam sido submetidos a tratamento e, ao mesmo tempo, vítimas de inúmeros crimes. Desse modo, não houve qualquer nulidade na apreensão desses documentos. Embora os prontuários possam conter dados sigilosos, foram apreendidos a partir da imprescindível autorização judicial prévia, quer dizer, a prova foi obtida por meio lícito. O fato de o mandado de busca não ter feito uma discriminação específica é irrelevante, até porque os prontuários médicos encontram-se inseridos na categoria de documentos em geral, não existindo qualquer exigência legal de que a autorização cautelar deva detalhar o tipo de documento a ser apreendido quando este possuir natureza sigilosa. Conforme já decidiu o STF: 

Dada a impossibilidade de indicação, ex ante, de todos os bens passíveis de apreensão no local da busca, é mister conferir-se certa discricionariedade, no momento da diligência, à autoridade policial. STF. 1ª Turma. Pet 5173/DF, Min. Dias Tofoli, DJe 18/11/2014. 

Vale ainda mencionar o entendimento do próprio STJ: 

O art. 243 do CPP disciplina os requisitos do mandado de busca e apreensão, dentre os quais não se encontra o detalhamento do que pode ou não ser arrecadado. STJ. 5ª Turma. HC 524.581/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 13/2/2020. 

Suficiente à delimitação da busca e apreensão é a determinação de que deveriam ser apreendidos os materiais que pudessem guardar relação estrita com aqueles fatos. STJ. 6ª Turma. HC 537.017/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 3/2/2020. 

O art. 240 do CPP, ao tratar da busca e apreensão, apresenta um rol exemplificativo dos casos em que a medida pode ser determinada, no qual se encontra a hipótese de arrecadação de objetos necessários à prova da infração ou à defesa do réu, não havendo qualquer ressalva de que não possam dizer respeito à intimidade ou à vida privada do indivíduo. STJ. 5ª Turma. HC 142.205/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 13/12/2010. 

Ademais, vale frisar que o sigilo do qual se revestem os prontuários médicos pertence única e exclusivamente aos pacientes, não ao médico. Assim, caso houvesse a violação do direito à intimidade, essa ofensa teria que ser arguida pelos seus titulares (pacientes) e não pelo investigado. 

Em suma: Não existe exigência legal de que o mandado de busca e apreensão detalhe o tipo de documento a ser apreendido, ainda que de natureza sigilosa. STJ. 6ª Turma. RHC 141.737/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 27/04/2021 (Info 694). 



 



15 de maio de 2021

Não se admite condenação baseada exclusivamente em declarações informais prestadas a policiais no momento da prisão em flagrante

 DIREITO PROCESSUAL PENAL – NULIDADE

Direito ao silêncio e condenação com base em “interrogatório informal” - RHC 170843 AgR/SP 

Resumo:

Não se admite condenação baseada exclusivamente em declarações informais prestadas a policiais no momento da prisão em flagrante.

A Constituição Federal (1) impõe ao Estado a obrigação de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito.

Ademais, na linha de precedentes da Corte (2), a falta da advertência ao direito ao silêncio, no momento em que o dever de informação se impõe, torna ilícita a prova. Isso porque o privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), erigido em garantia fundamental pela Constituição, importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado acerca da possibilidade de permanecer calado.

Dessa forma, qualquer suposta confissão firmada, no momento da abordagem, sem observação ao direito ao silêncio, é inteiramente imprestável para fins de condenação e, ainda, invalida demais provas obtidas através de tal interrogatório.

No caso, a leitura dos depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão da paciente demonstra que não foi observado o citado comando constitucional.

Com base nesse entendimento, a Segunda Turma, por maioria, negou provimento ao agravo regimental para restabelecer a sentença de primeiro grau. Vencido o ministro Nunes Marques.

(1) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”

(2) Precedentes citados: HC 80.949/RJ, relator Min. Sepúlveda Pertence (DJ de 14.12.2001); Rcl 33.711/SP, relator Min. Gilmar Mendes (DJe de 23.8.2019); RHC 192.798 AgR/SP, relator Min. Gilmar Mendes (DJe de 2.3.2021).

RHC 170843 AgR/SP, relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 4.5.2021


10 de maio de 2021

O prazo de 30 dias do art. 529 do CPP não afasta a decadência pelo não exercício do direito de queixa em 6 meses (art. 38), contados da ciência da autoria do crime

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/05/info-692-stj.pdf 


PROCEDIMENTO - O prazo de 30 dias do art. 529 do CPP não afasta a decadência pelo não exercício do direito de queixa em 6 meses (art. 38), contados da ciência da autoria do crime 

Nos crimes contra a propriedade imaterial que deixam vestígios, depois que o ofendido tem ciência da autoria do delito, ele possui o prazo decadencial de 6 meses para a propositura da ação penal, nos termos do art. 38 do CPP. Se, antes desses 6 meses, o laudo pericial for concluído, o ofendido terá 30 dias para oferecer a queixa crime. Assim, em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígio, a ciência da autoria do fato delituoso dá ensejo ao início do prazo decadencial de 6 meses (art. 38 do CPP), sendo tal prazo reduzido para 30 dias (art. 38) se homologado laudo pericial nesse ínterim. STJ. 6ª Turma. REsp 1.762.142/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 13/04/2021 (Info 692). 

Crimes contra a propriedade imaterial 

O CPP, em seus arts. 524 a 530-I, trata sobre o processo e julgamento dos crimes contra a propriedade imaterial. Quais são esses delitos? 1) crime de violação de direito autoral (art. 184 do CP); 2) crimes contra a propriedade industrial, previstos nos arts. 183 a 195 da Lei nº 9.279/96. 

Qual é a natureza da ação penal nesses crimes? 

• art. 184, caput, do CP: ação penal privada. • art. 184, §§ 1º e 2º, do CP (ex.: venda de DVD pirata): ação pública incondicionada. • art. 184, § 3º, do CP: ação penal pública condicionada. • em qualquer uma das figuras do art. 184, do CP, se o crime for cometido em desfavor de entidades de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação instituída pelo Poder Público, a ação será pública incondicionada. • art. 191 da Lei nº 9.279/96: ação pública incondicionada. • demais crimes da Lei nº 9.279/96: ação penal privada. 

Imagine agora a seguinte situação hipotética: 

João praticou crime contra registro de marca, previsto no art. 189, I, da Lei nº 9.279/96: 

Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou Informativo comentado (...) 

A vítima desse delito foi a empresa FS Ltda, que é a titular da marca. A situação foi descoberta em 20/02, quando, em uma fiscalização da Receita Federal, foram apreendidos, em poder de João, diversos produtos nos quais houve a imitação da marca. Apesar disso, neste primeiro momento, a empresa não tomou nenhuma providência. Em 20/09, a empresa pediu a realização de perícia nos produtos apreendidos. A perícia foi realizada e o laudo, constatando a imitação da marca, foi entregue em 01/10. Em 05/10, a empresa ofereceu queixa crime contra João. A defesa do querelado arguiu a decadência afirmando que a queixa deveria ter sido ajuizada em um prazo máximo de 6 meses, contados do conhecimento dos fatos. Isso com base no art. 38 do CPP: 

Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia. 

Como os fatos foram conhecidos em 20/02 e a empresa ajuizou a ação penal privada em 05/10, já teriam se passado os 6 meses, devendo ser reconhecida a decadência, com a extinção da punibilidade (art. 107, IV, do CP). A empresa refutou essa argumentação alegando que existe um prazo decadencial específico para os casos de crimes contra a propriedade imaterial. O art. 529 do CPP afirma que, depois que o laudo da perícia ficar pronto e for homologado, a vítima terá um prazo decadencial de 30 dias para oferecer a queixa crime: 

Art. 529. Nos crimes de ação privativa do ofendido, não será admitida queixa com fundamento em apreensão e em perícia, se decorrido o prazo de 30 dias, após a homologação do laudo. 

