Sendo o IRDR um procedimento genuinamente inédito no sistema pátrio, e
também fruto de intensas discussões e modificações ao longo do processo legislativo,
ainda pairam dúvidas sobre o paradigma ao qual se alinha esse incidente. Nessa
perspectiva, é possível classificar as posições doutrinárias sobre o IRDR em três
categorias: i) o IRDR é um procedimento-modelo; ii) o IRDR é uma causa-piloto; e iii) o IRDR é uma categoria híbrida.
A primeira corrente defende que IRDR é um procedimento-modelo, fiel à sua
inspiração tedesca. Ele se vale da técnica de cisão cognitiva, que permite a separação do
julgamento da demanda em dois momentos distintos e com competências diferentes. Isso
porque a questão de direito que se repete em inúmeras demandas terá seu mérito
decidido pelo tribunal, enquanto as demais questões envolvidas permanecerão suspensas
em primeira instância, e serão apreciadas após aplicação das teses definidas no IRDR.
Essas conclusões se alicerçam nos incisos I e II do art. 976 do CPC/2015,
que não estabelecem a pendência de causa no tribunal como requisito para instauração do
IRDR; e também no § 1º do art. 976 do CPC/2015, pois a desistência ou abandono do
processo não impedem o exame de mérito do incidente, o que denota a independência da
apreciação do mérito em relação à causa.
Essa corrente é encampada por Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, André
Vasconcelos Roque, Araken de Assis, Bruno Dantas, Cássio Scarpinella Bueno, Dierle
Nunes, Fernando da Fonseca Gajardoni, Guilherme José Braz de Oliveira, Gustavo Milaré
Almeida, Humberto Theodoro Junior, Joaquim Felipe Spadoni, José Miguel Garcia Medina,
Leonardo Ferres da Silva Ribeiro, Luiz Dellore, Marco Félix Jobim, Maria Lúcia Lins
Conceição, Rafael Pereira, Rodolfo de Camargo Mancuso, Rogério Licastro Torres de
Mello, Rodrigo Becker, Sofia Orberg Temer, Teresa Arruda Alvim, Vitor Trigueiro e Zulmar
Duarte de Oliveira Júnior.
Oportunamente, transcrevem-se os argumentos desses doutrinadores:
Embora haja algumas controvérsias, geradas a partir das alterações
das versões apresentadas durante a tramitação do projeto de lei, as
características adotadas no Código permitem apontar, ao menos em
uma primeira análise, tratar-se de procedimento incidental autônomo,
de julgamento abstrato – ou objetivo – das questões de direito
controvertidas, comuns às demandas seriadas, a partir da criação de
um procedimento-modelo. (...) Há, portanto, uma cisão cognitiva – ainda que virtual e não física -, firmando-se a tese jurídica no
procedimento incidental em que haverá se reproduzido o “modelo” que
melhor represente a controvérsia jurídica que se repete em dezenas
ou milhares de pretensões. (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro;
TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o
novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie (coord. Geral);
MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.).
Processo nos tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais.
Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318-319).
