13 de setembro de 2017

A TEORIA DOS PRECEDENTES COMO UMA TEORIA NORMATIVA DA JURISDIÇÃO, Revista de Processo, vol. 272/2017, p. 375 - 396, Out / 2017

A TEORIA DOS PRECEDENTES COMO UMA TEORIA NORMATIVA DA JURISDIÇÃO

Theory of precedents as a normative theory of adjudication
Revista de Processo | vol. 272/2017 | p. 375 - 396 | Out / 2017
DTR\2017\5941
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Ramon Ouais Santos
Procurador do Estado do Paraná. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Processo Civil. ramon.juristas@gmail.com

William Soares Pugliese
Professor Substituto de Direito Constitucional e Teoria do Estado da Faculdade de Direito da UFPR (2015-2017). Doutor em Direitos Humanos e Democracia pelo PPGD-UFPR. Mestre em Direito das Relações Sociais PPGD-UFPR. Gastforscher no Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht. Coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná (OAB/PR). Advogado. william@lxp.adv.br.

Área do Direito: Constitucional; Civil; Processual

Resumo: O presente artigo propõe que o desenvolvimento de uma teoria dos precedentes incorpora uma percepção do papel dos juízes no Estado Constitucional e, nesse sentido, consiste em uma teoria normativa da jurisdição.

 Palavras-chave:  Precedentes - Jurisdição - Teoria do direito

Abstract: This article proposes that the development of a precedent’s theory embodies a perception of the role of the judges in the Constitutional Rule of Law and, in this sense, yields some kind of adjudication’s normative theory.

 Keywords:  Precedents - Adjudication - Jurisprudence

Sumário:  
1Introdução - 2A jurisdição no Estado Constitucional - 3Precedentes judiciais e stare decisis - 4A contribuição do positivismo hartiano - 5A doutrina brasileira dos precedentes - 6Tese jurídica, ratio decidendi e o poder de distinguishing - 7Conclusão - 8Referências


1 Introdução

O discurso de que precedentes obrigam de algum modo e em algum grau ensejou, nos últimos anos, vasta produção acadêmica no Brasil. Parte da perplexidade que o debate sobre precedentes causou decorre da meditação incipiente sobre como a jurisdição pode desenvolver o direito. Majoritariamente, tem-se sustentado que as Cortes desenvolveriam o direito mediante teses jurídicas formadas, sobretudo, em decisões em recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas e ações diretas de inconstitucionalidade, replicáveis em casos futuros muito similares.
Embora não esteja completamente equivocada, essa concepção esvazia a tarefa justificatória das Cortes, porque atribui, gratuitamente, a vinculação do precedente à legitimação pelo procedimento judicial, independentemente da argumentação jurídica desenvolvida. Desse modo, não atribui o devido valor à circunstância de que a vinculação pelo precedente está conectada a certos ideais que devem ser promovidos pela jurisdição.
Este artigo propõe que a sistematização das regras que governam a argumentação mediante precedentes pode constituir uma teoria parcial da jurisdição, na medida em que estabelece padrões normativos à atividade de interpretar e de justificar decisões judiciais, bem como explica adequadamente como as Cortes desenvolvem o direito.

2 A jurisdição no Estado Constitucional

Em geral, os processualistas pátrios reputam a jurisdição o conceito central – ou o eixo metodológico – da ciência processual.1 Diante disso, seria razoável supor que estivessem diuturnamente reelaborando suas concepções acerca da jurisdição, bem como atualizando os desafios das doutrinas clássicas aos problemas próprios do nosso tempo.
O que se verifica no Brasil, todavia, é um déficit de reflexão sobre a função jurisdicional.2 Boa parte dos manuais adota, com breves adaptações, a teoria de Chiovenda, sem romper com a intuição original, menos ainda com a pauta de considerações subjacentes a ela. Basta perceber que os problemas enfrentados pelas exposições sobre jurisdição seguem o roteiro chiovendiano: (a) diferençar as funções estatais, tendo em vista os regimes jurídicos das atividades jurisdicional e administrativa; (b) qualificar a execução como atividade jurisdicional; (c) discutir se jurisdição voluntária consiste em atividade jurisdicional ou administrativa.
Não se questiona o valor da doutrina chiovendiana. Entretanto, os problemas visados por uma teoria formam seu horizonte de respostas. No caso de Chiovenda, o problema que a sua teoria objetivava solucionar concerne à distinção entre as funções administrativa e jurisdicional3, já que ambas aplicam o direito preexistente.
Para o mestre italiano, a administração pública atua sua vontade em conformidade com a lei. A jurisdição, por sua vez, atua a vontade da lei (e não a sua própria) em substituição à das partes.4 Chiovenda apostava no caráter sistemático dos ordenamentos jurídicos escritos para tornar possível a descoberta da vontade da lei.5 Ainda que um fato não esteja diretamente coberto por uma norma jurídica, seria possível, através da analogia ou dos princípios gerais de direito, ampliar o alcance da lei para situações por ela não expressamente previstas. Se, ainda assim, o pleito carecesse de suporte em norma, declarar-se-ia a vontade negativa de lei, isto é, a improcedência do pedido.6 Trata-se de uma versão do formalismo interpretativo.
Ocorre que, pelas marcantes diferenças entre o Estado de Direito clássico e o Estado Constitucional, o formalismo interpretativo tornou-se uma teoria em descrédito nos dias de hoje.
No Estado de Direito do século XIX e do início do século XX, o princípio da legalidade ocupava uma posição central, na medida em que estabelecia os direitos que as pessoas tinham. Ressalvada a matriz jusnaturalista, não se imaginava a possibilidade de que os indivíduos pudessem ter direitos preexistentes à própria lei. Além disso, a lei era fruto da vontade de uma casta social delimitada, encerrando valores homogêneos, o que facilitava a sustentação teórica de plenitude do ordenamento jurídico.7 Ao estabelecer limites à atividade legislativa, o Estado Constitucional relativizou a centralidade do princípio da legalidade. A lei perdeu a capacidade de delimitar, em caráter exaustivo, os direitos. Com a assunção de novos serviços públicos e finalidades pelo Estado, a administração pública passou a atuar, em variadas circunstâncias, com base em normas gerais, a exemplo da regulação da ordem econômica e da proteção do meio ambiente.
Outra diferença marcante do Estado Constitucional é a redução da generalidade e da abstração das leis. No que toca à generalidade, verifica-se a existência de leis destinadas a grupos específicos de pessoas (crianças e adolescentes, idosos, consumidores etc.).
No que toca à abstração, a realidade do Estado Constitucional é ainda mais desafiadora. Em primeiro lugar, existe vasta heterogeneidade de conteúdo nas leis, que deixam de ser o resultado da confluência de valores homogêneos, passando a ser causa de instabilidades sociais. Em segundo lugar, os Estados contemporâneos são marcados pelo fenômeno da contratualização da lei, em que “a maioria legislativa política é substituída (...) por coalizações legislativas de interesses mutáveis, que operam mediante o sistema do ‘dou para que tu dês’”.8
Diante dos novos desafios postos ao Estado Constitucional, parece ingênua a aposta na plenitude e na coerência como propriedades do sistema jurídico. Os variados desenvolvimentos em torno da distinção entre texto e norma9 e do pós-positivismo10 já revelaram a improficuidade dessas abordagens teóricas.
Não obstante, a superação do formalismo gerou um vácuo teórico em nossas concepções de jurisdição. Isso porque o formalismo interpretativo é uma teoria jurídica que sugere os limites e os objetivos da jurisdição, tendo capacidade de prescrever, ainda que implicitamente, o que juízes devem e o que não devem fazer. A passagem das teorias formalistas para aquelas que flertam com a criatividade judicial exige preocupações adicionais com a função jurisdicional, do contrário se concedem poderes desprovidos de padrões que estabeleçam limites e responsabilidades.
Quer se goste, quer não, o debate sobre precedentes reacendeu as grandes questões inerentes à jurisdição. Afinal, teorizar sobre a força do precedente situa-se na intersecção de campos muito distintos entre si e vastos em suas próprias amplitudes, tais como os direitos processual e constitucional e a teoria do direito.
Uma teoria sobre precedentes judiciais constitui, ainda que de forma incompleta, uma teoria da jurisdição, porque supre, em parte, a lacuna gerada pelo abandono do formalismo interpretativo, desenvolvendo padrões normativos para regular a justificação. Esse é o argumento que se passa a desenvolver nos itens subsequentes.

