Rcl 36476 / SP - Da gênese da reclamação
A reclamação constitucional é fruto de construção jurisprudencial do
STF, durante a segunda metade do século XX, tratando-se de instituto sem
correspondente no Direito Comparado. Sua gênese remonta a julgados, em que,
com inspiração na teoria dos poderes implícitos do direito estadunidense (implied
powers), o STF começou a dar contornos a um instituto voltado à preservação de
sua competência e à garantia da autoridade de seus julgados.
Em sua evolução histórico-jurídica, a reclamação passou por diversas
fases, que vão desde a sua criação pretoriana à remodelagem do instituto
implementada pelo Código de Processo Civil de 2015, com a redação dada pela Lei
13.256/2016. Cada uma dessas fases trouxe ao instituto novas feições, que,
paulatinamente agregadas, redundaram na reclamação constitucional que hoje se
conhece.
É interessante anotar que o estudo dessas fases compreende, em boa
medida, a análise da jurisprudência emanada dos Tribunais Superiores – no início,
apenas o STF e, após o advento da Constituição Federal de 1988, também o STJ.
Isso se dá porque, derivando a reclamação de criação jurisprudencial, carecia o
instituto de desenvolvimento doutrinário e legal (o que foi sendo agregado pouco a
pouco), sendo a jurisprudência a principal fonte normativa da reclamação, ao
menos até a vigência do CPC/2015.
Ainda no século passado e nos primeiros anos do presente, alguns doutrinadores se dedicaram a estudar a reclamação sob o prisma dessa divisão em
fases histórico-jurídicas, a partir de exemplar trabalho desenvolvido por José
Pacheco da Silva (“A 'Reclamação' no STF e no STJ de Acordo com a Nova
Constituição”).
Sem descurar da importância de tais estudos para a densificação da
dogmática da reclamação, é certo que, para o âmbito de atuação deste Superior
Tribunal de Justiça, são relevantes os marcos histórico-jurídicos posteriores à Carta
Magna de 1988, os quais revelam a compreensão atribuída pelo Tribunal ao
instituto, e, por outro lado, permitem investigar os efetivos impactos decorrentes
do advento do CPC/2015.
II. Da reclamação no STJ antes da vigência do CPC/2015.
Com a Constituição Federal de 1988, a reclamação, que até então
estava positivada apenas no Regimento Interno do STF, foi alçada a nível
constitucional, além de ter seu cabimento estendido a este Superior Tribunal de
Justiça, nos termos do art. 105, I, “f”.
Em sede legal, houve a publicação da lei 8.038/90, que, nos arts. 13 a
18, sucintamente regulava o instituto, dispondo acerca de legitimidade, prova,
tutela antecipada, conteúdo da decisão e procedimento. Esse regramento foi
reproduzido no Regimento Interno do STJ, passando a constar nos arts. 187 a 192.
Ainda, durante essa fase, foram travadas neste Tribunal relevantes
discussões que aperfeiçoaram os contornos do instituto.
De início, na mesma linha propugnada pelo STF, consolidou-se a
orientação quanto ao cabimento restrito da reclamação para preservar a
competência do STJ de indevidas intromissões, bem como para garantir, no âmbito
de uma mesma relação processual, a autoridade de decisão aqui proferida, nos estreitos limites das hipóteses do art. 105, I, “f”, da CF/88, reproduzidas no art. 187
do RISTJ. É dizer, concebeu-se a reclamação, unicamente, como meio de garantir
que os julgados da Corte projetassem seus efeitos programados entre as partes e
no processo aos quais foram destinados.
Nessa diretriz, considerando a restrita legitimidade ativa, bem como a
causa de pedir típica da reclamação, este Tribunal sempre rejeitou a sua utilização
por quem não estivesse sujeito aos efeitos da prévia decisão desta Corte (Rcl
1.590/MS, 1ª Seção, DJ 25/10/2004), bem como a sua utilização como sucedâneo
recursal, ou seja, como instrumento para questionar o conteúdo da decisão
impugnada ou eventual vício procedimental (Rcl 184/SP, 1ª Seção, DJ 25/10/1993
e Rcl 1.375/MG, 2ª Seção, DJ 01/03/2004).
Vedou-se, também, o cabimento de reclamação para a interpretação
de decisão do STJ, e não para garantir o seu fiel cumprimento (Rcl 84/PR, 1ª Seção,
DJ 25/05/92).
Ademais, se reconheceu, por razões evidentes, que a reclamação não
é cabível contra ato do próprio Tribunal (Rcl 509/SP, Corte Especial, DJ
29/06/1998) e, a respeito de sua natureza jurídica, a tendência da Corte, desde o
início, foi de considerar a reclamação uma manifestação do exercício do direito de
ação, de índole constitucional (Rcl 407/DF, 3ª Seção, DJ 08/09/1997).
Ainda nessa fase do instituto da reclamação, questão que merece
especial destaque – sobretudo para o deslinde da controvérsia em análise neste
voto – diz com a promulgação da Lei 11.672/2008, que modificou o então vigente
Código de Processo Civil de 1973 para nele incorporar a sistemática de julgamento
de recursos especiais repetitivos.
Em que pese essa reforma tenha tido o nítido propósito de
racionalizar a prestação jurisdicional do STJ em face do fenômeno brasileiro da litigiosidade em massa, a implementação da sistemática dos recursos especiais
repetitivos teve o efeito de aumentar, consideravelmente, o número de
reclamações ajuizadas neste STJ, o que ensejou novos debates quanto ao instituto.