O incidente de resolução de demandas repetitivas pode e, o que mais
importa, deve ser instaurado diretamente no tribunal, ou seja, per
saltum, existindo multiplicidade de processos em primeiro grau,
controvertendo a 'mesma questão unicamente de direito (...)' (art. 976,
Documento: 1811010 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 22/11/2019 Página 61 de 15
Superior Tribunal de Justiça
I), (ASSIS, Araken. Manual dos Recursos. 8 ed, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p. 458)
(...) parece-me correto afirmar que o incidente de resolução de
demandas repetitivas, com a feição que lhe deu o CPC de 2015,
acabou se conformando com o caráter preventivo que o Anteprojeto e
o Projeto do Senado lhe davam. (...) No CPC de 2015, contudo - e
esta é a razão que acima anunciei -, nada há de similar à exigência do
Projeto da Câmara (o preceituado § 2º do art. 988 daquele Projeto)
sobre o incidente somente poder ser suscitado na pendência de
qualquer causa de competência do tribunal. Destarte, a conclusão a
ser alcançada é a de que o incidente pode ser instaurado no âmbito
do Tribunal independentemente de processos de sua competência
originária ou recursos terem chegado a ele, sendo bastante,
consequentemente, que 'a efetiva repetição de processos que
contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de
direito” seja constatada na primeira instância. (BUENO, Cassio
Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 2 ed. São
Paulo: Saraiva, 2016, p. 636);
Apesar do dissenso interpretativo existente, pela própria natureza de
incidente, o IRDR trata-se de técnica de procedimento-padrão,
igualmente ao sistema alemão, não se vislumbrando, com o devido
respeito a opiniões em contrário, a possibilidade de enxergá-lo como
técnica de causa-piloto (como os recursos extraordinários) sem cisão
cognitiva. Em assim sendo, o julgamento no tribunal dar-se-á na parte
padronizável, sob pena de se inviabilizar a instauração do incidente
em relação a processos em primeiro grau (art. 977, I), eis que o IRDR
se limita à matéria jurídica (art. 976, I), de modo que a análise de fatos
e provas ficará sob a competência do juízo de aplicação, na etapa
final prevista no art. 985 (...). (NUNES, Dierle. Incidente de resolução
de demandas repetitivas. Revista Brasileira de Direito Processual, v.
24, n. 93, p. 51/62, jan./mar. 2016, p. 52).
O parágrafo único do art. 978 é simples regra de prevenção. Na
perspectiva apontada no item anterior [conceituação do IRDR como
procedimento-modelo], o art. 978, parágrafo único, consiste apenas
em regra de prevenção do órgão que apreciou o IRDR para o
julgamento do recurso, remessa necessária ou processo do qual se
originou o incidente (se este já estiver em curso no tribunal por
ocasião da deflagração do IRDR, o que nem sempre ocorrerá). A
apreciação dos casos concretos será realizada em um novo
julgamento do incidente com a causa a partir da qual foi instaurado.
(GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André
Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Execução e recursos:
comentários ao Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Método,
2017, p.855)
Ocorre, a bem da verdade, uma cisão funcional, deslocando
momentaneamente a competência, de modo a permitir que aquela
determinada questão controvertida – a tese jurídica, insista-se – seja
apreciada e decidida, desde logo, mas de modo objetivo (cfr. Item 6.1, infra), pelo órgão jurisdicional superior competente (junto aos
Tribunais de segundo grau), mesmo sem ter havido, em alguns casos,
decisão da instância originária. Posteriormente, a tese fixada será
aplicada ao caso concreto. Há, pois, típica hipótese de julgamento per
saltum. (OLIVEIRA, Guilherme José Braz de. Nova técnica de
julgamento de casos repetitivos à luz do novo Código de Processo
Civil. Tese (Doutorado em Direito Processual). Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 59).
Como mencionado, o IRDR consiste na possibilidade de uma reunião
de processos (individuais) que estejam em primeiro grau de jurisdição
e que contenham a mesma questão unicamente de direito. Ou seja,
nos termos da lição acima, o que une esses processos é a incidência
da norma sobre o fato em casos que já estavam em curso.(ALMEIDA,
Gustavo Milaré. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o
trato da litigiosidade coletiva. In: DIDIER JR., Fredie (coord. Geral);
MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.).
Processo nos tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais.
Salvador: Juspodivm, 2016, p. 410).
O incidente de resolução de demandas repetitivas não ocorre dentro
do processo que legitimou sua instauração. Diferentemente do
sistema dos recursos especial e extraordinário repetitivos, que
também viabilizam uniformização de jurisprudência vinculante, a partir
do julgamento do recurso adotado como padrão, o incidente do art.
976 se processa separadamente da causa originária, e sob a
competência de órgão judicial diverso. Esse órgão será sempre o
tribunal de segundo grau, cuja competência se restringe ao
julgamento do incidente, sem eliminar a dos órgãos de primeiro e
segundo grau para julgar a ação ou o recurso, cujo processamento
apenas se suspende, para aguardar o pronunciamento normatizador
do tribunal. (THEODORO JR., Humberto. Regime das demandas
repetitivas no novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie
(coord. Geral); MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE,
Alexandre (org.). Processo nos tribunais e meios de impugnação das
decisões judiciais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 428-429).
