8 de maio de 2021

Filigrana doutrinária: Ação de Prestação de Contas e Crédito alimentar

[...] A prestação de contas, tecnicamente falando, consiste 'no relacionamento e na documentação comprobatória de todas as receitas e de todas as despesas referentes a uma administração de bens, valores ou interesses de outrem, realizada por força de relação jurídica emergente da lei ou do contrato', sendo que seu objetivo é liquidar dito relacionamento jurídico no seu aspecto econômico (Theodoro Junior, 2012, p. 81). No caso de se querer transpor referida figura para o direito de família (e essa deve ser a hipótese, pois o legislador optou pelo uso do termo 'prestação de contas', que tem significado jurídico o se vai encontrar é que um pai não é credor do outro em face do dever de poder familiar de modo que se possa conceber o dever de prestação de contas entre eles, no sentido técnico do termo. Quando um pai exerce o poder familiar, ele não exerce a função administrando bens, valores ou interesses do outro, mas age exercendo dever que lhe é cometido por lei, diretamente relacionado ao filho e no interesse deste. Para existir a obrigação de prestar contas, há de haver uma relação material entre os sujeitos da relação, na qual se verifique 'a existência efetiva do poder daquele que se diz credor das contas de sujeitar o demandado a prestá-los' (Theodoro Junior, 2012, p. 85). Inexistente essa relação, não há que se falar em dever de prestação de contas, a despeito de o legislador ter atribuído legitimidade a qualquer dos pais para tal finalidade ('qualquer dos genitores sempre será parte legítima'). Se não há a relação de direito material, a legitimidade reconhecida pela lei é vazia, pois sem objeto. Causa espécie, ainda, a previsão de que a prestação de contas possa ser objetiva ou subjetiva, sobre assuntos ou situações que, direta ou indiretamente, afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos - uma amplitude que a torna praticamente inatingível. Questões que afetem saúde física e educação até seriam admissíveis, em tese, pois de alguma concretude. Porém, não se vislumbra como conceber uma prestação de contas subjetiva, na medida em que o subjetivo reside no âmbito psíquico e emocional, no espírito da pessoa. Não se concebe que espécie de dever subjacente residiria aqui e onde se chegaria, ao final, com a prestação de contas subjetiva. Difícil conceber a possibilidade de comprovar a ocorrência de fatos subjetivos que, de alguma forma, afetem o filho, com a respectiva relação de causa e efeito. A mesma perplexidade nos ocorre quando pensamos em assuntos (matérias, temas, conversas) ou situações (acontecimentos, oportunidades) como objeto da prestação de contas que, direta ou indiretamente, afetem a saúde física e psicológica do filho. Mais, a prestação de contas está prevista como forma de 'possibilitar a supervisão' dos interesses dos filhos. Em tese, então, o pedido teria que ser justificado na intenção/necessidade de inspecionar para ser admitido. Com efeito, não se questiona que o pai guardião deva manter o filho sob estreita vigilância e proteção. Todavia, disso a pretender que tenha verdadeiro domínio sobre a vida do filho, sem que nada lhe passe, nada atinja o filho sem que antes saiba, como se devesse monitorá-lo ininterruptamente, tudo para que, eventualmente, possa prestar contas a respeito de todos os assuntos ou situações que, direta ou indiretamente, o alcancem, parece-nos inviável. Prestar contas do resfriado, da infecção de garganta, do medo de cachorro que não tinha antes. Prestar contas porque o filho está triste, parece deprimido; está sem fome ou come demais. Não quer comer salada, mas antes comia. Falou um palavrão, desrespeitou o avô. Recusou ler o livro que ganhou. Caiu da bicicleta e se machucou; houve ou não negligência, e assim por diante, em infindáveis hipóteses. E o que dizer das inúmeras possibilidades acerca do elemento causador da situação: a escola, os amigos, os vizinhos, a televisão, a internet, a festinha de aniversário, a casa da avó e seu entorno, os primos, quando estava com o pai no mercado, quando estava com a mãe na farmácia. Difícil imaginar quem vai prestar contas disso e de que forma seria possível. Ainda que se pudesse admitir a obrigação de prestar contas, tratar-se-ia de obrigação inexequível, como regra, salvo situações excepcionais. Será necessário, portanto, especial cautela e ponderação acerca da viabilidade e utilidade de ações nesse sentido, de modo a não permitir ingerência despropositada na esfera de cuidados e diligências do pai guardião.


Denise Damo Comel. in: Revista Síntese, Direito de Família, RDF n.º 92, p. 98/99, 

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