Assim, o art. 529 do CPP foi cumprido e ele exclui o prazo do art. 38 do CPP. 

A tese da empresa foi acolhida pelo STJ? NÃO. 

O prazo do art. 529 do CPP não afasta a decadência pelo não exercício do direito de queixa em seis meses, contados da ciência da autoria do crime. STJ. 6ª Turma. REsp 1.762.142/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 13/04/2021 (Info 692). 

O prazo decadencial previsto no art. 529 do CPP - 30 dias após homologação do laudo pericial - consubstancia norma especial, NÃO AFASTA a incidência do art. 38 do mesmo código (decadência em 6 meses contados da ciência da autoria do crime). Ambos os prazos convivem e devem ser aplicados. Desse modo, em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígio, a ciência da autoria do fato delituoso dá ensejo ao início do prazo decadencial de 6 meses, sendo tal prazo reduzido para 30 dias se homologado laudo pericial nesse ínterim. Exemplificando: 

• em 20/02, houve a ciência da autoria do fato delituoso. Isso significa que, neste dia, começou o prazo decadencial de 6 meses do art. 38 do CPP. 

• o “normal” seria esse prazo decadencial terminar em 20/08. 

• se, hipoteticamente, o laudo tivesse ficado pronto em 20/03, neste caso, o prazo da ofendida (empresa) seria reduzido e ela só teria mais 30 dias para ajuizar a queixa crime (terminaria por volta de 20/04, mais ou menos). 

Conforme explica a doutrina: 

(...) Saliente-se, ainda, que a ciência do ofendido da autoria de crime contra a propriedade imaterial faz desencadear o prazo decadencial de seis meses para a propositura da ação penal. Ocorre que, se tomar providências nesse prazo de seis meses, solicitando as diligências preliminares e o laudo for concluído, tem, a partir daí, 30 dias para agir. Neste prisma: Greco Filho (Manual de processo penal, p. 389); Tourinho Filho (Código de Processo Penal comentado, v. 2, p. 186); Espínola Filho (Código de Processo Penal brasileiro anotado, v. V, p. 218) (...) (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, ebook) 

(...) Em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígios, o art. 529, caput, do CPP, dispõe que, nos crimes de ação privativa do ofendido, não será admitida queixa com fundamento em apreensão e em perícia, se decorrido o prazo de 30 (trinta) dias, após a homologação do laudo. Não obstante o teor do referido dispositivo, pensamos que, a fim de compatibilizá-lo com o do art. 38 do CPP, continua válido o raciocínio de que o oferecimento dessa queixa não poderá ultrapassar o prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do conhecimento da autoria. Em síntese, conhecida a autoria do fato delituoso, o prazo decadencial de 6 (seis) meses começa a fluir. Iniciadas as diligências investigatórias e homologado o laudo pericial, o ofendido passa a dispor de 30 (trinta) dias para oferecer a queixa-crime. (...) (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 352) 

A adoção de interpretação distinta, de modo a afastar o prazo previsto no art. 38 do CPP em prol daquele preconizado no art. 529 do CPP, afigura-se desarrazoada, pois implicaria sujeitar à vontade de querelante o início do prazo decadencial. Isso porque o querelante, a qualquer tempo, mesmo que passados anos após ter tomado ciência dos fatos e de sua autoria, poderia pleitear a produção do laudo pericial, vindo a se reabrir, a partir da data da ciência da homologação deste elemento probatório, o prazo para oferecimento de queixa-crime. Desse modo, o que se verifica é que a exegese defendida vulnera a própria natureza jurídica do instituto (decadência), cujo escopo é punir a inércia do querelante. 



O MP pode escolher quais elementos obtidos na busca e apreensão serão utilizados pela acusação; no entanto, o material restante deve permanecer à livre consulta do acusado, para o exercício de suas faculdades defensivas

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/05/info-692-stj.pdf 


BUSCA E APREENSÃO - O MP pode escolher quais elementos obtidos na busca e apreensão serão utilizados pela acusação; no entanto, o material restante deve permanecer à livre consulta do acusado, para o exercício de suas faculdades defensivas 

Realizada a busca e apreensão, apesar de o relatório sobre o resultado da diligência ficar adstrito aos elementos relacionados com os fatos sob apuração, deve ser assegurado à defesa acesso à integra dos dados obtidos no cumprimento do mandado judicial. STJ. 6ª Turma. RHC 114.683/RJ, Rel. Rogério Schietti Cruz, julgado em 13/04/2021 (Info 692). 

Imagine a seguinte situação hipotética: 

Foi instaurada investigação para apurar crimes que teriam sido praticados por João e outras pessoas. Após representação da autoridade policial, o juiz deferiu medida cautelar de busca e apreensão a ser cumprida em diversos locais, dentre eles, na residência e no escritório de João. A polícia realizou relatório com o resultado da diligência. Este resultado foi compartilhado com a defesa. Ocorre que a defesa argumentou que foram obtidos inúmeros outros dados no cumprimento do mandado judicial aos quais ela não teve acesso, dentre eles, computadores, tablets, cartões de memória, pen-drives, celulares etc. O Ministério Público argumentou que foram juntados aos autos os elementos informativos que interessam aos fatos sob apuração, de forma que o restante que não foi anexado não tinha relação efetiva com a investigação. Ademais, o MP argumentou que muitos elementos colhidos estão relacionados com a intimidade dos demais investigados, razão pela qual não poderiam ser fornecidos. 

A defesa tem direito ao restante do material obtido no cumprimento da busca e apreensão? SIM. 

Realizada a busca e apreensão, apesar de o relatório sobre o resultado da diligência ficar adstrito aos elementos relacionados com os fatos sob apuração, deve ser assegurado à defesa acesso à integra dos dados obtidos no cumprimento do mandado judicial. STJ. 6ª Turma. RHC 114.683/RJ, Rel. Rogério Schietti Cruz, julgado em 13/04/2021 (Info 692). 

Segundo o enunciado da Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal: 

SV 14: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. 

Durante a fase do inquérito policial, o enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do STF expressa o direito de acesso pela defesa aos elementos de convicção já documentados pelo órgão com competência de polícia e que digam respeito ao exercício legítimo do direito de defesa. O STF, em julgado sobre o tema, detalhou em que consistiria o chamado “acesso amplo”, mencionado na súmula vinculante: 

(...) I – O direito ao “acesso amplo”, descrito pelo verbete mencionado, engloba a possibilidade de obtenção de cópias, por quaisquer meios, de todos os elementos de prova já documentados, inclusive mídias que contenham gravação de depoimentos em formato audiovisual. II – A simples autorização de ter vista dos autos, nas dependências do Parquet, e transcrever trechos dos depoimentos de interesse da defesa, não atende ao enunciado da Súmula Vinculante 14. (...) STF. 2ª Turma. Rcl 23.101/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 6/12/2016. 

Princípio da comunhão da prova 

O Ministério Público pode escolher quais elementos obtidos na busca e apreensão serão utilizados pela acusação. No entanto, o material restante, supostamente não utilizado, deve permanecer à livre consulta do acusado, para o exercício de suas faculdades defensivas. Essa é a ratio essendi da Súmula Vinculante nº 14 do STF. O Ministério Público juntou aos autos apenas aquilo que entendeu necessário para a imputação ministerial. Logo, é evidente que o acusado tem o direito de saber se, no restante do material apreendido, existe mais algum elemento que interesse à sua defesa. O órgão responsável pela acusação não pode ter a prerrogativa de escolher o material que irá ser disponibilizado ao réu, como se a ele pertencesse a prova. Na verdade, as fontes e o resultado da prova são de interesse comum de ambas as partes e do juiz (princípio da comunhão da prova). 