3 Precedentes judiciais e stare decisis

Na linguagem comum, usamos o termo precedente para referir a um evento do passado que, no momento de sua ocorrência, constituiu uma novidade. Quando Bento XVI renunciou ao papado, abriu-se um precedente na história da Igreja Católica. Nesse sentido, o precedente é o exemplo de um fato até então inédito.
No universo jurídico, precedente não traduz apenas uma decisão que enfrentou, pela primeira vez, determinada questão a partir de determinado enfoque. Ao menos implicitamente, imputar a uma decisão judicial a qualidade de precedente gera no interlocutor a expectativa de que as razões ali consagradas possam influenciar outros julgadores.11 Uma decisão estapafúrdia, incompreensível ou extremamente pobre em suas razões pode até ser um evento inovador, mas dificilmente será qualificada como um modelo que deve ser seguido.
Lançadas essas bases prefaciais, precedentes podem ser descritos como decisões do passado que funcionam como modelo para decisões do futuro. Por isso, reconhecer autoridade em uma decisão como guia para resolver um problema atual implica um jogo de olhar entre o caso do agora e aquele já decidido.12
Raciocinar a partir de precedentes não constitui a única forma de extrair saberes úteis do passado. Em um exemplo lúdico, Neil Duxbury conta que a sua filha caçula, ao completar 11 anos, lhe pediu um celular de presente. Seu argumento refletiu um raciocínio por precedente: a irmã mais velha, no 11ª aniversário, havia sido presenteada com um celular. Se o presente é negado sob o argumento de que não foi bom para a irmã mais velha haver ganhado o celular aos 11 anos, não se estará decidindo com base no precedente, mas com base na experiência. Trata-se de outra forma de extrair sabedoria do passado.13
A distinção não é trivial. O precedente obrigatório deve ser observado independentemente de o aplicador reputá-lo bom ou ruim, justo ou injusto. Em princípio, somente nos casos de overruling (revogação) e de distinguishing (distinção) o precedente não será seguido. Mesmo assim, seja para distinguir, seja para superar, permanece um dever de sério enfrentamento. Essa é, em termos simplistas, a doutrina do precedente vinculante ou do stare decisis et non quieta movere (respeitar o que já foi decidido e não perturbar o que está estabelecido).
Não seria correto fundamentar a doutrina dos precedentes vinculantes apenas na relação hierárquica entre Cortes. Por trás da ideia de que decisões do passado obrigam futuros julgadores existe um apelo à coerência, à estabilidade, à igualdade e à segurança.
Se dois juízes bem intencionados e com vasta bagagem jurídica podem chegar a conclusões distintas sobre o mesmo caso, é sinal de que a objetividade no plano da interpretação não tem sido uma empreitada de sucesso. Por isso, doutrinas do precedente estão imbuídas de um pragmatismo que obtém suporte na realidade: o direito admite múltiplas versões, sendo pouquíssimo provável alcançar os ideais de igualdade, coerência, estabilidade e segurança jurídica sem respeito às decisões do passado.

