15 de novembro de 2021

É inconstitucional ato normativo que exclui o direito dos candidatos com deficiência à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos

Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/10/info-1028-stf.pdf


CONCURSO PÚBLICO É inconstitucional ato normativo que exclui o direito dos candidatos com deficiência à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos 

A exclusão da previsão de adaptação das provas físicas para candidatos com deficiência viola o bloco de constitucionalidade composto pela Constituição Federal e pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (Decreto Legislativo 186/2008), incorporada à ordem jurídica brasileira com o “status” de Emenda Constitucional, na forma do art. 5º, § 3º, da CF/88. Duas teses fixadas pelo STF para o tema: 1) É inconstitucional a interpretação que exclui o direito de candidatos com deficiência à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos. 2) É inconstitucional a submissão genérica de candidatos com e sem deficiência aos mesmos critérios em provas físicas, sem a demonstração da sua necessidade para o exercício da função pública. STF. Plenário. ADI 6476/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 3/9/2021 (Info 1028). 

O caso concreto foi o seguinte: 

O Decreto nº 9.508/2018, de 25/09/2018, tratou sobre a participação de pessoas com deficiência em concursos públicos e em processos seletivos no âmbito da administração pública federal direta e indireta. Um ponto interessante do Decreto nº 9.508/2018 foi que ele trouxe a previsão no sentido de que as provas físicas deveriam ser adaptadas para candidatos com deficiência. Ocorre que, pouco tempo depois, em 30/10/2018, foi editado o Decreto nº 9.546/2018, excluindo a previsão de adaptação das provas físicas para candidatos com deficiência e estabelecendo que os critérios de aprovação dessas provas poderiam seguir os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos. Vamos comparar a redação original e as modificações promovidas: 

Redação original do Decreto 9.508/2018 

Art. 3º Para os fins do disposto neste Decreto, os editais dos concursos públicos e dos processos seletivos de que trata a Lei nº 8.745, de 1993, indicarão: (...) III - a previsão de adaptação das provas escritas, físicas e práticas, do curso de formação, se houver, e do estágio probatório ou do período de experiência, estipuladas as condições de realização de cada evento e respeitados os impedimentos ou as limitações do candidato com deficiência; (...) Não havia inciso VI 

Não havia § 4º no art. 4º. 


Redação do Decreto 9.508/2018 após as alterações promovidas pelo Decreto 9.546/2018 

Art. 3º Para os fins do disposto neste Decreto, os editais dos concursos públicos e dos processos seletivos de que trata a Lei nº 8.745, de 1993, indicarão: (...) III - a previsão de adaptação das provas escritas e práticas, inclusive durante o curso de formação, se houver, e do estágio probatório ou do período de experiência, estipuladas as condições de realização de cada evento e respeitados os impedimentos ou as limitações do candidato com deficiência; (...) VI - a previsão da possibilidade de uso, nas provas físicas, de tecnologias assistivas que o candidato com deficiência já utilize, sem a necessidade de adaptações adicionais, inclusive durante o curso de formação, se houver, e no estágio probatório ou no período de experiência. 

Art. 4º (...) § 4º Os critérios de aprovação nas provas físicas para os candidatos com deficiência, inclusive durante o curso de formação, se houver, e no estágio probatório ou no período de experiência, poderão ser os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos, conforme previsto no edital. 

ADI 

O Partido Socialista Brasileiro – PSB ajuizou ADI contra o Decreto nº 9.546/2018 (segundo decreto) alegando que ele seria inconstitucional, dentre outros motivos, por violar a previsão constitucional que determina a proteção da pessoa com deficiência. No mérito, requer a declaração de inconstitucionalidade total do Decreto nº 9.546/2018 ou, subsidiariamente, que lhe seja conferida interpretação conforme a Constituição, a fim de que se declare a inconstitucionalidade de qualquer interpretação que cause prejuízos a candidatos com deficiência. 

O STF concordou com os argumentos do autor da ADI? 

SIM. O Decreto nº 9.546/2018, ao excluir a previsão de adaptação das provas físicas para candidatos com deficiência violou o bloco de constitucionalidade composto pela Constituição Federal e pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (Decreto Legislativo nº 186/2008), incorporada à ordem jurídica brasileira com o “status” de Emenda Constitucional, na forma do art. 5º, § 3º, da CF/88. 