Lealdade processual 

A negativa do MP em disponibilizar acesso integral aos elementos colhidos não se ajusta à ideia da lealdade processual e fere de morte a igualdade de oportunidades que há de marcar a atividade estatal de reconstrução da verdade. 

E a intimidade dos demais investigados, não ficaria violada? 

A fim de resguardar a intimidade dos demais investigados em relação aos quais foi cumprida diligência de busca e apreensão, basta que se colha dos advogados o compromisso de não dar publicidade ao material examinado e que não interesse, direta ou indiretamente, à defesa de seu cliente. 

Dispositivo 

Em um caso parecido com o exemplo hipotético acima, o STJ deu provimento ao recurso em habeas corpus, para anular o processo referido na petição inicial desde o ato de recebimento da denúncia, de sorte a permitir à defesa a prévia consulta à totalidade dos documentos e objetos apreendidos em decorrência do cumprimento do mandado de busca e apreensão.

 




7 de maio de 2021

INTERCEPTAÇÃO DE DADOS. ASTREINTES. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE POR DECISÕES DO STF. APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC AO PROCESSO PENAL. MULTA DIÁRIA E PODER GERAL DE CAUTELA.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.568.445 - PR (2015/0296413-4) 

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ 

R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO RIBEIRO DANTAS


RECURSO ESPECIAL. INTERCEPTAÇÃO DE DADOS. ASTREINTES. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE POR DECISÕES DO STF. APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC AO PROCESSO PENAL. MULTA DIÁRIA E PODER GERAL DE CAUTELA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS. MEDIDAS CONSTRITIVAS SOBRE O PATRIMÔNIO DE TERCEIROS. BACEN-JUD E INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. PRESUNÇÃO RELATIVA DE LIQUIDEZ E CERTEZA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONTRADITÓRIO POSTERGADO. ANÁLISE ESPECÍFICA DO CASO CONCRETO. CUMPRIMENTO INTEGRAL. NÃO OCORRÊNCIA. PROPORCIONALIDADE DA MULTA APLICADA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 

1. Estes autos não cuidam da criptografia de ponta-a-ponta, matéria cuja constitucionalidade encontra-se sob análise do Supremo Tribunal Federal (ADI 5527, de relatoria da Min. Rosa Weber e ADPF 403, do Min. Edson Fachin). 

2. O Facebook Brasil é parte legítima para representar, nos Brasil, os interesses do WhatsApp Inc, subsidiária integral do Facebook Inc. “Com o fim de facilitar a comunicação dos atos processuais às pessoas jurídicas estrangeiras no Brasil, o art. 75, X, do CPC prevê que a pessoa jurídica estrangeira é representada em juízo 'pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil' e o parágrafo 3º do mesmo artigo estabelece que o 'gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo'. Considerando-se que a finalidade destes dispositivos legais é facilitar a citação da pessoa jurídica estrangeira no Brasil, tem-se que as expressões "filial, agência ou sucursal" não devem ser interpretadas de forma restritiva, de modo que o fato de a pessoa jurídica estrangeira atuar no Brasil por meio de empresa que não tenha sido formalmente constituída como sua filial ou agência não impede que por meio dela seja regularmente efetuada sua citação.” (HDE 410/EX, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2019, DJe 26/11/2019). A regras advinda do precedente não deve, no caso concreto, ficar restrita à possibilidade de citação e intimação, sem possibilitar a cominação de multa. Interpretação restritiva tornaria inócua a previsão legal, pois, uma vez intimada, bastaria à representante nada fazer. Portanto, a possibilidade das astreintes revela-se imperiosa até para que se dê sentido ao dispositivo. 

3. Conforme amplamente admitido pela doutrina e pela jurisprudência, aplica-se o Código de Processo Civil ao Estatuto processual repressor, quando este for omisso sobre determinada matéria. 

4. "A finalidade da multa é coagir (...) ao cumprimento do fazer ou do não fazer, não tendo caráter punitivo. Constitui forma de pressão sobre a vontade", destinada a convencer o seu destinatário ao cumprimento”. (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017, pp. 684-685). 

5. Aplica-se o poder geral de cautela ao processo penal, só havendo restrição a ele, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 444/DF, no que diz respeito às cautelares pessoais, que de alguma forma restrinjam o direito de ir e vir da pessoa. O princípio do nemo tenetur se detegere e da vedação à analogia in malam partem são garantias em favor da defesa (ao investigado, ao indiciado, ao acusado, ao réu e ao condenado), não se estendendo a quem não esteja submetido à persecução criminal. Até porque, apesar de ocorrer incidentalmente em uma relação jurídico-processual-penal, não existe risco de privação de liberdade de terceiros instados a cumprir a ordem judicial, especialmente no caso dos autos, em que são pessoas jurídicas. Trata-se, pois, de poder conferido ao juiz, inerente à própria natureza cogente das decisões judiciais. 

6. A teoria dos poderes implícitos também é fundamento autônomo que, por si só, justifica a aplicação de astreintes pelos magistrados no processo criminal. 

7. Sobre a possibilidade do bloqueio de valores por meio do Bacen-Jud ou aplicação de outra medida constritiva sobre o patrimônio do agente, é relevante considerar dois momentos: primeiramente, a determinação judicial de cumprimento, sob pena de imposição de multa e, posteriormente, o bloqueio de bens e constrições patrimoniais. No primeiro, o contraditório é absolutamente descabido. Não se pode presumir que a pessoa jurídica intimada, necessariamente, descumprirá a determinação judicial. Quando do bloqueio de bens e realização de constrições patrimoniais, o magistrado age em razão do atraso do terceiro que, devendo contribuir com a Justiça, não o faz. Nesse segundo momento, é possível o contraditório, pois, supondo-se que o particular se opõe à ordem do juiz, passa a haver posições antagônicas que o justificam. 

8. No caso concreto, o Tribunal local anotou que as informações requisitadas só foram disponibilizadas mais de seis meses após a quebra judicial do sigilo e expedição do primeiro ofício à empresa. Logo, não se verifica o cumprimento integral da medida. 

9. Em relação à proporcionalidade da multa, o parâmetro máximo de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) fixado por esta Corte em caso assemelhado, na QO-Inq n. 784/DF, foi observado. Assim, não merece revisão. 

10. Recurso especial desprovido. 

ACÓRDÃO 

Retomado o julgamento após o voto-vista antecipado divergente do Sr. Ministro Ribeiro Dantas, negando provimento ao recurso especial, tendo sido acompanhado pelos Srs. Ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Joel Ilan Paciornik, Laurita Vaz e Jorge Mussi, e o voto dos Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, dando parcial provimento ao recurso especial, a Terceira Seção, por maioria, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Ribeiro Dantas, que lavrará o acórdão. Votaram vencidos os Srs. Ministros Rogerio Schietti Cruz e Sebastião Reis Júnior. Votaram com o Sr. Ministro Ribeiro Dantas os Srs. Ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Joel Ilan Paciornik, Laurita Vaz e Jorge Mussi. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Felix Fischer e Antonio Saldanha Palheiro. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nefi Cordeiro. 

Brasília (DF), 24 de junho de 2020 (data do julgamento)

6 de maio de 2021

PRISÃO CIVIL DECORRENTE DE INADIMPLEMENTO DE ALIMENTOS FIXADOS A TÍTULO DE MEDIDA PROTETIVA, NO ÂMBITO DE AÇÃO PENAL DESTINADA A APURAR CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER.

RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 100.446 - MG (2018/0170173-4) 

RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE 

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DECORRENTE DE INADIMPLEMENTO DE ALIMENTOS FIXADOS A TÍTULO DE MEDIDA PROTETIVA, NO ÂMBITO DE AÇÃO PENAL DESTINADA A APURAR CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. 1. INOBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL. VERIFICAÇÃO. ANÁLISE, DE OFÍCIO, DA LICITUDE DO DECRETO PRISIONAL, EM RAZÃO DA MAGNITUDE DO DIRETO CONSTITUCIONAL DO WRIT. NECESSIDADE. 2. HIGIDEZ DA DECISÃO PARA SUBSIDIAR A IMEDIATA COBRANÇA JUDICIAL DA VERBA ALIMENTAR. RECONHECIMENTO. 3. NATUREZA SATISFATIVA DA MEDIDA (E NÃO ASSECURATÓRIA). DESNECESSIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS. RECONHECIMENTO. 4. SUBSISTÊNCIA DO DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS ENQUANTO PERDURAR A SITUAÇÃO DE HIPERVULNERABILIDADE, DESENCADEADA PELA PRÁTICA DE VIOLAÇÃO DOMÉSTICA E FAMILIAR. RECONHECIMENTO. 5. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR MANTIDA ATÉ A REVOGAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO QUE A FIXOU. NECESSIDADE. 6. RECURSO ORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. 

1. Não obstante a existência de vícios formais que obstam o conhecimento do recurso, dada a magnitude da garantia constitucional do habeas corpus, decorrente da proteção do direito à liberdade a que visa assegurar, impõe-se o exame de suas razões para constatação de eventual flagrante ilegalidade, apta a ensejar a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 

2. Controverte-se no presente recurso ordinário em habeas corpus, se a decisão proferida no processo penal — que fixa alimentos provisórios ou provisionais em favor da então companheira e de sua filha, em razão da prática de violência doméstica, estribada no art. 22, V, da Lei n. 11.340/2006 e, no caso dos autos, ratificada em acordo homologado judicialmente no bojo da correlata execução de alimentos — constitui título hábil para cobrança (e, em caso de inadimplemento, passível de decretação de prisão civil) ou se, para tal propósito, seria necessário o ajuizamento, no prazo de 30 (trinta) dias, de ação principal de alimentos (propriamente dita), sob pena de decadência do direito. 

3. A medida protetiva de alimentos, fixada por Juízo materialmente competente é, por si, válida e eficaz, não se encontrando, para esses efeitos, condicionada à ratificação de qualquer outro Juízo, no bojo de outra ação, do que decorre sua natureza satisfativa, e não cautelar. Tal decisão consubstancia, em si, título judicial idôneo a autorizar a credora de alimentos a levar a efeito, imediatamente, as providências judiciais para a sua cobrança, com os correspondentes meios coercitivos que a lei dispõe. Compreensão diversa tornaria inócuo o propósito de se conferir efetiva proteção à mulher, em situação de hipervulnerabilidade, indiscutivelmente. 

4. O inciso V do art. 22 da Lei n. 11.340/2006 faz menção a alimentos provisórios ou provisionais, termos que são utilizados, no mais das vezes, como sinônimos. Embora não o sejam tecnicamente, a diferença é apenas terminológica e procedimental, guardando entre si, na substância, inequívoca identidade, destinando-se a garantir à alimentanda, temporariamente, os meios necessários à sua subsistência, do que ressai a sua natureza eminentemente satisfativa, notadamente porque a correspondente verba alimentar não comporta repetição. Desse modo, à medida protetiva de alimentos (provisórios ou provisionais) afigura-se absolutamente inaplicável o art. 806 do CPC/1973 (art. 308 do CPC/2015), que exige o ajuizamento de ação principal no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de perda da eficácia da medida, já que não se cuida de medida assecuratória/instrumental. 

5. O entendimento que melhor se coaduna com os propósitos protetivos da Lei n. 11.340/2006 é o que considera subsistentes os alimentos provisórios e provisionais enquanto perdurar a situação de vulnerabilidade desencadeada pela prática de violência doméstica e familiar — e não, simplesmente, enquanto perdurar a situação de violência. 

5.1 O dever de prestar alimentos, seja em relação à mulher, como decorrência do dever de mútua assistência, seja em relação aos filhos, como corolário do dever de sustento, afigura-se sensivelmente agravado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse contexto de violência, a mulher encontra-se em situação de hipervulnerabilidade, na medida em que, não raras as vezes, por manter dependência econômica com o seu agressor — se não por si, mas, principalmente, pelos filhos em comum —, a sua subsistência, assim como a de seus filhos, apresenta-se gravemente comprometida e ameaçada. 

5.2 A par da fixação de alimentos, destinados a garantir a subsistência da mulher em situação de hipervulnerabilidade, o magistrado deve, impreterivelmente, determinar outras medidas protetivas destinadas justamente a cessar, de modo eficaz, a situação de violência doméstica imposta à mulher. Compreender que a interrupção das agressões, por intermédio da intervenção judicial, seria suficiente para findar o dever de prestação de alimentos (a essa altura, se reconhecido, sem nenhum efeito prático) equivaleria a reconhecer a sua própria dispensabilidade, ou mesmo inutilidade, o que, a toda evidência, não é o propósito da lei. A cessação da situação de violência não importa, necessariamente, o fim da situação de hipervulnerabilidade em que a mulher se encontra submetida, a qual os alimentos provisórios ou provisionais visam, efetivamente, contemporizar. 

5.3 A revogação da decisão que fixa a medida protetiva de alimentos depende de decisão judicial que reconheça a cessação de tal situação, cabendo, pois, ao devedor de alimentos promover as providências judiciais para tal propósito, sem o que não há falar em exaurimento da obrigação alimentar. 

6. Recurso ordinário não conhecido, inexistindo qualquer ilegalidade do decreto prisional impugnado que autorize a concessão da ordem de habeas corpus, de ofício. 

ACÓRDÃO 

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, não conhecer do recurso ordinário, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. 

Brasília, 27 de novembro de 2018 (data do julgamento). 

RELATÓRIO 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE: W. de L. S. interpõe recurso ordinário em contrariedade ao aresto prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que denegou a ordem de habeas corpus ali impetrado, mantendo-se, pois, o decreto prisional exarado pelo Juízo de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Monte Carmelo/MG, no bojo da ação de execução de alimentos que lhe foi promovida por sua filha, menor, L. de F. S., representada por sua genitora S. de F. O., por 90 (noventa) dias, ou até que fossem quitadas as parcelas vencidas nos 3 (três) meses anteriores à propositura da execução e também daquelas vencidas no curso do processo. 

Extrai-se dos elementos contidos nos autos que, no âmbito de ação criminal — destinada a apurar o cometimento de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher imputado ao ora recorrente, W. de L. S., consistente na agressão e na ameaça à sua então companheira, S. de F. O., tendo, inclusive, ateado fogo na residência do casal, em que a mulher e a filha, L. de F. S., se encontravam —, o Juízo criminal, em 23 de abril de 2010, além de decretar a prisão preventiva do acusado, impôs a medida protetiva prevista no inciso V do art. 22 da Lei 11.340/2006, determinando o pagamento de pensão alimentícia em favor de S. de F. O. e de sua filha, L. de F. S., no valor 70% (setenta por cento) do salário mínimo vigente na data do pagamento. 

A propósito, o teor do decisum: 

Os fatos narrados a f. 3-5, ao menos em sede de cognição sumária e convencimento provisório, configuram violência doméstica, nos termos do artigo 7º, da Lei n. 11.340/2006, e autorizam a imposição de medidas previstas no artigo 22, do mesmo diploma legal. Assim, defiro parte dos requerimentos de f. 7-8 e imponho ao Sr. Wemerson o pagamento de pensão alimentícia em favor da Srs. Simone e sua filha no valor correspondente a 70% (setenta por cento) do salário mínimo vigente na data do pagamento, mediante depósito em conta corrente a ser aberta em nome da representante legal do requerente ou em outra por ela indicada. Da mesma forma, e a fim de assegurar a ordem pública e por conveniência da instrução criminal, visto que o investigado, ao que parece, sempre agrediu e ameaçou a Sra. Simone, tanto que foi capaz de atear fogo na residência do casal com a sua mulher e a sua filha no interior do imóvel, decreto a prisão preventiva de Wemerson de Lima Souza, por entender presentes os requisitos do artigo 312, do Código de Processo Penal. Essa providência, salvo melhor juízo, torna desnecessárias aquelas elencadas no artigo 22, incisos II, III e IV, da Lei n. 11.340/2006. Expeça-se mandado de prisão. Intime-se e cumpra-se (e-STJ, fl. 17) 

Os alimentos provisionais fixados, do que se depreende dos autos, em momento algum foram quitados. 