4 A contribuição do positivismo hartiano

Mesmo no direito inglês, em que se contempla com mais clareza uma doutrina dos precedentes, chegou-se a sustentar que a atividade jurisdicional teria por função descobrir o direito nos usos e costumes. Trata-se da chamada teoria declaratória da jurisdição, segundo a qual as decisões seriam evidências do que o common law é.14
De acordo com Rupert Cross e J. W. Harris, a teoria declaratória inviabilizava tanto a vinculação – no sentido de obrigatoriedade – às decisões pretéritas, como a efetividade da revogação do precedente, uma vez que juízes sempre poderiam considerar a decisão revogada como tendo valor de evidência do que o direito é.15
O positivismo jurídico clássico contribuiu, ao menos indiretamente, com a construção da teoria dos precedentes obrigatórios, sobretudo por haver demonstrado as inconsistências da função declaratória da jurisdição.16 Com isso, desvelou-se que o direito não é inteiramente determinado pelas normas preexistentes.
Não obstante, somente em 1961, com a publicação de O conceito de direito de H. L. A Hart, o positivismo jurídico conseguiu desenvolver ferramental teórico capaz de explicar como precedentes podem obrigar sem haver regra escrita no direito inglês17 com tal conteúdo. Nesse ponto, faz-se necessária breve incursão no pensamento hartiano.
Para Hart, qualquer tentativa de conceituar o direito mediante uma construção canônica de palavras (“o direito é...”) tende a falhar, porque definições implicam, no mais das vezes, situar o objeto a ser definido em uma categoria mais ampla.18 Para definir o que é automóvel, por exemplo, apela-se ao gênero veículo, que contém outras espécies (motos, carroças, bicicletas etc.). O sentido da definição é identificar o gênero a que pertence o objeto, adicionando-se predicados específicos para individualizá-lo. Assim, identificando o gênero (veículo) e acrescentando qualidades (movimentar-se sobre rodas, ter motor etc.), delineia-se o conceito (automóvel).
O problema é que o direito não é uma espécie contida em um gênero. Desse modo, a estratégia de Hart foi cotejar o direito com a moral e com a coerção (ordens com base em ameaças19), porque os três fenômenos têm em comum o fato de restringir a facultatividade de comportamentos.
Hart observou que, diante de ordens com base em ameaças, as pessoas tendem a aderir ao comportamento ordenado não por reputá-lo justo ou correto, mas para prevenir a privação de um bem que lhe seja mais valioso (a vida, a integridade física). O grau de probabilidade de obedecer à ordem varia de acordo com a maior ou menor crença da vítima quanto à seriedade da ameaça.20 Ou seja, o que explica como a coerção restringe a facultatividade de comportamentos não é senso algum de normatividade, mas aspectos psicológicos que funcionam como motivos para aderir ao comportamento exigido pela ordem. Nesse ponto, a expressão “ser obrigado a” é a que melhor descreve o fenômeno da coerção.
Quando se transita do campo das razões psicológicas para o das razões deontológicas, torna-se necessário introduzir o conceito de regra social. Para Hart, regras possuem um componente normativo (a ideia de que se deve fazer algo) e outro empírico, que é a constituição de práticas seguidas pelas pessoas. Há um grupo de regras sociais que apelam para a normatividade em um sentido mais forte do que o dever. As regras morais e as jurídicas, na medida em que são secundadas por fortes pressões sociais, geram obrigações. O comportamento desviante passa a ser objeto de severa crítica sob um viés normativo, isto é, a crítica de que não se fez o que se tinha a obrigação de fazer.
Direito e moral são compostos por normas que proíbem condutas, chamadas por Hart de regras primárias. No entanto, a descrição dos ordenamentos jurídicos atuais exige a identificação das regras secundárias, que se desdobram em três modalidades: a) regra de reconhecimento, que estabelece os critérios para reconhecer o que vale como norma jurídica; b) regras de modificação, que atribuem poderes para alterar o ordenamento; e c) regras de julgamento, que atribuem poderes a autoridades para resolver conflitos.21
O positivismo hartiano permite-nos sustentar que os juízes ingleses reconhecem a existência de uma regra jurídica que os obriga a seguir precedentes. Não observar precedentes torna-se, desse modo, objeto de severa crítica sob uma perspectiva normativa e institucionalizada, ainda que não exista uma sanção funcional para o comportamento desviante.22