Proteção constitucional às pessoas com deficiência 

No tocante ao trabalho, a Constituição Federal de 1988 assegurou às pessoas com deficiência: • a proibição de que o trabalhador com deficiência sofra qualquer discriminação relativa a salário e a critérios de admissão (art. 7º, XXXI); • a previsão de reserva de um percentual de vagas dos cargos e empregos públicos (art. 37, VIII). 

Além dessa proteção acima exposta, é muito importante lembrar da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York), assinada em 30/03/2007, aprovada no Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 186/2008 e promulgada pelo Decreto n. 6.949/2009. A Convenção de Nova York possui status de emenda constitucional em nosso país, considerando que se trata de convenção internacional sobre direitos humanos que foi aprovada, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, conforme previsto no § 3º do art. 5º da CF/88: 

Art. 5º (...) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 

Desse modo, a Convenção compõe o chamado “bloco de constitucionalidade” e constitui parâmetro para o controle de constitucionalidade. De forma bem simplificada, bloco de constitucionalidade significa que a Constituição pode ser formada não apenas pelos dispositivos que estão ali expressamente escritos, mas também por outras normas não presentes no texto, como, por exemplo, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A Convenção tem como uma de suas principais preocupações a proibição de qualquer tipo de discriminação em razão da deficiência que tenha “o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. Como se vê, ela veda não apenas a conduta com o propósito, mas também aquela com o efeito de diferenciar com base na deficiência. Nesse último caso tem-se a proibição da discriminação indireta, que ocorre quando práticas aparentemente neutras geram empecilhos a que as pessoas com deficiência possam exercer os seus direitos. Conforme explica André de Carvalho Ramos: 

“A discriminação pode ser direta ou indireta: a discriminação direta assume um dos critérios de diferenciação vistos acima para gerar desvantagem de modo desigual e injusto; a discriminação indireta adota critério aparentemente neutro, mas que implica em desvantagem maior para os que pertencem a determinado grupo. (...) A discriminação indireta é mais sutil: consiste na adoção de critério aparentemente neutro (e, então, justificável), mas que, na situação analisada, possui impacto negativo desproporcional em relação a determinado segmento vulnerável. A discriminação indireta levou à consolidação da teoria do impacto desproporcional, pela qual é vedada toda e qualquer conduta (inclusive legislativa) que, ainda que não possua intenção de discriminação, gere, na prática, efeitos negativos sobre determinados grupos ou indivíduos. Na discussão sobre a Emenda Constitucional n. 20/98, que limitou os benefícios previdenciários a R$ 1.200,00, discutiu-se a quem caberia pagar a licença-maternidade no caso da mulher trabalhadora receber salário superior a tal valor. Caso a interpretação concluísse que o excedente seria pago pelo empregador, a regra aparentemente neutra (limite a todos os benefícios) teria um efeito discriminatório no mercado de trabalho e um impacto desproporcional sobre a empregabilidade da mulher, pois aumentariam os custos para o patrão. Com isso, a regra teria um efeito de discriminação indireta, contrariando a regra constitucional proibitiva da discriminação, em matéria de emprego, por motivo de sexo. Nesse sentido, o STF decidiu que “na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, XXX, da CF/1988), proibição que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da CF. (...) Ação direta de inconstitucionalidade é julgada procedente, em parte, para se dar ao art. 14 da EC 20, de 15-12-1998, interpretação conforme à Constituição, excluindose sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, XVIII, da CF” (ADI 1.946, rel. Min. Sydney Sanches, j. 3-4-2003, Plenário, DJ de 16-5-2003).” (Curso de Direitos Humanos. 8ª ed., São Paulo: Saraiva). 

Observada a proporcionalidade, é preciso combater tais condutas, permitindo que a pessoa com deficiência possa exercer a sua liberdade de escolha na condução de sua vida – inclusive quanto ao trabalho –, tal como as outras pessoas, e que possa participar efetivamente na vida política, pública e cultural. Conforme explicou o Min. Roberto Barroso, “não basta que o meio não seja discriminatório, é preciso que seja antidiscriminatório”. Bruno Galindo define o direito antidiscriminatório como sendo: 