Por tal razão, S. de F. O. e sua filha, L. de F. S., em 8/4/2013, promoveram perante o Juízo de Direito da 2ª Vara da Comarca de Monte Carmelo/MG ação de execução de alimentos, com fulcro no art. 732 do CPC/1973, em relação aos débitos pretéritos (somados no importe de R$ 16.768,96 — dezesseis mil, setecentos e sessenta e oito reais e noventa e seis centavos), e no art. 733 do CPC/1973, em referência aos débitos atuais (estes, no valor de R$ 1.406,58 — mil quatrocentos e seis reais e cinquenta e oito centavos), referentes aos três meses anteriores ao ajuizamento da ação, bem como aqueles que vencerem no curso da demanda, sob pena de prisão civil (e-STJ, fls. 11-13). 

Da decisão que decretou a prisão do executado, proferida em fevereiro de 2018, consta a afirmação de que foi concedido ao devedor diversas oportunidades para apresentar justificativa idônea, bem como para quitar o débito, inclusive por meio da efetivação de acordo, homologado judicialmente, o qual não foi por ele honrado integralmente. É o que se verifica dos fundamentos adotados por ocasião da referida decisão, integrada pelo decisum que julgou os subsequentes embargos de declaração: 

[...] Considerando que o executado devidamente intimado não pagou o débito, tampouco justificou a impossibilidade de fazê-lo (f. 71-v), a decretação da prisão é medida que se impõe. Com efeito, quanto à manifestação de fls. 104-06, descabido ao executado alegar que, 'entendeu que o processo se extinguiria com o pagamento das parcelas vencidas, uma vez que fizeram acordo sobre isso. Porém, para a sua surpresa, tomou conhecimento de que está novamente inadimplente'. (sic)(f.104)(g.n.). Em verdade o executado tivesse lido com a devida atenção ao acordo celebrado com a exequente às fl. 56-57, não estaria 'surpreso' com a sua inadimplência, pois, no referido acordo constou expressamente que, o 'não pagamento de quaisquer prestações, vencidas ou vincendas, acarretará o vencimento antecipado das subsequentes, autorizando a imediata cobrança do débito remanescente, sem a parda da natureza alimentar, possibilitando-se, pois, em eventual execução, a apreciação de requerimento de prisão civil' (sic)(f. 57). Ante o exposto, decreto a prisão do Sr. Wemerson de Lima Souza pelo prazo de 60 (sessenta) dias ou até que seja apresentado nos autos o pagamento integral dos valores em atraso (fs. 97-100), bem como as parcelas vencidas no curso do processo. (e-STJ, fls. 62) De fato, verifica-se que efetivamente na decisão de f. 109 não há obscuridade ou contradição; muito menos erro material ou omissão. Afinal, ao executado foi oportunizado o contraditório e a ampla defesa em várias oportunidades (fs.I9; 22; 23; 26; 29; 31: 32-3; 34-40; 41; 43; 44-6) e mesmo assim não efetuou o pagamento devido do débito alimentai; sendo decretada a sua prisão civil (f.55), tanto que o Sr. Wemerson de Lima Souza, para evitá-la, ainda celebrou acordo com a exequente (fs.56-8) e vinha cumprindo a avença regularmente (fs.67-v; 69; 70-v). E mesmo tendo sido oportunizado ao executado o pagamento integral do débito alimentar, inclusive o das prestações vencidas durante o curso do processo (Súmula n° 309, STJ), por capricho, o Sr. Wemerson de Lima Souza, simplesmente, descumpriu o acordo homologado judicialmente, efetuando o pagamento de parte do acordo firmado (fs.70;73-5; 71-v; 78-82; 83-95: 96-102). Dessa forma, não tendo cumprido o acordo de fs. 56-8 e ainda deixado de efetuar o pagamento das prestações vencidas durante o curso do processo, ocorreu a prisão civil do executado. Vale ainda consignar que é inadmissível a extinção do presente feito sob a alegação de que a "decisão proferida no processo penal de forma cautelar provisória, não é título hábil a ser utilizado para cobrar pensão alimentícia, por lapso temporal indeterminado... " (f. 111). Isso porque o C. Superior Tribunal de Justiça, em precedente relatado pelo Ministro Aldir Passarinho Júnior, já decidiu que a "decisão que fixa os alimentos provisórios produz efeitos imediatos, integrando ao patrimônio do alimentando um direito que, embora provisório, é existente, efetivo e juridicamente protegido. II. A sentença posterior que altera a situação jurídica regulada pelo provimento precário opera efeitos ex nunc. não podendo retroagir em prejuízo do alimentaste. Precedentes. " (REsp N° 834440/SP 2006/0062898-5 - T4 Quarta Turma; data do julgamento: 20/11/2008; data da publicação: DJe 15/12/2008 -g.n.). Ante o exposto, rejeito os embargos de declaração opostos por Wemerson de Lima Souza às fs.110-1. (e-STJ, fl. 61) 

Em contrariedade ao decreto prisional, Kélen Viana Silva (subscritora do recurso ordinário) impetrou em favor de W. de L. S. habeas corpus, ao argumento de que a decisão que fixou alimentos provisórios, proferida em ação penal, é inidônea para subsidiar ação de execução de alimentos, afigurando-se indispensável, para esse propósito, o ajuizamento de ação principal de alimentos, a viabilizar o contraditório (quanto ao binômio necessidade-possibilidade), no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência. 

O Desembargador relator indeferiu o pedido liminar, deixando assente não ter sido imposto nenhum limite de duração aos alimentos fixados, razão pela qual considerou que os alimentos provisórios fixados continuam sendo devidos. Assentou, ademais, que a decisão que decretou a prisão civil encontra-se lastreada no acordo homologado judicialmente que não foi integralmente honrado pelo devedor (e-STJ, fls..55-56). 

As informações prestadas pela autoridade reputada coatora, datada de abril de 2018, confirmam, in totum, os fatos até aqui aduzidos, noticiando, inclusive, que os mandados de prisão, por duas ocasiões expedidos, não foram, até então, cumpridos (e-STJ, fl. 58). 

Ao final, o Tribunal de origem, conforme relatado, denegou a ordem impetrada, reconhecendo a executividade da decisão judicial que fixou os alimentos provisórios, além da detida observância do enunciado n. 309 da Súmula do STJ (e-STJ, fls. 24-29). 

O aresto recebeu a seguinte ementa: 

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INADIMPLEMENTO. POSSIBILIDADE DE DECRETO DE PRISÃO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. DENEGADA A ORDEM. Admite-se a discussão em sede de habeas corpus de questões relacionadas à regularidade do procedimento e da cobrança dos alimentos. Tendo sido observadas, de forma regular, todas as fases no procedimento de execução de que cuida o artigo 528, do CPC/15, não tendo o executado quitado as parcelas devidas, não há falar em violência e/ou ilegalidade na possibilidade de decretação da prisão do alimentante, passível de reparação pela via estreita do habeas corpus. (e-STJ, fl. 215) 

Nas razões do presente recurso, sustenta o recorrente, em síntese, que a decisão proferida no processo penal, de forma cautelar e provisória, com esteio no art. 22, V, da Lei n. 11.340/2006, não é título hábil à cobrança por prazo indeterminado, afigurando-se necessário, para tanto, o ajuizamento, no prazo de 30 (trinta) dias, da ação principal de alimentos (propriamente dita), em que o contraditório e a ampla defesa poderão ser exercidos plenamente. 

