3 de maio de 2021

EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE REPASSE DE VERBA ORIUNDA DE PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA. ESCOLA DE SAMBA. CARNAVAL. EQUIPAMENTOS E MATERIAIS PERMANENTES. INALIENABILIDADE. VERBAS PARA A CONSECUÇÃO DE FINALIDADES DE INTERESSE PÚBLICO E RECÍPROCO. APLICAÇÃO COMPULSÓRIA EM EDUCAÇÃO OU ASSISTÊNCIA SOCIAL. NÃO OCORRÊNCIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS IMPENHORABILIDADES. ESTÍMULO A CULTURA E A HISTÓRIA LOCAL. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.816.095 - SC (2019/0154017-8) 

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE REPASSE DE VERBA ORIUNDA DE PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA. ESCOLA DE SAMBA. CARNAVAL. EQUIPAMENTOS E MATERIAIS PERMANENTES. INALIENABILIDADE. VERBAS PARA A CONSECUÇÃO DE FINALIDADES DE INTERESSE PÚBLICO E RECÍPROCO. APLICAÇÃO COMPULSÓRIA EM EDUCAÇÃO OU ASSISTÊNCIA SOCIAL. NÃO OCORRÊNCIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS IMPENHORABILIDADES. ESTÍMULO A CULTURA E A HISTÓRIA LOCAL. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. 

1. Execução de título extrajudicial da qual se extrai este recurso especial, interposto em 4/2/19 e concluso ao gabinete em 3/6/19. Julgamento: CPC/15. 

2. O propósito recursal consiste em definir se são penhoráveis as verbas recebidas por escola de samba a título de parceria com a administração pública. 3. O art. 35, §5º, da Lei 13.019/14 dispõe que os “equipamentos e materiais permanentes” adquiridos com recursos provenientes da celebração da parceria serão gravados com cláusula de inalienabilidade. Não são os recursos o objeto da restrição legal, mas o produto do seu investimento necessário à consecução do projeto de parceria. 

4. É inquestionável o valor social, cultural, histórico e turístico do carnaval brasileiro, uma das maiores expressões artísticas nacionais com alcance mundial, inclusive com bens reconhecidos pela UNESCO como patrimônio cultural imaterial da humanidade. 

5. A Lei 13.019/14 considera que a parceria entre a administração pública e as organizações da sociedade civil é feita “para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco” (art. 2º, III) jamais restringindo seu âmbito “para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social” (art. 833, IX, do CPC). 

6. No particular, o acórdão recorrido fez a interpretação do Edital de Seleção de Projetos Culturais do Município de Florianópolis para concluir que o objetivo do repasse das verbas públicas é o estímulo a cultura e história local, não havendo qualquer menção de que tais valores seriam aplicados em educação, saúde ou assistência social. Súmula 5/STJ. 

7. Recurso especial conhecido e não provido. 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e negar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). CAROLINE DA ROSA VIZEU DA SILVA, pela parte RECORRENTE: SOCIEDADE RECREATIVA E CULTURAL UNIDOS DA COLONINHA. 

Brasília (DF), 05 de novembro de 2019(Data do Julgamento) 

RELATÓRIO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): Cuida-se de recurso especial interposto por SOCIEDADE RECREATIVA E CULTURAL UNIDOS DA COLONINHA, com fundamento nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/SC. 

Ação: de execução de título extrajudicial, ajuizada por CARLOS ALBERTO SILVEIRA SCHNEIDER, em face de SOCIEDADE RECREATIVA E CULTURAL UNIDOS DA COLONINHA, na qual requer o cumprimento do contrato de prestação de serviços no valor de R$ 95 mil. 

Decisão interlocutória: suspendeu a ordem de penhora por reconhecer a impenhorabilidade da verba repassada à recorrente em regime de parceria com a administração pública. 