Segundo pensamos, não é necessário que haja processo pendente
no tribunal, que verse sobre a questão (...). A existência de processo
(ou processos) no tribunal que versem sobre a questão, no entanto,
poderá ser sintoma de que os pressupostos referidos na lei para que
se admita o incidente encontram-se presentes. (...) O incidente
emerge de processos que se repetem, mas não faz com que se
desloque algum processo para o tribunal. De muitos processos,
identifica-se controvérsia sobre a mesma questão de direito, e é a
resolução dessa questão de direito o objeto do incidente. Não há,
pois, uma causa ou recurso selecionado para julgamento, a ser
remetido ao tribunal, enquanto os demais ficam sobrestados (tal como
ocorre com o recurso especial, no regime previsto no art. 1.036, § 1º,
do CPC/2015). (MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de
Processo Civil Comentado. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 1.415)
Mesmo não sendo tal controvérsia o objeto do presente artigo, desde
logo, conclui-se no mesmo sentido de Rodrigo Becker e Victor
Trigueiro, de que a natureza jurídica do IRDR é de um
procedimento-modelo, e não de uma causa-piloto, uma vez que o
inciso I, do art. 977, do CPC/2015 confere legitimidade ao juiz para
provocar, de ofício, a instauração do IRDR, possibilitando que o
incidente seja formado no tribunal, sem estar necessariamente
relacionado com um processo subjetivo a ser julgado ou seja, nesta
hipótese, inexiste o caso concreto pendente de recurso no tribunal.
(JOBIM, Marco Félix; PEREIRA, Rafael Caseli. O recurso especial
representativo de controvérsia como solução para a falta de controle
da representatividade adequada do advogado, constituído para atuar
no incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). Revista de
Processo, v. 287, ano 44, p. 307-332, jan./2019, p.314)
O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível
quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de
gerar multiplicação expressiva de demandas e correlato risco da
coexistência de decisões conflitantes. (MANCUSO, Rodolfo de
Camargo. Incidente de resolução de demandas repetitivas: a luta
contra a dispersão jurisprudencial excessiva. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016, p. 147)
Em linhas gerais, no Musterverfahren (procedimento-modelo, em
tradução livre) o Tribunal é instado a afetar um processo piloto, como
representativo de um certo núcleo de questões de fato e de direito,
replicadas em muitos processos, buscando-se ao fim e ao cabo, que a
estes seja estendida, oportunamente, a decisão firmada no
processo-piloto. Na síntese de Luiz Guilherme Marinoniet al., uma vez
instaurado o incidente, com a afetação do caso-piloto, "realiza-se uma
cisão no julgamento da causa, de modo a destacar a (s) questão (ões)
comum (ns) a várias demandas individuais, deixando-as para
apreciação conjunta. As questões comuns serão julgadas por um
tribunal de segundo grau (atuando como instância originária) e,
depois, disso, cada processo será apreciado por seu juízo natural,
aplicando a solução da questão comum". Observe-se que o nosso
IRDR também promove uma cisão de competência, porque, apesar do
nome do instituto, ele não se destina, de per si, a "resolver
demandas", e sim a fixar uma tese jurídica, no tribunal, a ser, depois,
aplicada às ações sobrestadas em primeiro grau - art. 985 e incisos.
(MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Incidente de resolução de
demandas repetitivas: a luta contra a dispersão jurisprudencial
excessiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 185-186)
Adotamos a posição segundo a qual o incidente de resolução de
demandas repetitivas apenas resolve a questão de direito, fixando a
tese jurídica, que será posteriormente aplicada tanto nos casos que
serviram como substrato para a formação do incidente, como nos
demais casos pendentes e futuros. Entendemos, portanto, que no
incidente não haverá julgamento de 'causa-piloto', mas que será
formado um 'procedimento-modelo'. E essa posição decorre, principalmente, dos seguintes fundamentos: a) no IRDR apenas há a
resolução de questões de direito, o que limita a cognição e impede o
julgamento da 'demanda'; b) a desistência do que seria a
'causa-piloto' não impede o prosseguimento do incidente, que tramita
independentemente de um conflito subjetivo subjacente, corroborando
seu caráter objetivo; c) a natureza objetiva parece ser mais adequada,
em termos da sistemática processual, para que seja possível aplicar a
tese às demandas fundadas na mesma questão, além de viabilizar a
construção de outras categorias que permitam justificar a ampliação
do debate e da participação dos sujeitos processuais.” (TEMER, Sofia
Orberg. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 3 ed.
Salvador: Juspodivm, 2018, p. 69-70).
Julgamento do incidente, recurso, remessa necessária ou processo de
competência originária de onde se originou incidente - parágrafo
único. Ao órgão que tem competência para julgar o incidente, atribui o
Novo Código de Processo Civil competência para julgar o recurso, a
remessa necessária do processo onde nasceu o incidente ou a causa
de competência originária em que o incidente foi suscitado. Isso não
significa que não haja cisão de competência a que antes nos
referimos nos comentários ao art. 976. Essa cisão existe: por exemplo,
o órgão competente decide a tese, que, depois é 'aplicada' aos
processos pendentes, que, uma vez sentenciados, podem gerar
recurso de apelação. Aí sim, o Tribunal julgará a causa como um todo.
(ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia; RIBEIRO,
Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de.
Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por
artigo. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.1.556)
A segunda corrente defende que o IRDR é uma causa-piloto e, por isso, não
admite a separação da cognição, de modo que dele só se poderá conhecer caso haja uma
causa, um recurso ou uma remessa necessária pendente de julgamento no Tribunal de
segunda instância.
Os adeptos dessa linha fundamentam sua posição no parágrafo único do art.
978 do CPC/2015, afirmando que tal dispositivo torna prevento para julgar a causa ou
recurso o mesmo órgão que tenha decidido o IRDR; e, ainda, que a legislação
infraconstitucional não poderia atribuir uma competência originária aos tribunais, pois
trata-se de matéria constitucional.
Partilham desse entendimento Antonio do Passo Cabral, Daniel Carneiro
Machado, Fredie Didier, Julio César Rossi, Leonardo Carneiro da Cunha e Ronaldo
Cramer.
Os fundamentos dessa corrente são, em síntese:
“(...) nossa concepção é a de que o legislador optou por um formato
híbrido. Em regra, observando o art. 978, parágrafo único, o tribunal
julgará a questão comum e o(s) caso(s) selecionados e afetados para instrução. Há unidade cognitiva e decisória, com posterior aplicação
da ratio decidendi sobre a questão comum aos demais processos em
que seja debatida. Evidentemente, a regra é tratar-se de causa-piloto,
jurisdição exercida à luz de pretensões e alegações de direitos
subjetivos em concreto. No entanto, quando houver desistência do
processo afetado, o incidente pode mesmo assim prosseguir para a
definição da questão comum (art. 976, § 1º). Nessa hipótese,
segue-se o formato do processo-modelo, instituindo-se um
procedimento de solução da questão comum a vários processos, mas
com técnica diferente. ” (CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER,
Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2015, p. 1.418)
Além dos pressupostos analisados no item anterior, é necessário
ainda que já exista demanda sobre a questão de direito repetitiva
tramitando no tribunal local ou regional para a instauração do IRDR.
Ou seja, a admissibilidade do incidente deve pressupor a tramitação
no respectivo tribunal de recurso, remessa necessária ou processo de
competência originária que tenha por objeto a questão de direito
repetitiva hipótese em que o órgão competente, de acordo com o
regimento interno do tribunal, não só fixará a tese jurídica comum,
como também julgará o mérito do recurso, da remessa necessária ou
processo de competência originária pendente, aplicando a tese
definida.” (MACHADO, Daniel Carneiro. A (in)compatibilidade do
incidente de resolução de demandas repetitivas com o modelo
constitucional de processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 99)
No sistema brasileiro, os recursos especial e extraordinário repetitivos
são processados e julgados como causa-piloto. Escolhem-se uns
recursos para exame e julgamento (art. 1.036, CPC). Os recursos
afetados para análise devem ser julgados no prazo de um ano, tendo
preferência sobre os demais, ressalvado o habeas corpus (art. 1.037,
§ 4°, CPC). Julgados os recursos paradigmas, decidem-se as causas
neles contidas (causas-piloto) e, ao mesmo tempo, fixa-se a tese a ser
aplicada a todos os demais processos que ficaram sobrestados.