Argumenta, assim, que "a ausência da ação principal de alimentos, a qual nunca foi impetrada pelas exequentes, e dos pagamentos já efetuados além do que foi determinado pelo lapso temporal da cautelar, o juiz não poderia requerer, nesse processo, a prisão civil do paciente, que tem como fundamento uma decisão interlocutória de caráter provisório cautelar, na qual a cautelaridade já se esvaiou" (e-STJ, fl. 269). 

Anota que "a obrigação de efetuar a pensão, conforme determinado na decisão interlocutória criminal por lapso temporal indeterminado, afronta os direitos do paciente à ampla defesa e ao contraditório" (e-STJ, fl. 269), em manifesta inobservância do art. 528, § 7º, do Código de Processo Civil de 2015 e da Súmula 309 do STJ. 

Pugna, liminarmente, pela revogação do mandado de prisão, ou ao menos, pela sua suspensão, até a análise do mérito do presente recurso ordinário. 

Por fim, requer "a confirmação no mérito da liminar pleiteada para que se consolide, em favor do paciente W. de L. S., a competente ordem de habeas corpus, para impedir o constrangimento ilegal que o mesmo vem sofrendo" (e-STJ, fl. 271). 

A Ministra Laurita Vaz, no exercício da Presidência do STJ, indeferiu o pedido liminar (e-STJ, fls. 37-40). Contra o decisum foi interposto agravo interno (e-STJ, fls. 43-48), pendente de julgamento. 

O Ministério Publico Federal ofertou parecer pelo não conhecimento do recurso ordinário, pela exposição dos seguintes motivos: i) a insurgência recursal foi apresentada diretamente perante esta Corte de Justiça; ii) não consta certidão da publicação do acórdão recorrido, o que impede a aferição da tempestividade do recurso; iii) ausência de instrumento procuratório; e iv) inexistência de ilicitude do decreto prisional, passível de ensejar a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 

É o relatório. 

VOTO 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR): Preliminarmente, conforme bem ponderado pelo Representante do Ministério Público Federal, o recurso ordinário, efetivamente, não possui condições processuais de ser conhecido. 

De início, consigna-se que o processamento do recurso ordinário constitucional há de observar o regramento estabelecido nos arts. 105, II, da Constituição Federal; 30 a 32 da Lei n. 8.038/90; 244 a 246 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça; e 994, V, c/c 1.027 e 1.028 do Código de Processo Civil de 2015. 

Segundo o ali disposto, a interposição do recurso ordinário em habeas corpus deve ser feita perante o Tribunal prolator do acórdão impugnado, que, após a intimação da parte recorrida a apresentar as contrarrazões, remeterá o feito a esta Corte Superior. 

Tal proceder, contudo, não foi observado pelo recorrente, que interpôs sua insurgência recursal diretamente perante esta Corte de Justiça, o que, por si só, impede seu conhecimento, na esteira da jurisprudência do STJ (ut AgRg no RHC 57.871/RJ, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 28/04/2015, DJe 06/05/2015; AgRg no RHC 63.626/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 07/06/2016). 

De igual modo, não foi acostado aos autos instrumento procuratório outorgado pela parte à subscritora do recurso (e-STJ, fl. 31), o que redundaria na própria inexistência do recurso, tampouco consta, nos elementos contidos no processo, certidão da publicação do acórdão recorrido, a obstar a aferição da tempestividade do recurso. Ainda que essas duas últimas irregularidades pudessem vir a ser sanadas pela parte, por meio de intimação para esse propósito, tem-se por despicienda a tomada de tal providência. 

Isso porque, não obstante a existência de vícios formais que obstam o conhecimento do recurso, dada a magnitude da garantia constitucional do habeas corpus, decorrente da proteção do direito à liberdade a que visa assegurar, impõe-se o exame de suas razões para constatação de eventual flagrante ilegalidade, apta a ensejar a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 

Essa medida, ressalta-se, é levada a efeito no caso de impetração de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário ou, como na espécie, na hipótese de interposição de recurso ordinário em habeas corpus não passível de conhecimento, na esteira da uníssona jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme corroboram os seguintes julgados: 

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INTEMPESTIVIDADE. CARACTERIZAÇÃO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. INVIABILIDADE NA ESPÉCIE. PRISÃO CIVIL. ALIMENTOS. ART. 733, § 1º, CPC. SÚMULA Nº 309/STJ. DÍVIDA ALIMENTAR. CAPACIDADE ECONÔMICA DO DEVEDOR. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. 1. À luz do art. 30 da Lei nº 8.038/90, o recurso ordinário em habeas corpus deve ser interposto no prazo de 5 (cinco) dias. 2. A decretação da prisão do alimentante, nos termos do art. 733, § 1º, do CPC, revela-se cabível quando não adimplido acordo firmado entre o alimentante e o alimentado no curso da execução de alimentos, nos termos da Súmula nº 309/STJ, sendo certo que o pagamento parcial do débito não elide a prisão civil do devedor. 3. O habeas corpus, que pressupõe direito demonstrável de plano, não é o instrumento processual adequado para aferir as condições econômico-financeiras do paciente, pois demandaria o reexame aprofundado de provas. 4. Recurso ordinário não conhecido. (RHC 41.852/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 05/11/2013, DJe 11/11/2013) - sem grifo no original 

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. RECURSO INTEMPESTIVO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIA DESNECESSÁRIA, IMPERTINENTE OU PROTELATÓRIA. POSSIBILIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O recurso foi interposto após o quinquídio legal. Todavia, malgrado a intempestividade recursal, impõe-se o exame de suas razões para constatação de eventual flagrante ilegalidade, apta a ensejar a concessão de ofício da ordem de habeas corpus. Precedentes. [...] Recurso ordinário em habeas corpus não conhecido. (RHC 87.342/PR, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 08/06/2018) - sem grifo no original 

PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. ART. 105, II, "A", CF/88. PENSÃO ALIMENTÍCIA. 1. O habeas corpus não é admitido como sucedâneo ou substitutivo de recurso ordinário, ex vi da disposição expressa do art. 105, II, "a", daCF/88. 2. A competência originária do STJ deve ser preservada em prol dos legitimados do art. 105, inc. I, "c", da CF/88, prestigiando-se, a um só tempo, a divisão de competências realizada pelo legislador constituinte, bem ainda a racionalização e simplificação do sistema recursal. 3. Evolução jurisprudencial encampada pela Suprema Corte, cuja adesão de entendimento pelo STJ também se presta ao alento do órgão jurisdicional precípua e constitucionalmente incumbido da guarda e exegese da Constituição. 4. Não verificada a presença de flagrante ilegalidade, não há se cogitar da concessão ex officio da ordem pleiteada. 5. É cabível a prisão civil do alimentante inadimplente em ação de execução contra si proposta, quando se visa ao recebimento das últimas três parcelas devidas a título de pensão alimentícia, mais as que vencerem no curso do processo. 6. O pagamento parcial do débito não afasta a possibilidade de prisão civil do alimentante executado. 7. Habeas Corpus não conhecido. (HC 258.607/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/08/2013, DJe 22/08/2013) - sem grifo no original. 

Passa-se, pois, a analisar a licitude do decreto prisional. 

Controverte-se, no presente recurso ordinário em habeas corpus, se a decisão proferida no âmbito de ação penal, que fixa alimentos em favor da então companheira e de sua filha, em razão da prática de violência doméstica, com fundamento no art. 22, V, da Lei n. 11.340/2006 e, no caso dos autos, no acordo homologado judicialmente no bojo da correlata execução de alimentos, constitui título hábil para cobrança — e, em caso de inadimplemento, passível de decretação de prisão civil — ou se, para tal propósito, seria necessário o ajuizamento, no prazo de 30 (trinta) dias, de ação principal de alimentos (propriamente dita), sob pena de decadência do direito, tal como sustenta o insurgente. 

Para efeito de exigibilidade da medida protetiva de alimentos, a alegada necessidade de ajuizamento de ação de alimentos perante a Vara da Família, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência, não encontra nenhum respaldo na lei de regência e refoge em absoluto da natureza e da finalidade da aludida verba alimentar. 

Mais que isso. A referida linha argumentativa se aparta, in totum, do norte interpretativo que deve ser levado a efeito na aplicação das disposições e dos novos institutos jurídicos trazidos pela Lei n. 11.340/2006, que é justamente conferir plena efetividade para a proteção à mulher submetida à situação de violência doméstica e familiar, propósito precípuo da lei. A esse propósito, aliás, dispõe seu art 4º, in verbis: na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. 

De plano, relevante consignar que se afigura absolutamente consonante com a abrangência das matérias outorgadas à competência da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher o deferimento de medida protetiva de alimentos, de natureza cível, no âmbito de ação criminal destinada a apurar crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Esta decisão, proferida por Juízo materialmente competente para fixar medida protetiva de alimentos, para sua validade e eficácia, não precisa, por óbvio, ser ratificada por outro Juízo, no bojo de outra ação, como pretende fazer crer o ora insurgente. 

A esse propósito, relevante assentar que o art. 14 da Lei n. 11.340/2006 estabelece a competência híbrida (criminal e civil) da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, para o julgamento e execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

O dispositivo legal em comento assim dispõe: 

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Constata-se, a partir da literalidade do artigo acima transcrito, que o legislador, ao estabelecer as competências criminal e cível da Vara Especializada de Violência Doméstica Contra a Mulher, não especificou quais seriam as ações que deveriam ali tramitar. De modo bem abrangente, preconizou a competência desse "Juizado" para as ações de natureza criminal e civil que tenham por causa de pedir, necessariamente, a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como para a execução de seus julgados. 

A amplitude da competência conferida pela Lei n. 11.340/2006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo-lhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato. Providência que, a um só tempo, facilita o acesso da mulher, vítima de violência doméstica, ao Poder Judiciário, e confere-lhe real proteção. 

Em interpretação acerca da abrangência da competência da Vara Especializada da Violência Doméstica ou Familiar Contra a Mulher nas ações de natureza civil (notadamente as relacionadas ao Direito de Família), esta Terceira Turma, por mais de uma ocasião, reconheceu, para seu estabelecimento, ser imprescindível que a causa de pedir da correlata ação consista justamente na prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher, não se limitando, assim, apenas às medidas protetivas de urgência previstas nos arts. 22, incisos II, IV e V; 23, incisos III e IV; e 24, da Lei n. 11.340/2006, que assumem natureza civil. 

Nessas oportunidades, reconheceu-se a relevância, para tal escopo, que, no momento do ajuizamento da ação de natureza cível, seja atual a situação de violência doméstica e familiar a que a demandante se encontre submetida, a ensejar, potencialmente, a adoção das medidas protetivas expressamente previstas na Lei n. 11.340/2006, sob pena de banalizar a competência das Varas Especializadas. Ressaltou-se, inclusive, que a competência para conhecer e julgar determinada ação resta instaurada por ocasião de seu ajuizamento, afigurando-se desinfluente, para tanto, superveniente alteração fática. Refiro-me aos julgados REsp 1.550.166/DF, Terceira Turma, julgado em 21/11/2017, DJe 18/12/2017; e REsp 1.496.030/MT, Terceira Turma, julgado em 06/10/2015, DJe 19/10/2015. 

Na espécie, a decisão que fixou tais alimentos foi prolatada por Juízo Criminal, que, em atenção ao art. 33 da Lei n. 11.340/2006, cumula as competências civil e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como para a execução de seus julgados, enquanto não estruturados os Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. 

É de se reconhecer, portanto, que a medida protetiva de alimentos, fixada por Juízo materialmente competente é, por si, válida e eficaz, não se encontrando, para esses efeitos, condicionada à ratificação de qualquer outro Juízo, no bojo de outra ação, do que decorre sua natureza satisfativa, e não cautelar. Tal decisão consubstancia, em si, título judicial idôneo a autorizar a credora de alimentos a levar a efeito, imediatamente, as providências judiciais para a sua cobrança, com os correspondentes meios coercitivos que a lei dispõe (perante o próprio Juízo). Compreensão diversa tornaria inócuo o propósito de se conferir efetiva proteção à mulher, em situação de hipervulnerabilidade, indiscutivelmente. 

No ponto, anota-se que o inciso V do art. 22 da Lei n. 11.340/2006 faz menção a alimentos provisórios ou provisionais, termos que são utilizados, no mais das vezes, como sinônimos. Embora não o sejam tecnicamente, a diferença é apenas terminológica e procedimental, guardando entre si, na substância, inequívoca identidade. 

Os alimentos provisórios são concedidos antecipadamente em ação de alimentos (ou cumulada com outras ações), regida pela Lei n. 5.478/1968, e dependem de prova pré-constituída da existência de vínculo de parentesco, de casamento ou de união estável. Já os alimentos provisionais, que tinham previsão no art. 852 do CPC/1973 (não reproduzido no CPC/2015), indevidamente nominados como medida cautelar, são deferidos em cognição sumária, sem a exigência de prova pré-constituída da existência de vínculo de parentesco, de casamento ou de união estável, até que, em outra demanda, reconheça-se a existência de obrigação alimentar. Diz-se indevidamente nominados como medida cautelar, pois os alimentos provisionais, na verdade, consubstanciam provimento de urgência de natureza satisfativa, voltada a atender, de modo imediato, a necessidade do demandante quanto a sua própria subsistência, cujo deferimento não comporta repetição. 

Na essência, como assinalado, os alimentos provisórios e provisionais não guardam diferença entre si, destinando-se a garantir ao alimentando, temporariamente, os meios necessários à sua subsistência, do que ressai a sua natureza eminentemente satisfativa, sobretudo porque a correspondente verba alimentar não comporta repetição. 

Desse modo, independentemente da espécie de alimentos não definitivos fixados (se provisórios ou se provisionais), os quais, como visto, não guardam, em si, a natureza assecuratória/instrumental, absolutamente inaplicável o art. 806 do CPC/1973 (art. 308 do CPC/2015), que exige o ajuizamento de ação principal no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de perda da eficácia da medida. 

De tal compreensão, autorizada doutrina não dissuade, inclusive com expressa referência à medida protetiva de alimentos prevista no art. 22 da Lei n. 11.340/2006: 

Os alimentos provisórios possuem natureza antecipatória, sendo concedidos em ações de alimentos (ou em outras ações que tragam pedido de alimentos de forma cumulativa), de forma liminar, initio litis, bastando que se comprove, de forma pré-constituída, a existência da obrigação alimentícia, conforme previsão do art. 4º da Lei n. 5.478/68. [...] Aliás, convém sublinhar que eles podem ser concedidos, inclusive, ex officio pelo magistrado, independentemente de pedido expresso do autor. Já os alimentos provisórios estão elencados como medida cautelar nominada, contemplada no art. 852 do Código de Processo Civil, embora possua nítida natureza satisfativa. Trata-se de medida topologicamente cautelar, porque está elencada dentre as medidas cautelares, embora não possua tal natureza assecuratória. Aliás, basta observar a natureza irrepetível dos alimentos para se inferir a natureza não-cautelar dos alimentos provisionais, uma vez que não se destinam a assegurar o resultado útil de um outro processo, mas satisfazer, imediatamente, as necessidade do autor. [...] Exatamente por força dessa natureza satisfativa, não-cautelar, não se aplica às ações de alimentos provisionais a exigência de propositura de ação principal no prazo de 30 dias, contida no art. 806 do Código de Processo Civil. [...] Serão concedidos os provisionais quando o interessado não tiver prova pré-constituída da existência da obrigação alimentar, não podendo pleitear alimentos provisórios em sede de ação de alimentos. [...] Não há, portanto, diferença substancial entre os institutos, significando, em ambas as hipóteses, a possibilidade de conceder, de logo, em caráter de urgência, alimentos a quem precisa. A distinção é mais terminológica e procedimental do que em relação à sua substância e natureza. Até porque ambos possuem a mesma finalidade, sendo concedidos temporariamente para garantir a quem precisa os meios suficientes à manutenção, até que seja proferida uma decisão fixando alimentos em caráter definitivo. [...] Confirmando a inexistência de diferença substancial entre os provisórios e os provisionais, vale a lembrança de que a Lei Maria da Penha, em seu art. 22, V, permite a fixação de alimentos, provisórios ou provisionais, a título de medida protetiva de urgência na sede do Juízado Especializado, diante de um episódio de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando já procedido o registro da ocorrência perante a autoridade policial. É, sem dúvida, mais uma firme demonstração da inexistência de diferença crucial em relação à natureza dos institutos. (DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nélson. Direito das Famílias. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. p. 821-823) 