5 A doutrina brasileira dos precedentes

No imaginário dos profissionais do direito brasileiro, a “doutrina23 dos precedentes” poderia ser resumida em quatro proposições: (i) precedentes são decisões dos Tribunais que desenvolvem teses aplicáveis a causas idênticas, isto é, causas com fatos essenciais muito assemelhados; (ii) ratio decidendi consiste no núcleo da fundamentação da decisão judicial; (iii) distinguishing é a atividade de demonstrar que determinado caso não é igual ao que gerou ou ao que ainda vai gerar o precedente; (iv) existem determinados procedimentos vocacionados à formação de teses jurídicas e, a reboque, à formação de precedentes.
Daremos quatro exemplos de como as proposições acima destacadas funcionam.
Em primeiro lugar, o valor de precedente tem sido pensado no Brasil a partir do resultado da demanda, e não da argumentação que embasa o julgamento. Essa perspectiva fica bastante clara no cotejo entre os julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.026 e do Recurso Extraordinário 595.332.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.026, o STF havia decidido que a OAB não estava obrigada a recrutar seus empregados mediante concurso público, porque não era autarquia, e sim serviço público independente de natureza sui generis. A partir dessa decisão, alguns juízes e doutrinadores passaram a sustentar que, por coerência, as causas da OAB não poderiam mais ser julgadas na Justiça Federal.24 Apesar da controvérsia, o entendimento dominante no STJ era o de que a decisão do Supremo não havia modificado o cenário: as causas da OAB permaneceriam sendo julgadas pela Justiça Federal.
Em 2016, o STF julgou o RE 595.332, confirmando que as ações propostas envolvendo a OAB devem ser julgadas na Justiça Federal. O fundamento apresentado no voto do Ministro Relator, conforme se colhe do Informativo 837, é o de que a OAB seria autarquia corporativa. Como se vê, existe uma contradição entre os fundamentos da ADI 3.026 e do RE 595.332. Essa contradição seria bastante relevante se o valor de precedente no Brasil não estivesse se fixando como um conjunto canônico de palavras, que praticamente repete o resultado do julgamento. Para respeitar o “precedente”, é irrelevante observar como se chegou ao raciocínio de que a OAB seria uma autarquia corporativa, porque a dimensão em que o “precedente” será utilizado como modelo para casos futuros é a idêntica ao caso original, qual seja, identificar a Justiça competente para dirimir controvérsias envolvendo a OAB.
O problema é que essa tese – OAB como autarquia corporativa – é incoerente com outras soluções dadas em relação a essa entidade sui generis (que era o fundamento da ADI 3.026). Se as demais autarquias corporativas cobram na Justiça as anuidades inadimplidas mediante execução fiscal, por que a OAB não se vale do mesmo mecanismo de cobrança? Não há resposta a essa pergunta, porque os Tribunais não estão preocupados em ser coerentes. É provável que razões puramente consequencialistas hajam guiado a decisão do RE 595.332, ao custo de lamentáveis incoerências sistêmicas.
Isso demonstra que, conquanto a palavra ratio decidendi tenha ingressado no vocabulário do jurista brasileiro, ela serve para pouca coisa. Não há confiança de que, a partir das razões do julgado x, seja possível prever como a Corte julgará o caso y, que, embora distinto na configuração fática, demande o enfrentamento dos mesmos institutos e conceitos jurídicos. O “precedente” não vale pelo desenvolvimento que realiza, isto é, pelo modo como articula argumentos jurídicos, mas pela conclusão alcançada, que é convertida em um arranjo de palavras na forma de uma “tese” jurídica abstrata.
O termo distinguishing foi assimilado no Brasil como mera distinção entre casos. Quando, por exemplo, o STJ afeta determinada matéria ao rito dos recursos repetitivos, os processos que versem sobre idêntica questão devem ser sobrestados. Se, todavia, o processo sobrestado versar sobre outra questão, pode-se argumentar pela distinção como fundamento para destrancar a causa. Nota-se que a atividade de distinguir não se dá em relação à aplicação do precedente, que, em alguns casos, sequer está formado. Trata-se de distinção para fins de não submissão a determinado rito de coletivização de julgamentos.
A quarta proposição indica que determinados procedimentos formam precedentes (ações de controle abstrato de constitucionalidade, repercussão geral, recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas). Sem dúvida, o processo decisório pode ser um fator muito relevante para qualificar uma decisão como precedente. Mas isso não assegura o valor de precedente a uma decisão. A ideia de precedentes não se deixa capturar apenas por aspectos formais, havendo a necessidade de verificar se a decisão goza de qualidades intrínsecas que geram na comunidade jurídica a expectativa de que se manterá estável. Para citar um exemplo, a existência de fundamentos jurídicos compartilhados pela maior parte dos julgadores é um elemento substancial (não formal) que indica o valor de precedente. Em outras palavras, a autoridade do precedente não pode ser explicada por um único fator, a exemplo do processo decisório.
Calha referir, brevemente, que Michele Taruffo, ao distinguir o precedente da jurisprudência, aponta não só para a diferença quantitativa, mas também para uma diferença qualitativa, que diz respeito ao modo como precedentes permitem uma maior atenção aos fatos.25
É óbvio que essa diferença qualitativa – que, a nosso sentir, não é a única – não pode ser aposta por uma mera vontade da lei. Trata-se de uma diferença que diz respeito ao modo como se argumenta a partir de precedentes. Por isso, a solução de atribuir efeitos a decisões judiciais (vide os artigos 311 e 332 do CPC (LGL\2015\1656)) é uma opção legislativa de gestão processual. Isso não torna tais decisões automaticamente equiparáveis a precedentes, porque elas não necessariamente apresentam as características materiais relevantes.
A “doutrina brasileira do precedente” está mais comprometida com a solução de conflitos massificados e com a gestão dos processos do que com a exigência de que o direito produzido pelas Cortes seja racional. Por ora, trata-se de um microssistema de decisões cujos resultados vinculam a partir de um critério formal legalmente estabelecido.