Forma-se, além disso, um precedente obrigatório a ser seguido pelos
juízos e tribunais em casos que contenham a mesma questão
repetitiva, de direito processual ou de direito material. Quanto ao
IRDR, cumpre observar o disposto no parágrafo único do art. 978,
segundo o qual "O órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e
de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa
necessária ou o processo de competência originária de onde se
originou o incidente". Já se percebe que o tribunal, no IRDR, julga a
causa e fixa o entendimento a ser aplicável aos demais casos
repetitivos. Trata-se, então, também, de uma causa-piloto, e não de
uma causa-modelo. Ainda que não houvesse o texto do parágrafo
único do art. 978 do CPC, haveria aí uma causa-piloto, pois não é
possível que o IRDR seja instaurado sem que haja causa pendente no
tribunal. Sendo o IRDR um incidente, é preciso que haja um caso
tramitando no tribunal. A instauração do IRDR, repita-se, pressupõe a
existência de uma causa no tribunal, assim como a instauração do
incidente para julgamento de recurso extraordinário e especial repetitivo pressupõe a existência de um deles no âmbito do tribunal
superior. (...) Como se sabe, não é possível ao legislador ordinário
criar competências originárias para os tribunais. As competências dos
tribunais regionais federais estão estabelecidas no art. 108 da
Constituição Federal, cabendo às Constituições Estaduais fixar as
competências dos tribunais de justiça (art. 125, § 1°, CF). O legislador
ordinário pode - e foi isso que fez o CPC - criar incidentes processuais
para causas originárias e recursais que tramitem nos tribunais, mas
não lhe cabe criar competências originárias para os tribunais. É
também por isso que não se permite a instauração do IRDR sem que
haja causa tramitando no tribunal.” (DIDIER JR., Fredie; CUNHA,
Leonardo Carneiro da. Recursos contra decisão proferida em
incidente de resolução de demandas repetitivas que apenas fixa a
tese jurídica. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da.
Julgamentos de Casos Repetitivos. Salvador: Juspodivm, 2017, p.
316-318).
O IRDR, da maneira como previsto (PLS 166/2010 e PLC 8.046/2010) – estabelecendo padrões de decisão-quadro com conteúdo abstrato e
geral abarcando uma série de questões e cuja aplicação pelos órgãos
judiciários competentes para julgamentos das ações sobrestadas
revela-se compulsória – não parece seguir a mesma dicção de seu
inspirador instrumento de coletivização alemão, segundo o qual a
decisão tomada pelo tribunal vinculará todos os processos,
iniciando-se uma nova fase na qual os juízos competentes definirão as
pretensões individualizadas em cada demanda. A divisão da cognição
estabelecida no Musterverfahren tem o condão de mitigar os
problemas relacionados à análise dos pontos em comum, relativos às
ações assemelhadas (streitpunkte) decididos pelo Tribunal, deixando
a análise das particularidades de cada uma das demandas ao juiz
natural para o seu julgamento. (ROSSI, Júlio César. O precedente à
brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas
repetitivas. Revista de Processo, v. 37, n. 208, p. 203-240, jun./2012,
p. 230).
A terceira corrente defende que o IRDR adquiriu contornos próprios, a ponto
de não mais poder ser reconduzido aos paradigmas do procedimento-modelo e de
causa-piloto.