Reconhecida, nesses termos, a higidez da decisão judicial que fixa os alimentos provisórios ou provisionais, a autorizar a imediata cobrança judicial, com os meios coercitivos pertinentes previstos em lei, não se pode deixar de assentir que tais alimentos, por definição, afiguram-se temporários. De tal constatação advém a indagação de qual seria o termo final para que estes alimentos, provisórios ou provisionais, deixem de ser exigíveis. 

Naturalmente, caso os alimentos se tornem definitivos, a sentença que assim os reconheça passa a ser o fundamento de validade para tal cobrança. Porém, enquanto esta não sobrevém, de suma importância identificar qual é a circunstância fática que autoriza a permanência da vigência da medida protetiva de alimentos em favor da mulher, vítima de violência doméstica e familiar. 

Sem descurar da existência de controvérsia na doutrina nacional, tem-se que o entendimento que melhor se coaduna com os propósitos protetivos da Lei n. 11.340/2006 é o que considera subsistentes os alimentos provisórios e provisionais enquanto perdurar a situação de vulnerabilidade desencadeada pela prática de violência doméstica e familiar — e não, simplesmente, enquanto perdurar a situação de violência. 

Ainda que se afigure elementar, a fixação de alimentos, como toda medida protetiva prevista no art. 22 da Lei n. 11.304/2006, possui como pressuposto lógico a exposição da mulher à situação de violência doméstica e familiar. 

Consigna-se que o dever de prestar alimentos, seja em relação à mulher, como decorrência do dever de mútua assistência, seja em relação aos filhos, como corolário do dever de sustento, afigura-se sensivelmente agravado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Isso porque, nesse contexto de violência, a mulher encontra-se em situação de hipervulnerabilidade, na medida em que, não raras as vezes, por manter dependência econômica com o seu agressor — se não por si, mas, principalmente, pelos filhos em comum —, a sua própria subsistência, assim como a de seus filhos, apresenta-se gravemente comprometida e ameaçada. Esta circunstância fática, aliás, entre inúmeras outras, induzem a mulher, vítima de constragimentos de toda ordem no ambiente doméstico, a muitas vezes silenciar-se, o que tem o condão de somatizar e potencializar o sofrimento ao qual se encontra submetida. 

Nessa medida, enquanto a mulher se encontrar em situação de vulnerabilidade, desencadeada pela agressão doméstica, os alimentos provisórios ou provisionais fixados a título de medida protetiva continuam a ser devidos e exigíveis. Com a vênia daqueles que compreendem de modo diverso, adotar como marco, para efeito de findar o dever de prestar alimentos provisórios ou provisionais, a cessação da violência, seria o mesmo que tornar inócua a referida medida protetiva de alimentos. 

A par da fixação de alimentos provisórios ou provisionais, destinada a garantir a subsistência da mulher em situação de hipervulnerabilidade, o magistrado deve, impreterivelmente, determinar outras medidas protetivas destinadas justamente a cessar, de modo eficaz, a situação de violência doméstica imposta à mulher. Compreender que a interrupção das agressões, por intermédio da intervenção judicial, seria suficiente para findar o dever de prestação de alimentos (a essa altura, se reconhecido, sem nenhum efeito prático) equivaleria a reconhecer a sua própria dispensabilidade, ou mesmo inutilidade, o que, a toda evidência, não é o propósito da lei. 

A cessação da situação de violência não importa, necessariamente, o fim da situação de hipervulnerabilidade em que a mulher se encontra submetida e a qual os alimentos provisórios ou provisionais visam, efetivamente, contemporizar. Portanto, enquanto perdurar a situação de hipervulnerabilidade, desencadeada pela violência doméstica e familiar contra a mulher, os alimentos provisórios ou provisionais continuam devidos e exigíveis. 

Esta é, como visto, a circunstância fática que autoriza a permanência da vigência da medida protetiva de alimentos em favor da mulher, vítima de violência doméstica e familiar. Evidentemente, a sua revogação depende de decisão judicial que reconheça a cessação de tal situação. Cabe, pois, ao devedor de alimentos promover as providências judiciais cabíveis para a revogação da decisão deferitória, sem o que não há falar em exaurimento da obrigação alimentar. 

Nessa linha de entendimento, destaca-se o seguinte excerto doutrinário: 

Em relação à esposa e à companheira, a obrigação alimentar decorre do dever de mútua assistência. Frente aos filhos, o dever de sustento situa-se no âmbito do poder familiar. Apesar da falta de clareza da lei e dos desencontros da doutrina, que provam decisões divergentes, impositivo reconhecer que os alimentos são devidos desde a data em que são fixados, e antecipadamente, pois de todo descabido aguardar o decurso do prazo de um mês para que ocorra o pagamento. [...] Sustenta Fredie Didier que deferidos alimentos, cessada a violência, deixa de existir fundamento para a sua manutenção. Neste caso, a fixação de nova prestação depende do ajuizamento de ação própria perante o juízo da família. Não lhe assiste razão. Não há como sujeitar alimentos à condição resolutiva, qual seja o fim da violência. Caberia questionar sobre a forma de buscar a cessação do encargo alimentar. Claro que este encargo é do próprio alimentante que tem que provar que, com o fim da violência cessou a necessidade dos alimentos. De qualquer modo, deferidos alimentos, a ofendida não precisa propor ação principal no prazo de 30 dias. Indeferida a pretensão alimentar em sede de medida protetiva de urgência, nada impede que o pedido seja levado a efeito por meio da ação de alimentos perante o juízo cível (DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2012. p. 156-157) 

Na hipótese dos autos, conforme consignado pelo Tribunal de origem, não há nenhum julgado que tenha, até o presente momento, revogado a decisão que fixou os alimentos provisórios e provisionais, do que ressai a conclusão, inexorável, da vigência e obrigatoriedade da obrigação alimentar. 

Ainda segundo a moldura fática delineada nos autos, os débitos alimentares que ensejaram a decretação da prisão civil são aqueles considerados atuais, em detida atenção ao enunciado n. 309 da Súmula do STJ, o que evidencia a conformidade do decreto prisional com a lei. É certo, inclusive, que o devedor de alimentos subscreveu acordo, homologado judicialmente, no bojo da ação de execução de alimentos, sem promover a sua quitação integral, a revelar a recalcitrância em cumprir a obrigação alimentar para com as alimentadas e, por consequência, a correção da prisão civil determinada. 

Saliente-se, a esse propósito, que a prisão civil, como decorrência do inadimplemento da medida protetiva de alimentos (atuais), não exclui outras, notadamente de viés criminal que deste mesmo fato possa advir (art. 40 da Lei n. 11.340/2006). 

Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, não conheço do presente recurso ordinário, inexistindo qualquer ilegalidade do decreto prisional impugnado que autorize a concessão da ordem de habeas corpus, de ofício. 

É o voto.