O primeiro desses debates ocorreu após a Corte Especial deliberar, na
Questão de Ordem no Ag 1.154.599/SP (DJe de 12/05/2011), que não seria cabível
o agravo de instrumento do art. 544 do CPC/73 (posteriormente transformado no
agravo em recurso especial pela Lei 12.322/2010), quando o Tribunal de origem
nega seguimento ao recurso especial com fundamento na coincidência entre o
acórdão recorrido e a orientação paradigmática do STJ (art. 543-C, § 7º, I, do
CPC/73). Segundo definido à época, a negativa de seguimento do recurso especial,
se tida por equivocada, deveria ser impugnada mediante agravo interno no próprio
Tribunal de origem, pois permitir a interposição de agravo ao STJ violaria o espírito
que norteou a implantação da sistemática dos repetitivos pela Lei 11.672/2008.
Nesse cenário, como um verdadeiro contorno ao fim da via recursal do
agravo, uma leva de reclamações chegou a esta Corte, com a pretensão de que
fosse avaliado, nos respectivos processos individuais, eventual equívoco na
aplicação da tese repetitiva.
Essa tentativa, contudo, foi categoricamente refutada pela
jurisprudência do STJ, que ratificou o entendimento de que a reclamação apenas
podia ser proposta pela parte que se sujeitava aos efeitos de decisão concreta do
Tribunal. Nesse sentido, vejam-se, a título de exemplo: AgRg na Rcl 3.644/DF, 1ª
Seção, DJe 26/11/2009; AgRg na Rcl 5.065/PB, 1ª Seção, DJe 05/04/2011; AgRg na
Rcl 5.121/SP, 2ª Seção, DJe 02/03/2011; AgRg na Rcl 10.306/RS, 2ª Seção, DJe
03/12/2012.
Ademais, rejeitou esta Corte o manejo da reclamação para a
impugnação de decisão do Tribunal de origem que, diante da afetação de um recurso especial representativo da controvérsia, sobresta processo com idêntica
matéria jurídica (AgRg na Rcl 4.703/RJ, 2ª Seção, DJe 09/11/2010; AgRg na Rcl
4.703/RJ, 2ª Seção, DJe 09/11/2010 e AgRg na Rcl 6.581/PR, 1ª Seção, DJe
07/11/2011).
A jurisprudência mencionada realça a clássica concepção do instituto
adotada por esta Corte ao longo de sua existência: é a reclamação,
fundamentalmente, uma ação de índole constitucional, que tem por função
exclusiva a preservação da competência da Corte e a garantia, voltada às partes de
uma determinada relação processual, da autoridade da decisão emanada do
Tribunal.
Da Resolução STJ n. 12/2009
Necessário acrescentar, não obstante, que nesse mesmo período o
STJ se deparou com outra “espécie” de reclamação, totalmente alheia à natureza
do instituto. É que o STF, nos autos do recurso extraordinário n. 571.572-8/BA,
declarou, em dita interpretação sistemática da Constituição, que seria cabível, em
caráter excepcional, a reclamação prevista no art. 105, I, “f”, da CF, “para fazer
prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais
estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da
legislação infraconstitucional”.
Em que pese essa previsão de reclamação tenha dado ao instituto
verdadeira característica de recurso, não restou ao STJ outra alternativa senão
cumprir a determinação advinda da Corte Suprema, desiderato para o qual foi
editada a Resolução n. 12/2009.
III. A vigência do CPC/2015 e seus reflexos no cabimento da reclamação.
O Código de Processo Civil de 2015, a par de revogar parcialmente a
Lei 8.038/90, normatizou, de maneira mais extensiva, o instituto da reclamação,
trazendo, nos arts. 988 a 993, regras quanto à competência, à legitimidade ativa,
ao procedimento, ao dispositivo da decisão e, especialmente, quanto às hipóteses
de cabimento.
O aumento da regulação, mediante texto de lei, pode, à primeira vista,
trazer aos intérpretes do Direito a impressão de que as incertezas sobre o instituto
foram reduzidas. No entanto, como nos alerta Gustavo Azevedo, com base no
escólio de Tercio Sampaio Ferraz Junior, isso não é verdade:
“Cuida-se de erro, fruto da confusão entre texto legal e norma. A maior
quantidade de dispositivos apenas aumenta as incertezas. O alargamento
das fontes formais amplia as inúmeras possibilidades interpretativas
possíveis. As incertezas são ainda maiores com mais disposições legais
tratando da reclamação.
(...)
Os novos dispositivos sobre reclamação trazem incertezas jurídicas, o que
não é percebido prima facie pelo profissional do Direito. Cabe à dogmática
processual civil 'mostrar que o problema envolve incertezas ainda maiores
que rompem o sentido estreito do dogma que deverá, então, prever o que
não previu, dizer o que não disse, regular o que não regulou'.
As incertezas, fruto da reclamação, são profundas. Não apenas porque
aumentaram as regras regulando o instituto, mas também porque foram
criadas novas hipóteses de cabimento, sobre as quais pairam dúvidas. Ao
ser publicada nova lei, não se sabe, a princípio, quais são as melhores
soluções para as incertezas argumentativas sobre as novas hipóteses de
cabimento (...). O papel da dogmática é controlar e reduzir as
possibilidades argumentativas sobre a reclamação constitucional”
(Reclamação Constitucional no Direito Processual Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2018, p. 37).
Como menciona o referido autor, sobre todos os aspectos da
reclamação, as incertezas são ainda mais abundantes em relação às hipóteses de
cabimento, que foram incrementadas pelo novo Código, e, antes mesmo deste
entrar em vigor, foram modificadas pela Lei 13.256/2016.
Com efeito, em sua redação original, o art. 988 do CPC/2015 previu o
cabimento da reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: a)
preservar a competência do Tribunal; b) garantir a autoridade das decisões do
Tribunal; c) garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em
controle concentrado de constitucionalidade; d) garantir a observância de
enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em
julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de
competência.