Com amparo na doutrina de Gláucio Maciel Gonçalves, Matheus Leite
Almendra e Victor Barbosa Dutra, o Ministro Ricardo Villas Boas Cueva bem sintetizou
essa posição na seguinte passagem do voto-vista proferido no julgamento deste recurso
especial :
Além da questão relativa à admissibilidade acima retratada, houve
considerável distanciamento do IRDR do procedimento alemão, em
especial no que se refere: à legitimidade (que, no modelo alemão, é
só das partes, tanto autores como réus); à competência (a
admissibilidade compete ao juízo de origem, que fixa o mérito e remete
o incidente para o tribunal de segundo grau - Oberlandesgericht - julgar); ao objeto de cognição (no Musterverfahren KapMuG, questões
de fato ou de direito relacionadas com a pretensão de condenação em
perdas e danos ou com o cumprimento de um contrato relativo ao
mercado de capitais); à suspensão (de todos os processos já
ajuizados ou que venham a ser ajuizados até o trânsito em julgado da
questão padrão, a partir da decisão de admissão do incidente pelo
juízo de primeira instância); à escolha do procedimento-modelo ou
caso-líder e de quem figurará como autor (Musterkläger) e réu
(Musterbeklagte) no incidente (não previstas para o modelo
brasileiro), sem prejuízo da participação dos demais interessados na
qualidade de intervenientes (Beigeladenen); aos efeitos do julgamento
(por via de regra, há vinculação dos órgãos judiciais à decisão
padrão, relativamente às demandas suspensas) e às custas (há
previsão de divisão proporcional das custas no Musterverfahren).
Nessa perspectiva, a exigência de uma causa ou recurso pendente no
tribunal não decorreria da classificação do IRDR como uma causa-modelo ou um
procedimento-piloto, mas de sua natureza jurídica de incidente processual, a qual o torna
dependente de um processo em tramitação.
Essa posição é sustentada na lição de
Eduardo Talamini, e endossada por Daniel Amorim Assunção Neves:
No direito estrangeiro há duas espécies de tratamento procedimental
para a solução de processos repetitivos. O primeiro se vale de
causas-piloto (processos-teste), por meio do qual o próprio processo
é julgado no caso concreto e a tese fixada nesse julgamento é
aplicada aos demais processos com a mesma matéria jurídica. O
sistema é adotado na Inglaterra, por meio do Group Litigation Order, e
na Áustria, por meio do Pilotverfahren, tendo seu espírito sido
incorporado nos julgamentos dos recursos especial e extraordinário
repetitivos em nosso sistema. No segundo sistema tem-se o chamado
procedimento-modelo, como o Musterverfahren alemão, pelo qual há
uma cisão cognitiva e decisória, de forma a ser criado um incidente
pelo qual se fixa a tese jurídica a ser aplicada em todos os processos
repetitivos, inclusive aquele em relação ao qual o incidente foi
suscitado. Entendo que o IRDR é um sistema inovador, já que não
adotou plenamente nenhum dos sistemas conhecidos no direito
estrangeiro. Julgará o recurso ou ação e fixará a tese jurídica. Parece
ser o sistema de causas-piloto, mas não é, porque exige a formação
de um incidente processual, não sendo, portanto, a tese fixada na
"causa-piloto': E não é um procedimento-modelo porque o processo
ou recurso do qual foi instaurado o IRDR é julgado pelo próprio órgão
competente para o julgamento do incidente. Um sistema, portanto,
brasileiríssimo." (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito
processual civil. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 1415-1416).
