9 de maio de 2021

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DE ALIMENTOS. DIREITO AO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. NATUREZA INDIVIDUAL E PERSONALÍSSIMA.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.807.216 - SP (2019/0013958-9) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DE ALIMENTOS. DIREITO AO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. NATUREZA INDIVIDUAL E PERSONALÍSSIMA. EXTENSÃO A TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE. EXAME DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES A PARTIR DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DE PESSOA DISTINTA DA PARTE, COMO A REPRESENTANTE LEGAL DE MENOR. VÍNCULO forte ENTRE DIFERENTES SUJEITOS DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO MENOR. AUTOMÁTICO EXAME DO DIREITO À GRATUIDADE DE TITULARIDADE DO MENOR À LUZ DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DOS PAIS. IMPOSSIBILIDADE. CRITÉRIOS. TENSÃO ENTRE A NATUREZA PERSONALÍSSIMA DO DIREITO E INCAPACIDADE ECONÔMICA DO MENOR. PREVALÊNCIA DA REGRA DO ART. 99, §3º, DO NOVO CPC. ACENTUADA PRESUNÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DO MENOR. CONTROLE JURISDICIONAL POSTERIOR. POSSIBILIDADE. PRESERVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA E CONTRADITÓRIO. RELEVÂNCIA DO DIREITO MATERIAL. ALIMENTOS. IMPRESCINDIBILIDADE DA SATISFAÇÃO DA DÍVIDA. RISCO GRAVE E IMINENTE AOS CREDORES MENORES. IMPOSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO INJUSTIFICADA AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO. REPRESENTANTE LEGAL QUE EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL. VALOR DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. IRRELEVÂNCIA. 

1- Recurso especial interposto em 18/05/2018 e atribuído à Relatora em 13/02/2019. 

2- O propósito recursal é definir se, em ação judicial que versa sobre alimentos ajuizada por menor, é admissível que a concessão da gratuidade de justiça esteja condicionada a demonstração de insuficiência de recursos de seu representante legal. 

3- O direito ao benefício da gratuidade de justiça possui natureza individual e personalíssima, não podendo ser automaticamente estendido a quem não preencha os pressupostos legais para a sua concessão e, por idêntica razão, não se pode exigir que os pressupostos legais que autorizam a concessão do benefício sejam preenchidos por pessoa distinta da parte, como o seu representante legal. 

4- Em se tratando de menores representados pelos seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação desses dois diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da incapacidade civil e econômica do próprio menor, o que não significa dizer, todavia, que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que poderia fazer jus o menor à luz da situação financeira de seus pais. 

5- A interpretação que melhor equaliza a tensão entre a natureza personalíssima do direito à gratuidade e a notória incapacidade econômica do menor consiste em aplicar, inicialmente, a regra do art. 99, §3º, do novo CPC, deferindo-se o benefício ao menor em razão da presunção de sua insuficiência de recursos, ressalvada a possibilidade de o réu demonstrar, com base no art. 99, §2º, do novo CPC, a posteriori, a ausência dos pressupostos legais que justificam a gratuidade, o que privilegia, a um só tempo, os princípios da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório. 

6- É igualmente imprescindível que se considere a natureza do direito material que é objeto da ação em que se pleiteia a gratuidade da justiça e, nesse contexto, não há dúvida de que não pode existir restrição injustificada ao exercício do direito de ação em que se busque o adimplemento de obrigação de natureza alimentar. 

7- O fato de o representante legal das partes possuir atividade remunerada e o elevado valor da obrigação alimentar que é objeto da execução não podem, por si só, servir de empeço à concessão da gratuidade de justiça aos menores credores dos alimentos. 

8- Recurso especial conhecido e provido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. 

Brasília (DF), 04 de fevereiro de 2020(Data do Julgamento) 

RELATÓRIO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto por J P D DA C E S, S D DA C E S e G D DA C E S, todos representados pela genitora R D E S, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/SP que, por unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento por eles interposto. 

Recurso especial interposto e m: 18/05/2018. Atribuído ao gabinete e m: 13/02/2019

Ação: cumprimento de sentença de alimentos iniciados pelos menores em face de R O DA C E S. 

Decisão interlocutória: negou o diferimento do pagamento das custas processuais ao final do cumprimento, ao fundamento de que não foi comprovada a impossibilidade financeira da representante legal dos menores (fl. 19, e-STJ), integrada pela decisão que rejeitou os aclaratórios opostos (fls. 28/29, e-STJ). 

Acórdão: por unanimidade, negou-se provimento ao agravo de instrumento interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIMENTOS – INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE INDEFERIU OS BENEFÍCIOS DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA - MENORIDADE NÃO FAZ PRESUMIR A IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA DE CUSTEAR O PROCESSO – GENITORA TAMBÉM É RESPONSÁVEL FINANCEIRA DOS MENORES E EXERCE ATIVIDADE REMUNERADA – NÃO COMPROVAÇÃO DO COMPROMETIMENTO DA RENDA COM O CUSTEIO DAS DESPESAS ESSENCIAS DA FAMÍLIA DECISÃO MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. (fls. 46/49, e-STJ). 