Dessas hipóteses, a redação original do CPC/2015 inovou o
ordenamento anterior ao prever o cabimento da reclamação como garantia de
observância de “precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em
incidente de assunção de competência”. As demais hipóteses, dispostas nas alíneas
“a”, “b”, “c” e “d”, primeira parte, já encontravam previsão em outras normas, em
especial a Constituição Federal, as Leis que regulam o controle concentrado de
constitucionalidade e os Regimentos Internos do STF e do STJ.
Quanto à nova hipótese, esta contemplava duas espécies de
precedentes: (i) aquele resultante de incidente de assunção de competência (IAC)
e, (ii) aquele proferido em julgamento de “casos repetitivos”, expressão cujo
alcance pode ser extraído do art. 928 do Código, segundo o qual considera-se
julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em incidente de resolução
de demandas repetitivas (IRDR) e em recursos especial e extraordinário
repetitivos.
Ocorre que, antes mesmo de entrar em vigor o CPC/2015, foi editada
e publicada a Lei 13.256/2016, que operou mudanças significativas em diversos
institutos e regras processuais, especialmente em relação aos Tribunais
Superiores.
Especificamente quanto à reclamação, houve a alteração da redação
do art. 988 do CPC, que passou a contemplar o cabimento de reclamação para: a)
preservar a competência do Tribunal; b) garantir a autoridade das decisões do
Tribunal; c) garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão
do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; d)
garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente
de resolução de demandas repetitivas (IRDR) ou de incidente de
assunção de competência (IAC).
A propósito, confira-se a vigente redação do dispositivo:
“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério
Público para:
I - preservar a competência do tribunal;
II - garantir a autoridade das decisões do tribunal; III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de
decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade;(Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016) IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento
de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de
incidente de assunção de competência;(Redação dada pela Lei nº
13.256, de 2016)
[...]
§ 5º É inadmissível a reclamação: (Redação dada pela Lei nº 13.256,
de 2016)
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada; (Incluído
pela Lei nº 13.256, de 2016)
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso
extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido
em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando
não esgotadas as instâncias ordinárias. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016)
Ou seja, a anterior previsão de reclamação para garantir a observância
de precedente oriundo de casos repetitivos foi excluída, passando a constar, nas
hipóteses de cabimento, apenas o precedente oriundo de IRDR, que é espécie
daquele. Houve, portanto, a supressão do cabimento para a observância
de acórdão proferido em recursos especial e extraordinário repetitivos.
Contudo, paradoxalmente, a mesma Lei 13.256/2016 promoveu
outra mudança no art. 988 do CPC, agora em seu parágrafo 5º. Foi acrescentado a
este parágrafo, que inicialmente apenas asseverava a inadmissibilidade da
reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada, um
segundo inciso, tratando da inadmissibilidade da reclamação “proposta para
garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão
geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos
extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as
instâncias ordinárias”.
Quer dizer, no mesmo ato normativo, o legislador visivelmente
excluiu uma hipótese de cabimento da reclamação e, passo seguinte,
regulamentou essa hipótese que acabara de excluir, agregando-lhe um
pressuposto de admissibilidade.
Ora, sob um ponto de vista lógico, essas duas modificações são
inconciliáveis entre si.
Consequentemente, apenas da conjugação da redação atual dos
incisos do art. 988 e do inciso II do parágrafo 5º, não é possível extrair, com
segurança, conclusão quanto ao cabimento, ou não, da reclamação que visa à
observância de tese proferida em recursos especial ou extraordinário repetitivos.
Por isso, mostra-se impositiva a investigação de outros elementos
interpretativos que conduzam à solução da questão.
A. Do aspecto topológico
Primeiramente, uma das técnicas que pode ser utilizada para o
deslinde da controvérsia apresentada é o exame topológico do próprio art. 988 do
CPC.
Isso porque, como princípio, o lugar em que determinada disposição é
inserida no texto legal pode esclarecer algo a respeito da sua abrangência e
alcance. As subpartes de um artigo – ou seja, as alíneas, incisos e parágrafos – não
apresentam, todas, a mesma hierarquia e abrangência, devendo ser harmonizadas
com o conteúdo principal contido no caput.
Nessa linha, a Lei Complementar n. 95/98, ao dispor sobre a
elaboração e redação das leis, estabelece em seu art. 11 que, visando à obtenção
de ordem lógica: (i) expressa-se por meio dos parágrafos os aspectos
complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra
por este estabelecida e, ainda, (ii) promovem-se as discriminações e
enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.
Sob esse norte, verifica-se que, de fato, o art. 988 do CPC, ao
pretender regular o cabimento da reclamação, se vale de incisos para enumerar as
respectivas hipóteses (incisos I a IV), utilizando parágrafos para regular outros
aspectos relacionados ao cabimento, bem como para estabelecer exceções. Por
exemplo, o parágrafo 1º dispõe sobre o cabimento perante qualquer Tribunal – complementando, portanto, o caput –, e o próprio parágrafo 5º, em seu primeiro
inciso, prevê uma exceção à regra do caput, dizendo ser inadmissível a reclamação
proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada.
Nesse cenário, não se mostra coerente afirmar que o parágrafo 5º,
inciso II, do art. 988 veicularia uma nova hipótese de cabimento da reclamação.
Estas hipóteses, repise-se, foram elencadas pelos incisos do caput, sendo que, por
outro lado, o parágrafo se inicia, ele próprio, anunciando que trataria de situações
de inadmissibilidade da reclamação.
B. Do contexto político-jurídico da reforma operada pela Lei
13.256/2016
Certamente, esse aspecto topológico não encerra toda a
interpretação quanto às hipóteses de cabimento da reclamação e a reforma
operada pela Lei 13.256/2016, devendo ser também considerado o contexto
jurídico e político em que o referido ato normativo foi editado. A investigação da
occasio legis (ocasião legal) é de relevância para a interpretação da norma, como
nos ensina o jurisconsulto Carlos Maximiliano:
"Nenhum acontecimento surge isolado; com explicar a sua origem, razão
de ser, ligação com os ouros, resulta o compreender melhor a ele próprio.
Precisa, pois, o aplicador do Direito transportar-se, em espírito,
ao momento e ao meio em que surgiu a lei, e aprender a relação entre as
circunstâncias ambientes, entre outros fatos sociais e a norma; a
localização desta na série dos fenômenos sociológicos, todos em evolução
constante (1).
A fim de descobrir o alcance eminentemente prático do texto, coloca-se o
intérprete na posição do legislador: procura saber por que despontou a
necessidade e qual foi primitivamente o objeto provável da regra, escrita
ou consuetudinária; põe a mesma em relação com todas as circunstâncias
determinantes do seu aparecimento, as quais, por isso mesmo, fazem
ressaltar as exigências morais, políticas e sociais, econômicas e até mesmo
técnicas, a que os novos dispositivos deveriam satisfazer; estuda, em
suma, o ambiente social e jurídico em que a lei surgiu; os motivos da
mesma, a sua razão de ser; as condições históricas apreciáveis como causa
imediata da promulgação” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 21ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 136)
É de conhecimento geral na comunidade jurídica que, quando promulgada a versão inicial do Código de Processo Civil de 2015, este STJ,
juntamente com o STF, manifestou intensa preocupação quanto ao impacto de
algumas das novas regras na cotidiana atividade jurisdicional do Tribunal.
O temor da Corte, que infelizmente se arrasta há mais de uma década,
mesmo antes da criação da sistemática dos recursos especiais repetitivos, diz com
o crescente número de processos que aqui são distribuídos, situação que
inevitavelmente compromete a celeridade e a qualidade da prestação jurisdicional
esperada pelo jurisdicionado. É fato que o STJ, com apenas 33 Ministros, não
possui o aparelho necessário para revisar, individualmente, todos os processos que
tramitam no território nacional, boa parte deles versando sobre controvérsias de
massa.
Com a promulgação do CPC/2015, esse receio se agravou. Um dos
aspectos mais inquietantes trazidos pelo Novo Código era o fim do prévio exame
da admissibilidade do recurso especial pelos Tribunais de origem, regra que
acarretaria, logo no início da vigência do Código, a subida imediata de centena de
milhares de recursos.
Foi por isso que representantes do STJ, e também do STF,
encaminharam aos membros do Poder Legislativo o pleito para que fosse
restaurado o duplo juízo de admissibilidade até então vigente. Essa demanda foi
acolhida no Projeto de Lei nº 2.384/2015, o qual, ao final, resultou na
mencionada Lei 13.256/2016.
Acontece que a preocupação relativa ao juízo de admissibilidade dos
recursos especiais e extraordinários não foi a única externada pelo STJ e STF ao
Congresso Nacional. A redação original do CPC/15 também gerava risco grave de
incremento da sobrecarga nas atividades destes Tribunais quanto ao julgamento
de reclamações e agravos, mormente em se tratando de discussão de temas repetitivos.
Quanto a esse aspecto, também se convenceram os membros do
Poder Legislativo, que propuseram e votaram o Projeto de Lei nº 2.468/2015, que, igualmente, resultou na Lei 13.256/2016 (este segundo projeto, vale registrar,
tramitou em apenso ao PL 2.384/2015, ao qual foi incorporado na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados).
A exposição de motivos do PL 2.468/2015 deixa nítida a intenção do
legislador de não inviabilizar a prestação jurisdicional no STJ e no STF,
dispensando-os, para tanto, do julgamento de reclamações e agravos que
tenham por objeto temas decididos em recursos repetitivos e em
repercussão geral.
Por sua clareza, convém transcrever, in verbis, os termos da
justificativa apresentada pelo proponente da reforma, Deputado Leonardo Picciani:
“O projeto que ora se apresenta tem a finalidade de alterar o Código de
Processo Civil aprovado recentemente. As alterações encaminhadas, no
entanto, são bastante pontuais e em nada desnaturam a vocação da novel
legislação.
A intenção é evitar que nova a disciplina, particularmente
quanto aos recursos especiais repetitivos e à repercussão geral
nos recursos extraordinários, termine por invalidar esforços que
vêm sendo envidados há cerca de uma década, no sentido de
organizar procedimentos concernentes à racionalização dos
trabalhos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal
de Justiça, e por inviabilizar sua missão constitucional. Nesse
sentido, é fundamental que sejam revistas normas pertinentes aos
recursos para os tribunais superiores.
Destaque-se que as alterações do presente projeto não inovam as
competências dos tribunais ordinários, antes as mantêm, pelo menos
como ainda são até a vigência do Novo CPC.
[...]
O cabimento de reclamações e agravos aos tribunais superiores
das decisões das Cortes de origem e demais juízos que apliquem
os precedentes originados dos julgamentos com repercussão
geral (STF) ou em recursos repetitivos (STJ) (arts. 988, IV, e
1.042, I, II e III), inviabilizará, em pouco tempo, o
funcionamento destas Cortes superiores, configurando um
retrocesso sem precedentes no processo de racionalização do trabalho de todo o Poder Judiciário, inaugurada com a
sistemática de julgamento por precedentes, viabilizada pela
reforma do Poder Judiciário, em 2004 e com a consequente
implantação da repercussão geral nos recursos extraordinários,
seguida do regime de julgamento de recursos repetitivos no STJ. Pautadas na perspectiva da legitimidade dos precedentes das Cortes
superiores, na interpretação da legislação federal e da Constituição, as
normas atualmente vigentes permitiram que, uma vez decididas questões
constitucionais de repercussão geral ou questões infraconstitucionais de
natureza repetitiva, as decisões das demais instâncias se adequassem ao
entendimento dado pelos tribunais superiores, eliminando-se a
insegurança jurídica que gerava a possibilidade de cada processo alçar
individualmente os órgãos de cúpula. Produziu-se, com isso, pela primeira
vez na história, a racionalização da atividade judiciária em todo o país, e
garantiu-se maior estabilidade e respeito aos precedentes dos órgãos
jurisdicionais superiores, que têm a missão de garantir a coerência na
interpretação da legislação constitucional e infraconstitucional.
Com o objetivo de assegurar a efetividade das mudanças
havidas, os tribunais superiores assentaram, em sua
jurisprudência, que não admitiriam recursos nem reclamação
contra as decisões adotadas pelos tribunais quando aplicassem
os precedentes originados dos julgamentos nos regimes antes
indicados. Por inúmeras decisões, o STF e, na sequência, o STJ
deixaram claro que não mais examinariam individualmente os
recursos nos casos de questões constitucionais e
infraconstitucionais por eles já avaliadas e decididas.
Perceberam que, se assim não estabelecessem, toda a
sistemática da repercussão geral e dos recursos repetitivos teria
sido em vão, pois, após o aguardo do surgimento do precedente
de efeitos expansivos, sempre haveria possibilidade de agravos
ou reclamações das decisões que o aplicassem nas instâncias de
origem, o que permitiria que cada processo chegasse
individualmente aos tribunais superiores, quebrando por
completo a lógica do sistema que se construíra. Entretanto, na redação do NCPC, tal como aprovado, das
decisões dos tribunais de origem que aplicam os precedentes
dos tribunais superiores nos casos de repercussão geral e de
recursos repetitivos, consta a possibilidade d e:
a) reclamação para o tribunal superior sempre que, após a
aplicação de precedente de RG ou repetitivo nos tribunais e
juízos de primeiro grau, a parte quiser dizer que não houve
adequada aplicação do precedente (art. 988, IV);
b) agravo ao tribunal superior sempre que o vice-presidente negar
seguimento a recurso, porque entendeu que a decisão do tribunal está
conforme ao entendimento do tribunal superior (art. 1.042, inciso II)
c) agravo ao STF, sempre que se negar admissibilidade a recurso
extraordinário ao fundamento de que a questão constitucional nele
versada não tem repercussão geral (art. 1.042, III). Em decorrência dessas disposições, todos os processos
permanecerão sobrestados aguardando as decisões do STF ou
do STJ e, uma vez aplicados os precedentes, todos poderão
chegar individualmente ao tribunal superior, porque bastará
alegar que a decisão é contrária, para que o incidente de
reclamação seja possível, por mais inconsistente que a alegação
possa vir a ser. Todos os procedimentos associados ao sobrestamento e
posterior aplicação dos precedentes terão sido apenas uma
longa etapa a mais no processo. Ao fim e ao cabo, cada caso
conseguirá chegar às Cortes Superiores, que terão de analisá-lo,
demandando preciosos recursos materiais e humanos, ainda que
para rejeitar a pretensão de revisão ou para dizer que dela não conhecerá.
E é necessário ter presente que, doravante, não serão apenas os processos
em fase de recurso extraordinário e recurso especial que ficarão
sobrestados, serão todos, no país inteiro, em todas as fases. Estes
processos, que ficaram sobrestados em qualquer momento da tramitação,
uma vez submetidos à aplicação do precedente dos tribunais superiores,
poderão gerar reclamação diretamente para tais tribunais. O STF e o STJ
estarão dedicados apenas ao julgamento das reclamações
contra todos os juízos e tribunais. Institucionalizar o uso de reclamações e agravos aos tribunais superiores
em casos tais compromete toda a confiança que deve haver em um
sistema de precedentes. Haverá constante estímulo a provocar a mudança
nas questões já decididas, eliminando a estabilidade que o sistema
pretendeu imprimir e que o NCPC, em diversos dispositivos, enaltece
como bem jurídico a ser buscado constantemente.
É importante registrar que há outras vias para o equacionamento de
situações de erro flagrante na aplicação dos precedentes. O acesso à
rescisória, no NCPC, por exemplo, foi ampliado para casos tais,
prevendo-se, inclusive, que o prazo para ajuizamento, nas questões de
natureza constitucional, correrá somente a partir da decisão do STF (art.
525, §15). O controle de constitucionalidade pela via concentrada
permanece aberto e em plena utilização.
E uma pesquisa atual na jurisprudência dos tribunais de segundo grau
demonstra que os precedentes vêm sendo amplamente acatados e
aplicados.
O risco de insegurança será amplificado ao máximo, acaso se admita o
acesso individual, novamente, aos tribunais superiores. Ademais, o acesso
irrestrito às instâncias superiores prolongará enormemente a tramitação
dos já morosos processos judiciais.
Por tais razões é que se propõem, neste Projeto de Lei, as modificações
nos arts. 988 e 1042 e, em decorrência delas, em outros dispositivos,
como a seguir se enunciará.
Pelos motivos mencionados, o presente Projeto de Lei prevê a
alteração dos incisos III e IV do art. 988, bem como de seu § 5º,
para afastar a hipótese de cabimento de reclamação para
garantia da observância de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva” (disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor
=1366100&filename=Tramitacao-PL+2468/2015).
Conforme essa proposta original, o § 5º do art. 988 do CPC/15 teria a
seguinte redação:
§ 5º É inadmissível a reclamação:
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;
II – proposta perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior
Tribunal de Justiça para garantir a observância de precedente de
repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva.
Nesse passo, poder-se-ia argumentar que a vedação, em absoluto, do
cabimento da reclamação para a observância de tese oriunda de recurso especial
repetitivo trataria de mera proposta do signatário do PL 2.468/2015, não
acolhida, ao fim, pelo Congresso Nacional, tanto que acrescentado o famigerado
pressuposto do esgotamento das instâncias ordinárias ao § 5º.
Contudo, em aprofundado exame da tramitação do projeto de Lei
tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, o que se observa é que,
em todas as suas manifestações, os membros do Legislativo ratificaram a opção de
extinguir o cabimento da reclamação voltada ao controle da aplicação dos temas
repetitivos e da repercussão geral.
É interessante notar que a alteração da redação do texto do § 5º,
inciso II, para a referência ao esgotamento das instâncias ordinárias, apenas
ocorreu no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da
Câmara dos Deputados, quando o relator dos projetos n. 2.384/2015 e 2.468/2015
apresentou substitutivo, para incorporar este último projeto àquele primeiro e
realizar adaptações em todo o Código devido às questões que estavam sendo
votadas.
Todavia, ao modificar, no substitutivo, a redação do texto do inciso II do § 5º do art. 988, o relator não fez qualquer menção a eventual rejeição à
proposta original de extinguir o cabimento da reclamação para a hipótese em tela;
pelo contrário, reiterou em seu parecer que o cabimento de reclamação e agravo
para impugnar a aplicação de precedente originado de recurso repetitivo ou de
repercussão geral iria na contramão dos esforços de racionalização dos trabalhos
do STJ e do STF.
A propósito, confira-se trecho de seu parecer:
“A pretensão dos autores é legítima, pois busca manter os
esforços emanados no sentido de organizar procedimentos
concernentes à racionalização dos trabalhos no Supremo
Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, de modo a
viabilizar suas atribuições constitucionalmente previstas. No
entanto, mais do que um sistema integrado, o Poder Judiciário deve
oferecer satisfatória prestação jurisdicional aos que a ele recorrem,
assegurando que o cidadão não tenha seu acesso à justiça frustrado sem
digna resposta.
[...]
Quanto ao mérito, consideramos que os projetos principal e apensado
complementam-se, mormente no que diz respeito ao juízo de
admissibilidade nos tribunais de origem, garantindo a celeridade e o filtro
necessário nos julgamentos de repercussão geral e recursos repetitivos.
Fazem ainda as alterações necessárias no ordenamento processual de
modo que se torne viável o cumprimento da missão constitucional
atribuída aos tribunais superiores.
[...]
Quanto ao cabimento de reclamações e agravos interpostos
perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça para impugnar decisões dos tribunais de origem e
demais juízos que apliquem os precedentes originados dos
julgamentos com repercussão geral ou em recursos repetitivos,
temos que essa possibilidade vá de encontro à lógica
atualmente adotada em relação aos esforços aplicados para
impedir que uma avalanche de processos obste o devido
andamento nas instâncias superiores, gerando sobrecarga de
trabalho aos servidores destes tribunais e por consequência
poderá agravar a morosidade processual. [...]
Por todo o exposto, voto pela constitucionalidade, juridicidade, boa
técnica legislativa, e no mérito pela aprovação do PL 2.384, de 2015 e do
PL apensado, n. 2.468, de 2015, na forma do substitutivo apresentado”
(disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1402334&filename=Tramitacao-PL+2384/2015)
Seguiu-se, então, os debates no seio daquela Comissão, da leitura dos
quais é possível apreender a anuência dos seus membros quanto à subtração da
hipótese de cabimento da reclamação de que se ora se trata (transcrição da sessão
deliberativa de 20/10/2015 disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020151021001800000.PDF#page=236 e da
sessão de 21/10/2015 disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020151022001810000.PDF#page=149)
A parte dos projetos relativa à reclamação não recebeu qualquer
emenda. Para além disso, devido exatamente à supressão da hipótese de
cabimento para a aplicação de tese firmada em recurso repetitivo ou em
repercussão geral, foi apresentada emenda para incluir no CPC a possibilidade de
ajuizamento de ação rescisória quando aplicado erroneamente o precedente,
como uma forma de “compensação” ao jurisdicionado.
A respeito, veja-se a justificativa da Emenda nº 22 – que teve por
objeto o acréscimo dos parágrafos 5º e 6º ao art. 966 do CPC -, de autoria do
Deputado Paulo Teixeira:
“A Reformulação da reclamação, tal qual proposta pelo PL, tem de vir
acompanhada de um instrumento de compensação dos direitos do
cidadão, que teve contra si um precedente mal aplicado. A ação rescisória
é o melhor instrumento. A regra não prejudica os tribunais superiores, pois
a ação rescisória seria proposta nos tribunais locais”.
Na Comissão, essa “compensação” foi objeto de acordo entre os
membros, como fica claro na fala do Deputado Paulo Teixeira na sessão plenária de
20/10/2015:
“(...) Qual foi a natureza dessa mudança no Código de Processo Civil, sendo
que o Código entrará em vigor em março do ano que vem, e foi
sancionado em março deste ano? Por que nós estamos mudando o
Código de Processo Civil?
Nós estamos mudando, porque o Supremo Tribunal Federal fez uma reivindicação: limitar e acabar com as reclamações. E o Superior Tribunal
de Justiça fez outro pedido: que eles não ficassem com juízo de
admissibilidade. Portanto, é ponderável que esta Casa dialogue com essas
duas instâncias do Judiciário, para atender essas duas reivindicações.
Nós estamos de acordo em devolver o juízo de admissibilidade. Eu achava
estranho que eles devolvessem um poder, mas V.Exa. aperfeiçoou,
fazendo com que eles devolvam o poder com o parâmetro de juízo de
admissibilidade. Nós estamos de acordo com essa mudança que V.Exa.
está fazendo. E também quando V.Exa. atende o Supremo Tribunal
Federal, limitando as reclamações.
Mas nós temos que, de um lado, promover uma compensação a essas
mudanças (...).
Então, nós queremos propor o seguinte acordo: aceitemos a reforma que
V.Exa. fez no juízo de admissibilidade, aceitemos a proposta e a reforma
que V.Exa. fez nas reclamações. Agora, se o cidadão que vai à Justiça e que
tem a sua causa negada por uma decisão malfeita do Judiciário, se ele
perde o direito à reclamação, ele tem que ter uma compensação. E aí,
Deputado Glauber Braga, o que nós queremos colocar aqui como
compensação é a rescisória. Isto é, se o juiz aplicasse mal a jurisprudência,
ele tinha a possibilidade de fazer uma reclamação. Nós estamos retirando
essa possibilidade aqui. Agora, o que nós vamos dar a essa pessoa como
compensação, se foi mal aplicado o Direito? Nós estamos dizendo que ele
tem o direito a uma rescisória. Esse é o objeto de uma das emendas e de
um dos destaques que nós queremos aqui pedir (...)”.
Essa modificação no regime da rescisória, em razão da supressão da
reclamação, foi acolhida pela maioria dos membros da Comissão, que, ao final dos
debates, aprovou a inclusão dos parágrafos 5º e 6º ao art. 966 do CPC, nos
seguintes termos:
“Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida
quando:
[...]
V - violar manifestamente norma jurídica;
[...]
§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste
artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão
proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado
a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão
decisório que lhe deu fundamento. (Incluído pela Lei nº 13.256, de
2016)
§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo,
caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente,
tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica”. (Incluído
pela Lei nº 13.256, de 2016)
Após, o projeto de lei seguiu para o Senado Federal, onde, finalmente,
recebeu apenas ajustes gramaticais em seu texto.
Apesar de extensas – pelo que se pede as devidas escusas –, as
transcrições acima destacadas revelam o cenário político no qual a reforma da Lei
13.256/2016 foi concebida e aprovada, sendo possível dele extrair, sem margem
de dúvida, que a norma visou, nesse particular, ao fim da reclamação
dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre
questões repetitivas.
Nesse diapasão, é verdade que a inserção da expressão “quando não
esgotadas as instâncias ordinárias” à parte final do inciso II do parágrafo 5º do art.
988 permanece sem resposta e sem justificativa minimamente coerente.
No entanto, em que pese a má técnica legislativa, ou outro fenômeno
que agora não se consegue dimensionar, cabe a este Tribunal, intérprete da
norma, atribuir-lhe eficácia para que atinja a sua finalidade premeditada que, em
suma, diz com a opção de política judiciária de desafogar os trabalhos nas Cortes
de superposição.
C. Do aspecto lógico-sistemático
Por fim, e em especial, a correta interpretação do art. 988 do
CPC/2015, como desenhado pela Lei 13.256/2016, exige a consideração do
contexto normativo em que inserido. Como nos alerta o Professor Juarez FREITAS, “qualquer norma singular só se esclarece plenamente na totalidade das normas,
dos valores e dos princípios” (A interpretação sistemática do direito. São
Paulo: Malheiros, 1995, p.15) e, dessa maneira, apenas por meio de uma interpretação sistemática do direito é possível atribuir a melhor significação às
normas, de forma a garantir sua integridade e coerência lógica.
Sob essa diretriz, impõe-se o exame do cabimento da reclamação de
que ora se trata com os olhos voltados aos vetores ideológicos e regras inerentes
ao regime de gestão e julgamento dos recursos especiais repetitivos.
Esse cotejo, convém frisar, não é novo nesta Corte. Conforme se
mencionou anteriormente neste voto, desde a introdução da sistemática dos
recursos especiais repetitivos no direito brasileiro, no ano de 2008, o STJ se depara
com reclamações que tem por objeto o controle da aplicação dos precedentes nas
instâncias ordinárias, fluxo este que multiplicou após o citado julgamento da
Questão de Ordem no Ag 1.154.599/SP pela Corte Especial (DJe de 12/05/2011).
O CPC/2015 não modificou, substancialmente, o regime dos recursos
especiais repetitivos; apenas aperfeiçoou as regras já existentes (do que se
destaca, por exemplo, a suspensão de todos os processos pendentes no território
nacional, e não apenas os recursos), também vindo a acentuar os sustentáculos
principiológicos do regime, que residem na segurança jurídica, na eficiência e na
isonomia aos jurisdicionados.
Dessa maneira, os fundamentos que, outrora, levaram o STJ a
entender pelo descabimento da reclamação para a aplicação de tese repetitiva
são, em boa medida, os mesmos de agora, com as novas luzes trazidas pelo
CPC/2015.
Nessa linha, tem-se que o mecanismo de julgamento de recursos
especiais repetitivos surgiu, juntamente com outros institutos, como resposta do
sistema processual ao fenômeno social da massificação dos litígios. Mediante um
julgamento por amostragem, com eficácia obrigatória no sistema verticalizado
judicial, o STJ fixa a tese jurídica a ser aplicada, nas instâncias ordinárias, nos demais processos com a mesma controvérsia.
Sua razão de ser concentra-se, assim, na racionalização da prestação
jurisdicional do Tribunal, como forma de viabilizar o cumprimento de sua função
constitucional de manter a uniformidade da aplicação da lei federal. Nesse
panorama, o STJ se desincumbe de seu múnus definindo, por uma vez, a
interpretação da lei que deve obrigatoriamente ser observada pelos demais juízes
e tribunais, viabilizando-se que questões idênticas recebam tratamento isonômico
e previsível.
Daí porque o CPC/2015, após a reforma da Lei 13.256/2016, afastou a
possibilidade de interposição de agravo em recurso especial contra a decisão do
Tribunal de origem que nega seguimento ao recurso especial devido à
conformidade entre o acórdão recorrido e o entendimento firmado pelo STJ em
recurso especial repetitivo. Essa decisão é impugnável apenas por agravo interno
no âmbito da própria Corte local, consoante estabelecem os arts. 1.030, § 2º, e
1.042, caput, do Códex.
Isso bem denota a diretriz eleita pelo sistema processual civil em
relação às demandas de massa: aos Tribunais de superposição compete a fixação
da tese jurídica e a uniformização do Direito, sendo dos Tribunais locais, onde
efetivamente ocorre a distribuição da justiça, a aplicação da orientação
paradigmática.
A respeito dos recursos especial e extraordinário repetitivos, precisa é
a lição de Humberto Theodoro Júnior:
“A finalidade do instituto, à evidência, atende aos reclamos da economia
processual. Busca-se evitar os inconvenientes da enorme sucessão de
decisões de questões iguais, em processos distintos, com grande perda de
energia e gastos, em tribunais notoriamente assoberbados por uma
sempre crescente pletora de recursos. Como os recursos especial e
extraordinários não são instrumentos de revisão dos julgamentos dos
tribunais locais em toda extensão da lide, mas apenas de reapreciação da tese de direito federal ou constitucional em jogo, não se pode considerar,
em princípio, ofensiva ao acesso àqueles recursos constitucionais a
restrição imposta ao seu julgamento diante das causas seriadas ou
repetitivas. Basta que o Pleno se defina uma vez sobre a tese de
direito repetida na série de recursos especiais ou
extraordinários pendentes, para que a função constitucional
daquelas Cortes Superiores – que é manter, por meio do
remédio do recurso especial, a autoridade e a uniformidade da
aplicação da lei federal, e do recurso extraordinário, a
autoridade da Constituição – se tenha por cumprida” (Curso de
Direito Processual Civil, vol. III, 47ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016,
p. 1.133).
Assim erigido o sistema, não se consegue conceber que seja
admitido o cabimento da reclamação para que seja examinada a
aplicação supostamente indevida ou errônea de precedente oriundo de
recurso especial repetitivo.
Com efeito, a admissão da reclamação em tal hipótese atenta contra
a finalidade da instituição do regime próprio de tratamento dos recursos
especiais repetitivos. Para além de definir a tese jurídica, também incumbiria a
este STJ o controle da sua aplicação individualizada em cada caso concreto, em
franco descompasso com a função constitucional do Tribunal e com sério risco de
comprometimento da celeridade e qualidade da prestação jurisdicional que aqui se
outorga.
Sob outra ótica, a aceitação da reclamação em tela tornaria estéril a
vedação do CPC/2015 quanto à interposição de agravo quando o recurso especial
é obstado na origem em razão da coincidência entre o acórdão recorrido e a tese
repetitiva do STJ. Isso porque bastaria à parte cumprir formalmente com a
exigência de interposição de agravo interno no Tribunal local para então submeter
seu litígio concreto ao exame desta Corte Superior.
Fosse esse o desiderato do Código (isto é, o de impor ao STJ o dever
de aplicar diretamente seu entendimento em cada caso concreto), bastaria não obstar a via recursal do agravo.
Aliás, não se pode olvidar que o meio adequado e eficaz para forçar
a observância da norma jurídica oriunda de um precedente, ou para corrigir a sua
aplicação concreta, é o recurso, instrumento que, por excelência, destina-se ao
controle e revisão das decisões judiciais. O sistema recursal pátrio é amplamente
desenvolvido e dotado de características elementares à noção do devido processo
legal, as quais, em certa medida, não se estendem bem à ação autônoma da
reclamação.
A título ilustrativo, partindo da premissa de que a reclamação inaugura
nova relação jurídica processual: a) não se tem a simplificação e a racionalização da
atividade jurisdicional que resulta do princípio da dialeticidade dos recursos; b) se
perde o controle dos efeitos da preclusão operados na relação processual de
origem, possibilitando que temas preclusos sejam reexaminados; c) a ausência de
efeito suspensivo inerente à reclamação pode resultar no trânsito em julgado da
decisão final do processo de origem, hipótese em que a eventual procedência da
reclamação se revestiria de verdadeiro caráter rescisório, sem a observância dos
específicos pressupostos da ação rescisória.
Por todos esses elementos, a conclusão que se alcança é que a
reclamação constitucional não trata de instrumento adequado para o controle da
aplicação dos entendimentos firmados pelo STJ em recursos especiais repetitivos.
Esse controle é próprio do sistema recursal, ressalvada a via
excepcional da ação rescisória, tal como desenhou o legislador no CPC.
Em arremate, convém salientar que não é o cabimento da reclamação
que torna obrigatória a observância da orientação firmada por esta Corte em seus
precedentes. O efeito obrigatório decorre do próprio sistema de precedentes
construído no CPC, no qual, “rigorosamente, tendo em conta a função de outorga de unidade ao direito reconhecida ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior
Tribunal de Justiça, a necessidade de racionalização da atividade judiciária e o
direito fundamental à razoável duração do processo, o tribunal de origem não
pode recusar a aplicação do precedente ao caso concreto, porque aí estará
simplesmente negando o seu dever de fidelidade ao direito” (MARINONI, Luiz
Guilherme. Novo Código de Processo Civil comentado, 2ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 1119).