6 Tese jurídica, ratio decidendi e o poder de distinguishing

Sistemas de precedentes obrigatórios costumam ser fundamentados na necessidade de tratar casos semelhantes de forma igual (treating like case alike). O problema é que não existem duas entidades idênticas em todas as suas propriedades.26 Se dois objetos não podem ser iguais, deve haver um critério substancial para que o princípio de justiça se torne útil na prática. Ou seja, são necessárias razões substanciais que estabeleçam os predicados que importam para considerar que uma situação merece ser tratada da mesma forma que outra.27
Normas gerais e abstratas têm a função de estabelecer conjuntos de circunstâncias que, se ocorridas no mundo real, conduzem à deflagração de certo efeito jurídico. Por exemplo, o art. 1.238 do Código Civil (LGL\2002\400) estabelece os fatos jurídicos necessários e suficientes para uma das modalidades de usucapião de bem imóvel. Em outras palavras, regras jurídicas traduzem roteiros para separar os fatos materiais dos imateriais.
Em sistemas jurídicos desenvolvidos a partir do case law, precedentes tendem a assumir destacada importância porque constituem o meio mais seguro de saber o que juízes reputam relevante para cada pretensão. A distinção entre ratio decidendi, parcela da decisão com poder de vincular, e obiter dicta, conjunto de afirmações judiciais sem capacidade de vinculação, não pode ser bem compreendida apenas pela diferença entre núcleo da fundamentação e argumentação feita de passagem. Isso porque boa parte das teorizações sobre ratio decidendi tem em mira as necessidades de um direito não escrito.28
Estabelecida essa premissa, podemos avaliar a contribuição de Arthur L. Goodhart. O professor de Oxford partiu das intuições de John Salmond, para quem o precedente é uma decisão que contém um princípio abstrato com força de lei, e de John Chipman Gray, que defendia que somente tinha “peso de precedente” a opinião judicial que fosse necessária para o resultado do caso particular.
Para Goodhart, a ratio decidendi é o princípio contido no precedente, mas, ao contrário do que seu nome sugere, nada teria que ver com as razões apresentadas pelo juiz para alcançar o resultado. Determinar a ratio consistiria em identificar os fatos materiais (ou relevantes), taiscomo interpretados pelo julgador para alcançar o resultado do julgamento.29 Com isso, Goodhart pretende demonstrar que a tese jurídica enunciada pela Corte não tem valor de ratio decidendi, seja porque pode ser falsa (incorreta), seja porque pode ter sido formulada de modo muito amplo, seja porque pode ter sido formulada de modo muito restrito. O autor traz um argumento a partir do famoso caso Riggs v. Palmer:
Um exemplo notável de exagero do princípio envolvido em um caso pode ser encontrado em Riggs v. Palmer. O tribunal considerou que um legatário, que havia assassinado seu testador, não poderia herdar com base no testamento porque não se permite a ninguém ‘tirar proveito de seu próprio erro, nem fundar qualquer pretensão com base em sua torpeza, tampouco adquirir riqueza com o produto do próprio crime’. Seria, naturalmente, possível dar um grande número de situações em que esta afirmação seria errada ou duvidosa. Seria aplicável, por exemplo, se o legatário tivesse negligentemente matado o testador em um acidente automobilístico30?
Note-se que a Corte desenvolveu uma tese jurídica com três versões distintas: a) ninguém pode beneficiar-se do próprio erro; b) ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza; c) ninguém pode enriquecer com o produto do próprio crime. Se prestarmos atenção nas versões “a” e “c”, veremos que são bastante amplas, conforme demonstrado pelo exemplo da morte do testador causada por negligência do herdeiro. É nesse sentido que Goodhart diz que as razões apresentadas pelos juízes não integram a ratio decidendi, porque a formulação de teses seria bem menos importante para entender o precedente do que a seleção dos fatos materiais e a importância que o juiz atribui a eles no caso concreto. Em outras palavras, não seria a tese jurídica – o arranjo canônico das palavras escolhidas pela Corte como fundamento – que vincula os próximos julgadores, mas o modo como os fatos foram tratados no caso concreto.
É bom frisar que, no caso Riggs v. Palmer, o direito de herdar estava disciplinado em lei escrita. Mas, apenas para ilustrar o argumento, suponhamos que o direito de herança houvesse sido reconhecido através de um antigo precedente. Nessa configuração de fatos, a decisão de Riggs v. Palmer consistiria no exercício do poder de distinguishing, isto é, o poder que juízes possuem de adicionar fatos relevantes para desenvolver uma nova regra.
Com extrema perspicácia, Gerald J. Postema aduz que o processo de distinguir pressupõe casos muito similares em seus aspectos relevantes, ou seja, casos no limiar entre a identidade e a diferença. Se dois casos são muito diferentes entre si, não se aplica o processo de distinguishing, porque não há desafio intelectual algum. Casos precisam ser distinguidos justamente porque, à primeira vista, se apresentam como iguais nos aspectos relevantes31. Desse modo, o poder de distinguishing é o modo pelo qual quem aplica o precedente tem a possibilidade de contribuir com o enriquecimento da ratio decidendi.
Um exemplo interessante pode ser extraído da súmula vinculante 13, aprovada na Sessão Plenária de 28 de agosto de 2008. No sítio eletrônico do STF, foram indexadas cinco decisões relacionadas com o enunciado. Desse universo, apenas duas decorreram do exercício do controle incidental de constitucionalidade: a) o Mandado de Segurança 23.780; b) o Recurso Extraordinário 579.951-7, que é posterior à edição do enunciado.
O MS 23.780 foi impetrado por uma servidora pública da Secretaria de Educação de um Estado-membro que, desde 1989, foi posta à disposição do 16º Tribunal Regional do Trabalho para ocupar cargos comissionados. Ocorre que o Tribunal de Contas da União considerou ilegal o vínculo comissionado por violar a decisão 118/1994-TCU, que proíbe a contratação de cônjuges ou parentes consanguíneos ou afins, até terceiro grau, de juízes em atividade ou aposentados há menos de cinco anos. Perceba-se que havia um contexto normativo específico para esse caso, mas, ainda assim, o Supremo Tribunal Federal formulou uma tese jurídica muito mais ampla do que a observação dos fatos materiais poderia ensejar.
No RE 579.951-7, o Supremo reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte que entendeu não haver inconstitucionalidade na nomeação de dois cidadãos – o primeiro, irmão de um vereador, o outro, irmão do vice-prefeito – para os cargos comissionados de Secretário Municipal e de motorista de determinado município. Em seu voto, o relator discorreu sobre a desnecessidade de lei formal para vedar o nepotismo, sobre a aplicação direta do princípio da moralidade administrativa, bem como sobre a eficácia das normas constitucionais. Já quase no final do voto – e sem o mesmo fôlego argumentativo –, ressalvou-se que a nomeação para o cargo de Secretário Municipal não configurava nepotismo, porque o vínculo era de natureza política. Veja-se que o Supremo se valeu de um fato adicional relevante que modificou o direito observado no MS 23.780.
Recentemente, ao apreciar o pedido cautelar na Reclamação Constitucional 17.627, o Ministro Roberto Barroso inaugurou a decisão com as seguintes palavras: “Em princípio, a Súmula Vinculante n. 13 não se aplica à nomeação para cargos políticos, ressalvados os casos de inequívoca falta de razoabilidade, por ausência manifesta de qualificação técnica ou de inidoneidade moral”. O Supremo trouxe à baila mais um fato relevante que não havia sido observado como ratio nos julgados pretéritos.32
Por fim, um último exemplo. Nos primeiros recursos especiais questionando a inclusão da demanda de potência reservada na base de cálculo do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o Superior Tribunal de Justiça estava deixando de apreciar a pretensão dos consumidores de energia elétrica, sob o fundamento de que eram apenas contribuintes de fato (art. 166 do Código Tributário Nacional), sendo estranhos à relação jurídico-tributária travada entre Fisco e concessionária. Invocava-se o precedente gerado no REsp 903.394/AL, que encampava a tese da ilegitimidade ativa para o setor de fornecimento de bebidas.
No entanto, no REsp 1.299.303/SC, o STJ entendeu que a relação política especial entre ente tributante e concessionária consistia em um fato adicional relevante capaz de afastar a aplicação da ratio gerada no REsp 903.394/AL:
Ocorre que, no caso dos serviços prestados pelas concessionárias de serviço público, a identificação do ‘contribuinte de fato’ e do ‘contribuinte de direito’ deve ser enfrentada à luz, também, das normas pertinentes às concessões, que revelam uma relação ímpar envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor. (...) Sem dúvida alguma, sobretudo no tocante à cobrança, ao cálculo e à majoração dos tributos – à exceção do imposto de renda –, o poder concedente e a concessionária encontram-se, na verdade, lado a lado, ausente qualquer possibilidade de conflitos de interesses.
Mais uma vez, explica-se a evolução de entendimentos jurisprudenciais a partir de distinções entre casos fronteiriços ou limiares, em que tudo levava a crer estar-se diante de situações cobertas por um mesmo precedente. Por óbvio, Cortes e juízes às vezes abusam desse poder de distinguishing, dando azo a distinções inconsistentes. Mas ainda que seja o caso, o exemplo demonstra como a não aplicação de um precedente por distinção também desenvolve o direito.
Esses desdobramentos em torno da tese jurídica, da ratio e do distinguishing servem para demonstrar que, em parte, Goodhart tem razão: o segredo para compreender a ratio decidendi envolve investigar quais foram os fatos considerados relevantes. Porém, ao tentar corrigir a confusão entre ratio decidendi e tese jurídica, Goodhart criou outra: a subvalorização da argumentação jurídica. O valor do precedente não se encerra apenas no poder do magistrado de selecionar, dentro de um universo de fatos, quais são relevantes para o desfecho do problema. É preciso entender em que sentido os fatos são relevantes e como tal relevância se conecta a razões universalizáveis.
De qualquer sorte, a intuição original de Goodhart, desde que conjugada com a valorização da argumentação jurídica empreendida pelas Cortes, consiste em lição oportuna no Brasil, porque relativiza a ideia de que as teses jurídicas contidas nas decisões das Cortes Supremas consistam na parcela obrigatória do precedente. A doutrina brasileira, certamente por estar acostumada a lidar com enunciados de Súmula, não tem percebido que se trata de fenômenos distintos. O fato de as Cortes pretenderem sintetizar o precedente em um conjunto de palavras canônicas não tem o condão de reduzir sua interpretação a esse conjunto de palavras. Quem quer que seja chamado a aplicar o precedente deve se impressionar menos com a redação da tese jurídica, e mais com o modo pelo qual a Corte considerou os fatos e desenvolveu o direito mediante a argumentação, que é a verdadeira ratio.
Essa percepção é fundamental porque trabalha com limites ao poder das Cortes de estabelecer precedentes. A ratio não pode ser compreendida como mero ato de vontade, como se os Ministros acordassem a redação de um dispositivo. Se fosse uma combinação de palavras destacadas pela Corte, não haveria necessidade de teorias que explicassem o precedente, mas de teorias que fundamentassem essa possibilidade à luz da separação de poderes.
A ideia de um sistema de precedentes somente se deixa explicar mediante concepções que conectem a resolução do caso concreto a razões universalizáveis, de modo que sempre que as mesmas razões se repitam, o mesmo direito se realize. Em outras palavras, não basta apreender o precedente como um mecanismo de uniformizar decisões, mas, sobretudo, como uma ferramenta prática para que, na dimensão dos argumentos e dos fundamentos jurídicos, e não apenas na dos resultados, casos iguais sejam tratados de forma igual e casos diferentes obtenham respostas diferentes. Nessa dimensão, precedentes atraem soluções para casos que não sejam narrativamente idênticos, desde que envolvam os mesmos conceitos e institutos jurídicos.