“(...) um conjunto de medidas jurídicas em âmbito constitucional e infraconstitucional que almeja reduzir a situação de vulnerabilidade de cidadãos e grupos sociais específicos através da proibição de condutas discriminatórias pejorativas, a exemplo da criação e manutenção de privilégios injustificáveis à luz das contemporâneas teorias da justiça, e, por outro lado, da implementação, quando necessário, de políticas públicas de discriminação reversa ou positiva, sempre no sentido de promover tais grupos e cidadãos a uma situação de potencial igualdade substancial/material, políticas estas normalmente transitórias até que se atinja uma redução significativa ou mesmo extinção da vulnerabilidade em questão.” (GALINDO, Bruno. O direito antidiscriminatório entre a forma e a substância: igualdade material e proteção de grupos vulneráveis pelo reconhecimento da diferença, in: Direito à diversidade (orgs.: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão). São Paulo: Atlas, 2015, p. 51. 

Adaptação razoável 

Outro instituto que merece destaque é o da adaptação razoável. Nos termos do artigo 2 da Convenção: 

“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; 

Em outras palavras, significa que as pessoas com deficiência fazem jus às adaptações do meio social e essa adaptação pode ser exigida desde que não imponha um ônus desproporcional. Essa análise de proporcionalidade deve considerar, de um lado, o estigma social a que essas pessoas estão submetidas como parte dos custos e, de outro lado, o fato de que a eliminação da discriminação é, em si, um benefício para toda a sociedade. Desse modo, pode-se dizer que o Decreto nº 9.546/2018 violou o dever que o Brasil possui de garantir a adaptação razoável em favor das pessoas com deficiência. Nesse sentido, confira o artigo 5 da Convenção: 

Artigo 5 (...) 3. A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida. 

Interpretação conforme a Constituição 

Como vimos acima, o art. 3º, VI, do Decreto prevê a possibilidade de o candidato com deficiência utilizar nas provas físicas suas próprias tecnologias assistivas, sem a necessidade de adaptações adicionais. O STF afirmou que só existe uma forma de interpretar esse dispositivo a fim de que ele possa ser considerado constitucional. Que forma é essa? Deve-se entender que esse inciso VI prevê uma faculdade em favor do candidato com deficiência. Em outras palavras, se a pessoa com deficiência quiser utilizar suas próprias tecnologias assistivas, ele tem essa faculdade. Isso não significa, contudo, que a única forma de adaptação é a tecnologia assistiva. Assim, é inconstitucional a interpretação que exclua o direito à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos. O § 4º do art. 4º do Decreto, por sua vez, estabelece que os critérios de aprovação nas provas físicas poderão ser os mesmos para candidatos com e sem deficiência. A única leitura constitucionalmente adequada desse dispositivo é aquela de acordo com a qual a pessoa com deficiência somente poderá ser submetida aos mesmos critérios de avaliação física em concursos públicos quando essa exigência for indispensável ao exercício das funções de um cargo público específico, não se aplicando indiscriminadamente a todo e qualquer processo seletivo. A previsão genérica de submissão de pessoas com e sem deficiência aos mesmos critérios em provas físicas pode, na prática, resultar em burla à garantia de reserva de vagas prevista no art. 37, VIII, CF/88. 

Teses fixada pelo STF: 

É inconstitucional a interpretação que exclui o direito de candidatos com deficiência à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos. É inconstitucional a submissão genérica de candidatos com e sem deficiência aos mesmos critérios em provas físicas, sem a demonstração da sua necessidade para o exercício da função pública. STF. Plenário. ADI 6476/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 3/9/2021 (Info 1028). 

Conclusão 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade, para fixar interpretação conforme a Constituição, no sentido de que: (i) o art. 3º, VI, do Decreto nº 9.508/2018, com redação dada pelo Decreto nº 9.546/2018, estabelece uma faculdade em favor do candidato com deficiência, que pode fazer uso de suas próprias tecnologias assistivas e de adaptações adicionais, se assim preferir; e (ii) o art. 4º, § 4º, do Decreto 9.508/2018, acrescentado pelo Decreto nº 9.546/2018, que estabelece que os critérios de aprovação nas provas físicas poderão ser os mesmos para candidatos com e sem deficiência — somente é aplicável às hipóteses em que essa exigência for indispensável ao exercício das funções próprias de um cargo público específico. 

DOD DICA 

Muita atenção com essas três expressões: bloco de constitucionalidade, discriminação indireta e adaptação razoável.


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