Recurso especial: alega-se violação ao art. 99, §2º, do novo CPC, ao fundamento de que a concessão da gratuidade de justiça deve ser examinada sob o prisma dos menores, que são as partes no cumprimento de sentença condenatória de alimentos, e não de sua representante legal, havendo presunção de insuficiência de recursos justamente em virtude do atraso no pagamento dos alimentos que se pretende combater com a execução (fls. 54/65, e-STJ). 

VOTO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator): O propósito recursal é definir se, em ação judicial que versa sobre alimentos ajuizada por menor, é admissível que a concessão da gratuidade de justiça esteja condicionada a demonstração de insuficiência de recursos de seu representante legal. 

1. PRESSUPOSTOS DE CONCESSÃO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA EM AÇÕES SOBRE ALIMENTOS AJUIZADAS POR MENOR. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 99, §2º, DO NOVO CPC. 

Para melhor contextualização da controvérsia, é preciso destacar que, em cumprimento de sentença condenatória de alimentos, pleitearam os recorrentes, filhos do devedor e que são representados legalmente pela genitora, a concessão do benefício da gratuidade de justiça, o que veio a ser indeferido em 1º grau de jurisdição ao fundamento de que não foi comprovada a momentânea impossibilidade financeira da representante legal dos menores. 

O agravo de instrumento interposto pelos recorrentes contra a referida decisão foi desprovido pelo TJ/SP (acórdão de fls. 46/49, e-STJ), nos seguintes termos: 

Com efeito, o simples fato dos agravantes serem menores e não estarem recebendo os alimentos devidos pelo genitor, por si só, não implica na presunção de veracidade da declaração de pobreza, haja vista que a genitora também é responsável financeira dos seus filhos. Pois bem, considerando que a representante legal dos agravantes declara-se advogada e exerce atividade remunerada, fazia-se necessária a comprovação da alegada impossibilidade de arcar com o pagamento das despesas processuais sem prejuízo do sustento familiar, porém não o fez, a despeito de ter sido intimada para tanto. Em outros termos, havendo indícios de que a parte tem condições de arcar com o pagamento das custas processuais, que no caso se denota pela profissão exercida pela representante legal dos menores e o valor dos alimentos executados, a comprovação da renda e o efetivo comprometimento da mesma com o pagamento das despesas essenciais da família era medida que se impunha. Nem mesmo por ocasião da interposição do presente recurso, logrou a genitora dos agravantes acostar os documentos financeiros hábeis a atestar a veracidade da declaração de pobreza, razão pela qual mantenho a decisão agravada. 

A tese deduzida no recurso especial é de que a concessão da gratuidade de justiça deve ser examinada sob o prisma dos menores, que são as partes no cumprimento de sentença condenatória de alimentos, e não de sua representante legal, havendo presunção de insuficiência de recursos justamente em virtude do atraso no pagamento dos alimentos que se pretende cobrar. 

Nesse contexto, é relevante destacar que, na forma do art. 10 da revogada Lei nº 1.060/50, já se consignava que “são individuais e concedidos em cada caso ocorrente os benefícios de assistência judiciária, que se não transmitem ao cessionário de direito e se extinguem pela morte do beneficiário, podendo, entretanto, ser concedidos aos herdeiros que continuarem a demanda e que necessitarem de tais favores, na forma estabelecida nesta Lei”. 

O referido dispositivo legal revelava, pois, que o direito ao benefício da gratuidade de justiça possuía natureza individual e personalíssima, não podendo ser automaticamente estendido a quem não preencha os pressupostos legais para a sua concessão. 

Conquanto não tenha havido expressa revogação do art. 10 da Lei nº 1.060/50, conforme se depreende do art. 1.072, III, do novo CPC, fato é que norma de igual sentido se encontra prevista no art. 99, §6º, da nova lei processual, que prevê que “o direito à gratuidade da justiça é pessoal, não se estendendo a litisconsorte ou a sucessor do beneficiário, salvo requerimento e deferimento expressos”. 

A natureza personalíssima do direito à gratuidade de justiça, aliás, é objeto de amplo consenso na doutrina, como bem destacam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery: 

12. Individualização do pedido de gratuidade. O pedido de gratuidade é personalíssimo. Evidentemente, a situação econômica que justifica o pagamento, ou não, das custas e despesas processuais é de cunho igualmente individual. Permitir que tal benefício se estenda aos litisconsortes ou sucessores é dar margem ao seu uso indevido. (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 523). 

Embora a regra do art. 99, §6º, do novo CPC, limite-se a enunciar que o benefício não é automaticamente extensível ao litisconsorte, tampouco é automaticamente transmissível ao sucessor, é da natureza personalíssima do direito à gratuidade que os pressupostos legais para a sua concessão deverão ser preenchidos, em regra, pela própria parte e não pelo seu representante legal. 