7 Conclusão

Este artigo buscou apreender a vinculação pelo precedente como uma exigência de racionalidade dos ordenamentos jurídicos. A intuição básica é a de que essa necessidade somente vem à luz quando se percebe que o abandono do formalismo interpretativo implicou um vácuo de normatividade acerca da decisão judicial.
O modelo brasileiro de precedentes, a despeito do que afirma o art. 926 do Código de Processo Civil de 2015, não está comprometido com a racionalidade do sistema enquanto coerência, estabilidade e segurança jurídica. Está, isto sim, comprometido com a razoável duração do processo e com a igualdade de tratamento de casos massificados no âmbito do Judiciário. Trata-se, sem dúvida, de um avanço sob muitos aspectos, mas que pode conduzir a uma espécie de realismo jurídico, em que a lei passa a ser aquilo que as Cortes Supremas afirmam que ela é.
Um sistema de precedentes, conforme tentou se demonstrar, envolve uma dialeticidade entre quem produz a ratio decidendi e quem a aplica no caso concreto. O aplicador do precedente mantém o seu poder de considerar os fatos e de atribuir-lhes significados particulares no que não conflite com os aspectos tratados como relevantes no precedente. Essa dinâmica explica como a jurisdição desenvolve o direito na prática, o que se espera haver restado claro a partir dos exemplos trabalhados no item anterior.
Não se defende, aqui, a mera importação do sistema inglês ou do norte-americano. A referência a eles cumpre um importante papel de alteridade, sendo um parâmetro a partir do qual se pode refletir sobre a concepção majoritária a respeito dos precedentes no Brasil. Com esse cotejo, é possível afirmar que o modelo brasileiro ignora o papel central dos fatos, não se preocupa com a coerência no nível dos fundamentos jurídicos, nem reconhece o poder de distinguishing entre casos muito similares. O que se tem hoje – e talvez seja o máximo que uma legislação possa fazer – é um microssistema de decisões vinculantes.
A passagem para um sistema de precedentes se dará pela constituição de práticas que encareçam o papel da jurisdição de dar racionalidade ao sistema jurídico. Se a comunidade jurídica não desenvolver essa consciência, o nosso sistema de precedentes continuará reduzido a um expediente de mera repetição de teses jurídicas.