Acórdão: deu provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrido, nos termos da seguinte ementa: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE SUSPENDEU A ORDEM DE PENHORA DE VALORES. RECURSO DO EXEQUENTE ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DE VERBAS PÚBLICAS. INSUBSISTÊNCIA. REPASSE DE VALORES EM FAVOR DE ESCOLA DE SAMBA. VERBAS RECEBIDAS PELA AGRAVADA QUE NÃO SE ENQUADRAM NAS HIPÓTESES DO INCISO IX, DO ART. 833, DO NCPC. EDITAL PREVENDO O ESTÍMULO À CULTURA E HISTÓRIA LOCAL, SEM QUALQUER REFERÊNCIA ÀS ÁREAS DA EDUCAÇÃO, SAÚDE E/OU ASSISTÊNCIA SOCIAL. DESTINAÇÃO ESPECÍFICA DAS VERBAS INCAPAZ DE PREJUDICAR FUTUROS REPASSES DE VALORES À ESCOLA DE SAMBA, TENDO EM VISTA SER RELATIVA A PAGAMENTO DE SERVIÇO PRESTADO PELO EXEQUENTE EM BENEFÍCIO DA AGREMIAÇÃO. CARNAVALESCO QUE REALIZOU TRABALHO ARTÍSTICO EM PROL DA ESCOLA DE SAMBA, A QUAL SAGROU-SE VITORIOSA NO CARNAVAL DE 2016. ORDEM DE PENHORA QUE, POR ORA, DEVE SER MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 

Recurso especial: alega violação dos arts. 832, 833, I, IX, do CPC/15, 35, §5º, da Lei 13.019/14, bem como dissídio jurisprudencial. 

Sustenta a natureza impenhorável da verba pública obtida mediante projeto detalhado da sua destinação ao Carnaval de Florianópolis. 

Defende que o carnaval não se esgota enquanto fenômeno de cultura, lazer e turismo, atrelando-se também à finalidade educacional e de assistência social, haja vista que: 

i) os fins educacionais estão, indubitavelmente, ligados à cultura e folclore brasileiro, que, de modo incontroverso, fomentam a expressão artística, o turismo e a vivência histórica no Brasil, sobretudo por ser a oportunidade dada à comunidade e àqueles que assistem ao espetáculo cultural de aprimorarem o conhecimento acerca de temas como esporte, história, política, religiões, ou ainda um apelo popular desenvolvido pela escola de samba; 

ii) é visível a assistência social, pois o carnaval parte de um projeto social comunitário trabalhado o ano inteiro para que no início de cada ano seja disseminada toda atividade e produção artística desenvolvida pela comunidade que vive o samba, trazendo grande integração social e desenvolvimento comunitário. 

Assevera que os subsídios repassados pelo Município de Florianópolis para a realização do desfile oficial das Escolas de Samba do Carnaval na passarela “Nego Quirido” não podem ser objeto de bloqueio judicial para a quitação de dívidas pretéritas, de modo a defasar a imperiosa prestação de contas, pondo em risco a realização do Carnaval. 

Contrarrazões apresentadas às fls. 424-445 (e-STJ). 

Admissibilidade: o recurso foi admitido pelo TJ/SC. 

É o relatório. 

VOTO 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora): O propósito recursal consiste em definir se são penhoráveis as verbas recebidas por escola de samba a título de parceria com a administração pública. 

O Código de Processo Civil de 2015 estabelece que são impenhoráveis “os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”, bem como “os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social” (art. 833, I, IX). Igualmente, “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis” (art. 832). 

Por se tratar de artigos referentes a impenhorabilidades sua interpretação deve ser restritiva, sempre com foco no núcleo essencial que justifica a própria instituição da regra, isto é, o almejado equilíbrio entre a satisfação do crédito para o credor e a menor onerosidade para o devedor. 

O art. 35, §5º, da Lei 13.019/14 dispõe que os “equipamentos e materiais permanentes” adquiridos com recursos provenientes da celebração da parceria serão gravados com cláusula de inalienabilidade. Portanto, não são os recursos o objeto da restrição legal, mas o produto do seu investimento necessário à consecução do projeto de parceria. 

Nesse sentido, também afasta-se a hipótese de bens não sujeitos à execução por ato voluntário, pois as verbas adquiridas pela escola de samba seguem regramento estabelecido na Lei 13.019/14, sem qualquer dispositivo que faça menção de sua impenhorabilidade. 