É evidente que, em se tratando de menores representados pelos seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação desses dois diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da incapacidade civil e econômica do próprio menor, o que não significa dizer, todavia, que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que poderia fazer jus o menor à luz da situação financeira de seus pais. 

Para melhor resolver essa questão controvertida, é preciso examinar, em primeiro lugar, a aparente contradição que há entre os arts. 99, §2º e §3º, do novo CPC, que assim dispõem, in verbis: 

Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. (...) §2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos. §3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. 

A aparente contradição reside no fato de que, de um lado, há a presunção de veracidade da alegação de insuficiência deduzida pela pessoa natural (art. 99, §3º) que, de outro lado, poderá ser afastada desde logo pelo juiz se houver elementos que evidenciem que a referida declaração não é verossímil (art. 99, §2º). 

O problema não escapou do crivo de Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz Dellore, André Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr.: 

4. Presunção de insuficiência de recursos para a pessoa física (§3º). O §3º traz a presunção de insuficiência de recursos, apenas para a pessoa física. Consequentemente, o ônus da prova na impugnação à gratuidade é, em regra, do impugnante (vide artigo 100, item 4). 4.1. Há um leve grau de colidência entre esse §3º (que aponta a presunção de necessidade) e §2º do artigo 99 (que afirma ser possível ao juiz indeferir de ofício, após oitiva da parte). Ou seja, apesar de existir a presunção de necessidade, trata-se de presunção relativa, pois o juiz pode, conforme sua análise da causa, indeferir o benefício – e nesse caso a presunção de gratuidade será afastada pelo magistrado em relação ao que consta dos autos. 4.2. Com a vigência do CPC/2015, verifiquemos qual será a tese que prevalecerá na jurisprudência. Possivelmente, haverá juízes mais rígidos para a concessão, que prestigiarão o §2º (possibilidade de indeferimento); e haverá juízes mais condescendentes, que darão maior relevância para o §3º (forte presunção de necessidade)... (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Forense, 2015. p. 338). 

Em se tratando de direito à gratuidade de justiça pleiteado pelo menor, é apropriado que, inicialmente, incida a regra do art. 99, §3º, do novo CPC, deferindo-se o benefício ao menor em razão da presunção de sua insuficiência de recursos decorrente de sua alegação, ressalvando-se, todavia, a possibilidade de o réu demonstrar, com base no art. 99, §2º, do novo CPC, a posteriori, a ausência dos pressupostos legais que justificam a gratuidade, pleiteando, em razão disso, a revogação do benefício concedido. 

Essa forma de encadeamento dos atos processuais privilegia, a um só tempo, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pois não impede o imediato ajuizamento da ação e a prática de atos processuais eventualmente indispensáveis à tutela do direito vindicado, e também o princípio do contraditório, pois permite ao réu que produza prova, ainda que indiciária, de que não se trata de hipótese de concessão do benefício. 

Em segundo lugar, deve também ser levada em consideração a natureza do direito material que é objeto da ação e, nesse contexto, não há dúvida de que não pode existir restrição injustificada ao exercício do direito de ação em que se busque o adimplemento de obrigação de natureza alimentar. 

Com efeito, o fato de a representante legal das partes possuir atividade remunerada e o elevado valor da obrigação alimentar que é objeto da execução não podem, por si só, servir de empeço à concessão da gratuidade de justiça aos menores credores dos alimentos. 

Na hipótese, verifica-se, a partir do exame da petição de início da fase de cumprimento de sentença, que: (i) são 03 menores credores de alimentos inadimplidos pelo genitor; (ii) a inadimplência do genitor, inicialmente apenas parcial no período entre janeiro de 2015 e janeiro de 2016, passou a ser integral após o referido mês, perdurando até a presente data; (iii) a petição requerendo o início do cumprimento foi protocolada em fevereiro de 2017, mas, até o momento, não houve sequer a intimação do devedor para pagamento dos alimentos devidos aos filhos. 

Não é necessário muito mais do que máximas de experiência para concluir que, a despeito de a genitora ser advogada e exercer atividade profissional e remunerada, o inadimplemento do genitor com o custeio das necessidades básicas e vitais dos seus filhos (que, desde então, tem sido sustentados integralmente pela genitora) implica, por óbvio, na redução proporcional do padrão de vida, na privação de determinados bens, usos e costumes e em realocações orçamentárias que se revelam absolutamente compatíveis com a declaração de insuficiência momentânea de recursos. 

Assim, diante do evidente comprometimento da qualidade de vida dos menores em decorrência do sucessivo inadimplemento das obrigações alimentares pelo genitor, geradoras de cenário tão grave, urgente e de risco iminente, não é minimamente razoável o indeferimento do benefício da gratuidade da justiça aos menores credores dos alimentos, ressalvada, uma vez mais, a possibilidade de impugnação posterior do devedor quanto ao ponto. 

2. CONCLUSÕES. 

Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial, a fim de deferir o benefício da gratuidade da justiça aos recorrentes. 

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