8 Referências

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1 Nesse sentido: “O Direito processual pode ser definido como o ramo da ciência jurídica que estuda e regulamenta o exercício, pelo Estado, da função jurisdicional” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v. 1. p. 5). O mesmo se pode dizer do conceito de Direito Processual na doutrina de Humberto Theodoro Júnior: “o Direito Processual Civil pode ser definido como o ramo da ciência jurídica que trata do complexo das normas reguladoras do exercício da jurisdição civil” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 1. p. 7). Em sentido contrário: “Finalmente, a jurisdição não pode mais ser colocada como centro da teoria do processo civil. Insistir nessa postura revela uma visão um tanto quanto unilateral do fenômeno processual, sobre ignorar a dimensão essencialmente participativa que a democracia logrou alcançar na teoria do direito constitucional hodierno” (MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 48).

2 No campo do direito constitucional, tem-se refletido bastante sobre a legitimidade da jurisdição constitucional. No entanto, não tem havido o esforço necessário para construir uma concepção teórica acerca dos ideais que governam a atividade jurisdicional.

3 “Entre as três funções da soberania lobrigamos uma separação conceitual, mais ou menos nítida, mas por vezes difícil de determinar. Se é bem simples a contraposição entre função legislativa e judicial, porque àquela pertence ditar as normas reguladoras da atividade dos cidadãos e dos órgãos públicos (n. 1), e a esta atuá-las (n. 11), menos fácil se torna firmar um critério diferencial entre administração e jurisdição, tal que valha para todos os casos, porquanto a administração também se pode contrapor à legislação como atuação de lei” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998. v. 2. p. 11-12).

4 “Pode-se definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998. v. 2. p. 8).

5 “Num país de poucas leis escritas, a missão do juiz se assemelha à do legislador, no sentido de que também ele aplica ao caso particular uma norma ainda inescrita e a qual, por seguinte, talvez não goze daquele indiscutível reconhecimento universal próprio das leis escritas” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998. v. 1. p. 61).

6 “Essas minuciosas normas não representam simples complexo desorgânico: constituem um sistema, cuja força dinâmica reside no princípio de que ‘sempre que uma controvérsia não se possa decidir com uma precisa disposição de lei, atender-se-á às disposições que regulam casos similares ou matérias análogas; quando o caso perdure, ainda assim, duvidoso, decidir-se-á segundo os princípios gerais do direito’ (art. 3º, disposições preliminares do Código Civil (LGL\2002\400)). De sorte que, a mais das normas escritas nas leis, existe indefinido número de outras, inferíveis da analogia ou dos princípios gerais do direito; e é muito difícil que um fato novo, não somente imprevisto na lei, mas jamais ocorrido antes dela, não encontre nesse sistema de normas seu regulamento preventivo e potencial. Pois que, se, em verdade, ocorresse um fato novo, a que fosse impossível encontrar no sistema das normas uma disposição aplicável, significaria que nesse caso falta uma vontade de lei que garanta o bem reclamado pelo autor e se formará uma vontade negativa de lei, como acima se explicou” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998. v. 1. p. 62).

7 Neste e nos parágrafos a seguir, valemo-nos das lições de Gustavo Zagrebelsky para realçar as marcantes diferenças entre o Estado de Direito clássico e o Estado Constitucional. Não incorporamos as críticas ao positivismo jurídico por julgá-las exageradas em alguns pontos e incorreta em outros (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 11. ed. Madri: Trotta, 2011).

8 Arremata, em seguida, Zagrebelsky: “as leis pactuadas são contraditórias, caóticas, obscuras e, sobretudo, expressam a ideia de que – para conseguir o acordo – tudo é suscetível a transações entre as partes, inclusive os valores mais elevados, os direitos mais intangíveis” (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 11. ed. Madri: Trotta, 2011. p. 38). Os trechos citados foram traduzidos livremente da edição espanhola.

9 Alguns processualistas civis brasileiros passaram a integrar, nas lições sobre a jurisdição, a relevante diferença entre texto e norma. Nesse sentido, confiram-se Luiz Guilherme Marinoni (Teoria geral do processo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012) e Fredie Didier Jr. (Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1).

10 De passagem, deve-se registrar que o discurso pós-positivista brasileiro se baseia em uma imagem completamente distorcida do positivismo jurídico. O pós-positivismo tem sido associado à criatividade judicial em um sentido virtuoso, como se houvesse corrigido o suposto formalismo das concepções positivistas, que impediam uma boa metodologia jurídica. Essa descrição, que se pode reputar dominante no Brasil por obra dos constitucionalistas, incorpora uma série de reducionismos teóricos que não poderiam ser demonstrados neste artigo.

11 Quando se discute se constitui um precedente a decisão da 1ª Turma do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ, em que se deu interpretação conforme aos artigos 124 e 126 do Código Penal para excluir a incidência no caso de aborto até o terceiro trimestre, está-se indagando se essa decisão tem a força de traçar uma nova tendência no direito, não se essa decisão é um evento fático inovador.

12 MacCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. (Ed.). Interpreting precedents: a comparative study. London: Dartmouth Publishing Company Limited, 1997. p. 1-2.

13 “Experience often guides present action, but reasoning from precedent is not identical to reasoning from experience. When my youngest daughter made her case for my buying her a mobile phone on her eleventh birthday, she reasoned from precedent: her elder sister received a mobile phone for her eleventh birthday. When I refused to buy my youngest daughter a mobile phone on her eleventh birthday, I reasoned from the experience of her sister’s inability to be a responsible mobile-phone owner at the age of eleven. When we make a decision on the basis of experience, we are valuing experience for what it teaches us. When we make a decision on the basis of precedent, we consider significant the fact that our current predicament has been addressed before, but we will not necessarily value the precedent for what it teaches us. Sometimes, we might even follow precedents of which we do not approve” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 2-3).

14 “But here a natural and material question arises: how are these customs and maxims to be known, and by whom is their validity to be determined? The answer is, by the judges, in the several courts of justice. They are the depositaries of the laws: the living oracles, who must decide in all cases of doubt, and who are bound by an oath, to decide according to the law of the land. (...) The doctrine of the law, then, is this: that precedents and rules must be followed, unless flatly absurd or unjust: for though their reason be not obvious at first view, yet we owe such a deference to former times, as not to suppose that they acted wholly without consideration” (WARREN, Samuel. Blackstone’s commentaries systematically abridged and adapted to the existing state of the Law and the Constitution. London: Maxwell, 1855. p. 47-49). Também destacado por CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Claredon Press Oxford, 2004. p. 28.

15 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Claredon Press Oxford, 2004. p. 30.

16 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 37-48.

17 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 18-24. Acrescento que o direito norte-americano também não possui uma regra escrita de vinculação aos precedentes. Nesse sentido, conferir PUGLIESE, William. Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 55.

18 “Há, claro, muitos outros tipos de definição, além da forma tradicional muito simples que debatemos, mas parece nítido, quando recordamos a natureza das três questões principais como subjacentes à questão ‘O que é o direito’, que nada de suficientemente conciso, susceptível de ser reconhecido como uma definição, lhe podia dar resposta satisfatória. As questões subjacentes são demasiado diferentes umas das outras e demasiado fundamentais para serem capazes deste tipo de resolução” (HART, H. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 21).

19 O diálogo de Hart tem em John Austin seu principal interlocutor no aspecto da coerção. Ver AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1998.

20 HART, H. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 92-93.

21 HART, H. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 101-109.

22 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 20-21. A explicação completa depende de outros elementos da teoria hartiana, que, por razões, de espaço e de escopo, foram abreviadas.

23 Por “doutrina brasileira dos precedentes”, não nos referimos à produção intelectual dos doutrinadores pátrios que se debruçaram sobre o assunto. Utilizamos o termo no sentido empregado na obra de Neil MacCormick, que é o regime de autoridade do precedente em um dado ordenamento jurídico. O contraste entre doutrina e teoria pode ser intuído a partir do seguinte trecho: “Isso indica que, além de doutrinas do precedente, ou seja, doutrinas do Direito Positivo, dizendo-nos que autoridade atribuir a precedentes judiciais, precisamos também de teorias do precedente. Sem um entendimento teórico dos precedentes e de conceitos-chave como o de ratio decidendi, não podemos de fato implementar nenhuma doutrina jurídica do precedente” (MacCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. (Ed.). Interpreting precedents: a comparative study. London: Dartmouth Publishing Company Limited, 1997. p. 194).

24 Ora, se a OAB não é órgão integrante da estrutura da União, não é autarquia federal, tampouco empresa pública federal, não estava clara a razão para atrair a incidência do art. 109 da Constituição da República.

25 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, p. 139-155, set. 2011.

26 “A regra de justiça, que exige o tratamento igual de seres iguais, parece dificilmente discutível, mas seu campo de aplicação é extremamente reduzido, se não inteiramente nulo. Com efeito, desde Leibniz e seu princípio dos indiscerníveis, e sobretudo desde Frege e sua distinção entre sentido e designação de um nome, os lógicos estão cada vez mais inclinados a negar a existência de seres de quem todas as propriedades seriam as mesmas. A afirmação de que a é igual a b, concebida como a identidade completa deles, significaria simplesmente que os nomes ‘a’ e ‘b’ designam um único e mesmo objeto, ainda que o sentido deles, ou seja a maneira pela qual esse objeto é designado, difira em ambos os casos. Se queremos que a regra de justiça possa guiar-nos efetivamente, cumpre, portanto, formulá-la de maneira que ela nos indique, não como tratar seres que não diferem um do outro por nenhuma propriedade, mas como tratar seres que não são idênticos, ou seja, iguais em todos os pontos de vista. Este é o único problema real concernente à regra de justiça” (PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 86).

27 “Note that the principle of formal justice has to be supplemented not merely with criteria of likeness and difference, but with criteria of relevant likeness and difference. Treating cases as alike or different requires a reason or principle for the treatment; there is no substantive justice in determining, for example, that all white people should be treated alike because they are white. Demonstrating the likeness of cases means settling on a principle to govern their treatment: for example, if we decide that anyone who satisfies a particular definition of poverty deserves special welfare entitlements, then A and B, claimants in different cases but both fitting the definition of poverty, should be entitled to the same treatment” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 175). Em tradução livre: “Nota-se que o princípio da justiça formal tem de ser suplementado não apenas com critérios de igualdade e de diferença, mas com critérios de igualdade e diferença relevantes. Tratar casos como iguais ou como diferentes requer uma razão ou princípio para o tratamento; não existe justiça substantiva em determinar, por exemplo, que todas as pessoas brancas devem ser tratadas igualmente porque elas são brancas. A demonstração da similitude dos casos significa estabelecer um princípio que governe o tratamento: por exemplo, se decidimos que qualquer pessoa que satisfaça uma definição particular de pobreza merece cuidados especiais de assistência, então A e B, requerentes em diferentes casos que preenchem a definição de pobreza, devem ter acesso ao mesmo tratamento”.

28 Não se pode ignorar, entretanto, que muitos precedentes, mesmo no common law, assumem a forma de complementos normativos às leis. Nesse sentido, confira-se MacCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito: uma teoria da argumentação jurídica. Trad. Conrado Mendes Hubner. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 192.

29 Para uma boa compreensão do pensamento de Goodhart, conferir, além do texto original, a obra de William Pugliese (Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 80-83).

30 No original: “A striking example of an overstatement of the principle involved in a case may be found in Riggs v. Palmer. The Court held that a legatee, who had murdered his testator, could not take under the will, because no one shall be permitted ‘to take advantage of his own wrong, or to found any claim upon his own iniquity, or to acquire property by his own crime’. It would, of course, be possible to give a large number of situations in which this statement would be wrong or doubtful. Would it apply, for example, if the legatee had negligently killed the testator in a motor accident?” (GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 166-167. dez. 1930).

31 POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules; SHAPIRO, Scott (Ed.). The Oxford Handbook of Jurisprudence & Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 604-605.

32 Na realidade, supondo que a qualificação técnica e a idoneidade moral sejam requisitos indispensáveis a qualquer ocupante de cargo comissionado de natureza política, sequer havia necessidade de conectar esse arranjo de palavras à lógica da súmula vinculante 13. O objetivo parece ter sido o de advertir, com grande ênfase, os titulares de funções políticas.



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