A natureza jurídica do IRDR é um argumento usado por autores da segunda
corrente, como Fredie Didier Junior, Leonardo Carneiro da Cunha e Marcos de Araújo
Cavalcanti: O IRDR é, como seu próprio nome indica, um incidente. Trata-se de
um incidente, instaurado num processo de competência originária ou
em recurso (inclusive na remessa necessária) (...). Sendo o IRDR um
incidente, é preciso que haja um caso tramitando no tribunal. O
incidente há de ser instaurado no caso que esteja em curso no
tribunal. Se não houver caso em trâmite no tribunal, não se terá um
incidente, mas um processo originário. E não é possível ao legislador
ordinário criar competências originárias para os tribunais. As
competências do STF e do STJ estão previstas, respectivamente, no
art. 102 e no art. 105 da Constituição Federal, e a dos tribunais
regionais federais estão estabelecidas no art. 108 da Constituição
Federal, cabendo às Constituições Estaduais ficar as competências
dos tribunais de justiça (art. 125, § 1º, CF). O legislador ordinário
pode – e foi isso que fez o CPC – criar incidentes processuais para
causas originárias e recursais que tramitam nos tribunais, mas não lhe
cabe criar competências originárias para os tribunais. É também por
isso que não se permite a instauração do IRDR sem que haja causa
tramitando no tribunal. (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo
Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação
às decisões judiciais e processo nos tribunais. 16 ed. Salvador:
Juspodivm, 2019, p. 757-758)
O IRDR tem natureza jurídica de incidente processual coletivo,
suscitado perante o tribunal onde se encontra o processo paradigma
pendente com a finalidade de fixar previamente uma tese jurídica a ser
aplicada aos casos concretos e abrangidos pela eficácia vinculante da
decisão. Todas as principais características de um incidente
processual são preenchidas pelo instituto estudado, quais sejam: (a)
acessoriedade: o IRDR tem acessoriedade múltipla, uma vez que sua
instauração depende da existência de diversos processos repetitivos
sobre a mesma questão unicamente de direito, assim como necessita
da pendência de um desses procedimentos repetitivos no tribunal
competente (art. 978, parágrafo único, do NCPC); (b) acidentalidade
(...); (c) incidentalidade (...) e (d) procedimento incidental: o NCPC cria
um procedimento específico para o exame das questões comuns de
direito, estabelecendo, especialmente nos arts. 976 ao 978, o
tratamento do IRDR.(CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de
resolução de demandas repetitivas (IRDR). São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016, p. 179-180)
Conquanto as correntes doutrinárias expostas sejam esclarecedoras, e a
discussão acerca da natureza do incidente seja profícua, o julgamento em curso tem por
objetivo solucionar controvérsia de inafastável caráter prático acerca do IRDR, que é uma
realidade posta pelo Novo Código de Processo Civil.
Com efeito, o caminho mais seguro para desvendar esse instituto deve partir
da interpretação dos dispositivos legais, resultado do intenso debate doutrinário ocorrido
durante a tramitação do projeto de lei que veio a dar origem ao Novo Código Processual. Ressalte-se que zelar pela coerência e segurança jurídica na aplicação da lei federal é
uma nobre função confiada pela Constituição Federal a esta Corte Superior, que não pode
prescindir da interpretação infraconstitucional em seus julgamentos.
Considerando, portanto, que o regramento legal do IRDR deve ser
prestigiado no julgamento em curso, é de rigor formar uma posição que não contrarie ou
negue os dispositivos insertos no Código de Processo Civil relativos a esse procedimento.
Nessa perspectiva, a natureza jurídica incidental do IRDR não oferece
critérios seguros para identificar os requisitos para interposição do incidente nos Tribunais
de segunda instância, por duas razões. A primeira delas é que a natureza jurídica desse
instituto ainda é alvo de muitas controvérsias e investigações doutrinárias. A segunda, e a
principal delas, é que a exigência de tramitação de causa ou de recurso no tribunal para
possibilitar a instauração do IRDR não é um consenso nem mesmo entre os doutrinadores
que reconhecem sua natureza incidental.
A propósito:
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, como a
denominação já indica, não se trata de uma demanda individual
ou coletiva, mas, sim, de um incidente processual (...) Mas,
mesmo como incidente processual, possui peculiaridades
significativas. A primeira peculiaridade é que, normalmente, os
incidentes processuais, como por exemplo o incidente decorrente da
controvérsia quanto à admissibilidade da assistência; de
desconsideração da personalidade jurídica; de impedimento ou
suspeição; de arguição de falsidade de documento; de remoção; para
indenizações decorrentes de atos processuais, como a prevista no §
5° do art. 828 do CPC; de assunção de competência ou mesmo de
arguição de inconstitucionalidade, são baseados em relações
processuais de duas partes (autor e réu). (...) Entretanto, no
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas o
procedimento padrão diz respeito à questão jurídica pertinente
a processos paralelos, nos quais figura sempre um número
significativo de interessados. A metodologia é inerente ao
procedimento estabelecido, pois haverá sempre um interesse
plúrimo em relação à questão de direito a ser decidida. O
modelo calcado em processos paralelos é algo relativamente novo no
Direito Processual, pois tradicionalmente os processos e os
respectivos incidentes são calcados no modelo da dualidade de
partes. O sistema de procedimentos paralelos enseja uma série de
questões jurídicas processuais relacionadas a este novo modelo,
como a da competência, legitimação, comunicação dos interessados,
representação, possibilidades e limites para a intervenção, relação
entre o incidente e o julgamento dos processos paralelos, efeito
vinculativo, recursos, coisa julgada, revisão e rescisória.” (MENDES,
Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas: sistematização, análise e interpretação do instituto
processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 104-105 - sem grifos no original).
Como o próprio nome explicita, está-se diante de um incidente
processual, que tem origem no curso do andamento de uma
determinada ação, estado a ela relacionada, de maneira indissociável,
mas que comporta uma decisão a parte, de caráter específico e
também prévio, justamente para resolver, de modo particular, um
determinado ponto controvertido. (...) Para corroborar essa assertiva,
vale notar que mesmo no processo em que originado o incidente
haverá, posteriormente à decisão prolatada pelo tribunal, o julgamento
individualizado da causa em si, mediante aplicação, em concreto, do
precedente, ou melhor, das razões de decidir do acórdão (v. Capítulo
Sexto, infra). Logo, utilizando a lição de Carnelutti, 'chamam-se
incidentes todas as questões que surgem entre a demanda e a
decisão, no sentido de que têm que ser resolvidas antes da decisão
da lide.' (...). Ocorre, a bem da verdade, uma cisão funcional,
deslocando momentaneamente a competência, de modo a permitir
que aquela determinada questão controvertida – a tese jurídica,
insista-se – seja apreciada e decidida, desde logo, mas de modo
objetivo (cfr. Item 6.1, infra), pelo órgão jurisdicional superior
competente (junto aos Tribunais de segundo grau), mesmo sem ter
havido, em alguns casos, decisão da instância originária.
Posteriormente, a tese fixada será aplicada ao caso concreto. Há,
pois, típica hipótese de julgamento per saltum.” (OLIVEIRA, Guilherme
José Braz de. Nova técnica de julgamento de casos repetitivos à luz do
novo Código de Processo Civil. Tese (Doutorado em Direito
Processual). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015, p. 53-54; 59).
Destaca-se que há doutrinadores que identificam o IRDR como um
procedimento incidental autônomo:
Embora haja algumas controvérsias, geradas a partir das alterações
das versões apresentadas durante a tramitação do projeto de lei, as
características adotadas no Código permitem apontar, ao menos em
uma primeira análise, tratar-se de procedimento incidental autônomo,
de julgamento abstrato – ou objetivo – das questões de direito
controvertidas, comuns às demandas seriadas, a partir da criação de
um procedimento-modelo.(MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro;
TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o
novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie (coord. Geral);
MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Processo nos tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais.
Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318)
Cuida-se de incidente autônomo de competência originária dos
tribunais brasileiros. (ASSIS, Araken. Manual dos Recursos. 8 ed, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 459).
Dessarte, comparações genéricas entre o IRDR e procedimentos desenvolvidos em outros países pouco contribuirão para desvendar os requisitos do
incidente brasileiro. Isso porque não está em causa investigar se o legislador pátrio seguiu
à risca o modelo tedesco, português, austríaco, inglês, americano ou qualquer outro, mas
quais requisitos podem ser extraídos da lei para instauração do IRDR.
É notória a diversidade dos métodos de interpretação à disposição do jurista.
Contudo, eles devem ser empregados e escolhidos de maneira não aleatória, uma vez que
são organizados também segundo uma metodologia, cujo ponto de partida é a
interpretação gramatical.