A recorrente faz um grande exercício hermenêutico para dizer que os recursos recebidos para execução do Carnaval têm a mesma proteção conferida pelo art. 833, IX, do CPC, sob o argumento de que o carnaval não se esgota enquanto fenômeno de cultura, lazer e turismo, atrelando-se também à finalidade educacional e de assistência social. 

Nessa linha, afirma que os fins educacionais estariam, indubitavelmente, ligados à cultura e folclore brasileiro, que, de modo incontroverso, fomentam a expressão artística, o turismo e a vivência histórica no Brasil, sobretudo por ser a oportunidade dada à comunidade e àqueles que assistem ao espetáculo cultural de aprimorarem o conhecimento acerca de temas como esporte, história, política, religiões, ou ainda um apelo popular desenvolvido pela escola de samba. 

E prossegue ao defender que é visível a assistência social, pois o carnaval parte de um projeto social comunitário trabalhado o ano inteiro para que no início de cada ano seja disseminada toda atividade e produção artística desenvolvida pela comunidade que vive o samba, trazendo grande integração social e desenvolvimento comunitário. 

É inquestionável o valor social, cultural, histórico e turístico do carnaval brasileiro, uma das maiores expressões artísticas nacionais com alcance mundial. A multiplicidade das suas manifestações em todo o país fez com que a UNESCO reconhecesse o samba de roda do recôncavo baiano e o frevo do carnaval pernambucano como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Além deles, o Maracatu Nação, Maracatu de Baque Solto e as Matrizes do Samba são bens culturais igualmente salvaguardados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Este reconhecimento de envergadura nacional e internacional, todavia, não autoriza dizer por lei que sua promoção visa compulsoriamente à educação e à assistência social. 

A própria Lei 13.019/14 considera que a parceria entre a administração pública e as organizações da sociedade civil é feita “para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco” (art. 2º, III) jamais restringindo seu âmbito “para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social” (art. 833, IX, do CPC). 

A estratégia discursiva da recorrente ao tentar subsumir o carnaval aos conceitos de educação e assistência social, por mais persuasiva que possa parecer em outras áreas do conhecimento, acaba por extrapolar a interpretação restritiva das normas jurídico-processuais que versam sobre as impenhorabilidades. 

Acaso acolhida a argumentação da recorrente, com tamanha abertura conceitual das disposições do art. 833, IX, do CPC, nada escaparia da ideia de educação e de assistência social, pois, no limite, toda relação intersubjetiva poderia ser apreendida também no seu aspecto pedagógico ou social. 

Esta Corte Superior já decidiu controvérsia acerca da interpretação do art. 833, IX, do CPC, pontualmente sobre a possibilidade de penhora dos créditos vinculados ao programa Fundo de Financiamento Estudantil – FIES. 

No julgamento do REsp 1588226/DF (DJe 20/10/2017), a Terceira Turma reconheceu a impenhorabilidade dos recursos vinculados aos Certificados Financeiros do Tesouro - Série E (CFT-E), diante da efetiva prestação de serviços educacionais aos alunos beneficiados pelo financiamento estudantil. Inequívoco, nesta hipótese, que as instituições de ensino superior recebem os recursos públicos para aplicação compulsória em educação. 

No particular, o acórdão recorrido fez a interpretação do Edital de Seleção de Projetos Culturais do Município de Florianópolis para concluir que "o objetivo do repasse das referidas obras públicas é o estímulo à cultura e história local, não havendo qualquer menção de que tais valores seriam aplicados em educação, saúde ou assistência social" (e-STJ fl. 319). Rever este entendimento do Tribunal de origem sobre as cláusulas do contrato de parceria público-privada esbarra inevitavelmente no óbice da Súmula 5/STJ. 

De qualquer ângulo, não há como acolher o propósito recursal pela alínea "a" e "c" do permissivo constitucional, pois inexistente violação aos artigos 832, 833, I, IX, do CPC/15, 35, §5º, da Lei 13.019/14. 

Portanto, deve ser mantida a conclusão do TJ/SC de permitir a penhora de repasses de verbas públicas destinadas à escola de samba recorrente, para pagamento do crédito referente aos serviços prestados pelo recorrido. 

Forte nessas razões, CONHEÇO e NEGO PROVIMENTO ao recurso especial. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário