15 de outubro de 2021

DIREITO PROCESSUAL PENAL - NULIDADES: Principais conclusões jurídicas do STF a respeito da “Operação Jabuti”

 Fonte: Dizer o Direito

Referência: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2021/10/info-1025-stf.pdf


DIREITO PROCESSUAL PENAL - NULIDADES: Principais conclusões jurídicas do STF a respeito da “Operação Jabuti”

Caso concreto: “OSD”, advogado acusado da prática de diversos crimes, celebrou acordo de colaboração premiada com o MPF de 1ª instância, homologado pelo Juízo Federal de 1ª instância. O delator acusou 23 advogados de realizarem contratações “alegadamente fictícias”, entre os anos de 2012 e 2018, relacionando o fato à suposta prática de crimes contra a Administração Pública, tais como corrupção ativa e corrupção passiva e conectando esses fatos a autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função no STF, razão pela qual teria havido usurpação de competência da Corte para homologar o acordo. O Juízo Federal, após o recebimento da denúncia, teria determinado a realização de buscas e apreensões criminais nos escritórios de advocacia e em endereços residenciais de diversos advogados delatados. A OAB/DF, OAB/SP, OAB/AL e OAB/RJ ajuizaram reclamação, no STF, contra a decisão que homologou esse acordo de colaboração premiada. Os reclamantes alegaram, dentre outros argumentos, que o MPF de 1ª instância não teria atribuição para firmar o acordo com o delator considerando que o signatário estaria delatando autoridades com foro por prerrogativa de função, de sorte que estaria havendo uma violação às atribuições da Procuradoria-Geral da República. Ademais, o juízo federal de 1ª instância não teria competência para homologar o acordo, por usurpar a competência do STF. Principais conclusões do STF: 1) Os conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) possuem legitimidade para ingressar com reclamação perante o Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa dos interesses concretos e das prerrogativas de seus associados, nos termos da expressa previsão legal. 2) No caso concreto, entendeu-se que os reclamantes não demonstraram a usurpação de competência do STF. A despeito disso, o STF afirmou que se constatou que foram praticadas ilegalidades flagrantes e, diante disso, a Corte reputou ser possível a concessão de “habeas corpus” de ofício em sede de reclamação constitucional, nos termos do art. 193, II, do RISTF e do art. 654, § 2º, do CPP. 3) Compete à Justiça estadual processar e julgar fatos envolvendo entidades integrantes do denominado “Sistema S”. 4) Além de violar prerrogativas da advocacia, a deflagração de amplas, inespecíficas e desarrazoadas medidas de busca e apreensão em desfavor de advogados pode evidenciar a prática de “fishing expedition”. 5) Extrai-se do art. 394 e seguintes do CPP que a produção probatória após o oferecimento da denúncia deve ocorrer em juízo, com as garantias do contraditório e da ampla defesa. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte: 

“OSD”, advogado acusado da prática de diversos crimes, celebrou acordo de colaboração premiada com o MPF de 1ª instância (Procuradores da República), homologado pelo Juízo Federal de 1ª instância. O delator acusou 23 advogados de realizarem contratações “alegadamente fictícias”, entre os anos de 2012 e 2018, relacionando o fato à suposta prática de crimes contra a Administração Pública, tais como corrupção ativa e corrupção passiva e conectando esses fatos a autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal (Ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União), razão pela qual teria havido usurpação de competência da Corte para homologar o acordo. O Juízo Federal, após o recebimento da denúncia, teria determinado a realização de buscas e apreensões criminais nos escritórios de advocacia e em endereços residenciais de diversos advogados delatados. 

Reclamação 

Os Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil de diversos estados ajuizaram reclamação, no STF, contra a decisão que homologou esse acordo de colaboração premiada. Os reclamantes alegaram, dentre outros argumentos, que o MPF de 1ª instância não teria atribuição para firmar o acordo com o delator considerando que o signatário estaria delatando autoridades com foro por prerrogativa de função, de sorte que estaria havendo uma violação às atribuições da Procuradoria-Geral da República. Ademais, o juízo federal de 1ª instância não teria competência para homologar o acordo, por usurpar a competência do STF. 

Primeiro ponto: a reclamação foi ajuizada pela OAB/DF, OAB/SP, OAB/AL e OAB/RJ. Tais seccionais possuíam legitimidade, no caso concreto? SIM. 

Os conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) possuem legitimidade para ingressar com reclamação perante o Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa dos interesses concretos e das prerrogativas de seus associados, nos termos da expressa previsão legal. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

A Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) confere ampla legitimidade à OAB para atuar em defesa da ordem jurídica, do Estado Democrático de Direito e de todos os advogados integrantes dos seus quadros, conforme se observa do art. 44, I e II, do art. 49, parágrafo único, e do art. 54, II e III, c/c o art. 57: 

Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade: I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas; II - promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil. 

Art. 49. Os Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB têm legitimidade para agir, judicial e extrajudicialmente, contra qualquer pessoa que infringir as disposições ou os fins desta lei. Parágrafo único. As autoridades mencionadas no caput deste artigo têm, ainda, legitimidade para intervir, inclusive como assistentes, nos inquéritos e processos em que sejam indiciados, acusados ou ofendidos os inscritos na OAB. 

Art. 54. Compete ao Conselho Federal: (...) II - representar, em juízo ou fora dele, os interesses coletivos ou individuais dos advogados; III - velar pela dignidade, independência, prerrogativas e valorização da advocacia; (...) 

Art. 57. O Conselho Seccional exerce e observa, no respectivo território, as competências, vedações e funções atribuídas ao Conselho Federal, no que couber e no âmbito de sua  competência material e territorial, e as normas gerais estabelecidas nesta lei, no regulamento geral, no Código de Ética e Disciplina, e nos Provimentos. 

Essas normas estão em consonância com a qualificação de função essencial à justiça atribuída à advocacia pelo art. 133 da Constituição Federal, bem assim com o papel da OAB, com ampla capacidade postulatória, conforme reconhecido pela jurisprudência do STF.

 Não demonstração de afronta à competência do STF, mas concessão de habeas corpus de ofício 

No caso concreto, entendeu-se que os reclamantes não demonstraram a usurpação de competência do STF. A despeito disso, o STF afirmou que se constatou que foram praticadasilegalidades flagrantes relacionadas com a competência do juízo e com a decretação de medidas de busca e apreensão em desfavor de advogados. Diante dessas ilegalidades flagrantes, o STF entendeu que deveria ser concedido habeas corpus de ofício: 

Diante de flagrante ilegalidade, é possível a concessão de “habeas corpus” de ofício em sede de reclamação constitucional, nos termos do art. 193, II, do Regimento Interno do STF (RISTF) e do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

RISTF / Art. 193. O Tribunal poderá, de ofício: (...) II – expedir ordem de habeas corpus quando, no curso de qualquer processo, verificar que alguém sofre ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. 

CPP / Art. 654 (...) § 2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. 

Impende registrar a relevância do tema em discussão — notadamente por se relacionar às funções e prerrogativas da advocacia no âmbito do sistema de justiça criminal e do Estado Democrático de Direito — e a necessidade de se promover o devido controle de todas as ilegalidades praticadas, no caso concreto, pelo magistrado da Vara Federal, ora reclamado. 

Incompetência do juízo federal 

A investigação e, posteriormente, a ação penal apuravam um suposto desvio de recursos pertencentes ao Senac (Serviço Social do Comércio), Sesc (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e Fecomércio (Federação do Comércio). Ocorre que as entidades do “Sistema S” (Sesc, Senac, Sebrae) são pessoas jurídicas de direito privado dotadas de recursos próprios, definitivamente incorporados aos seus patrimônios, ainda que com base em contribuições parafiscais pagas pelos contribuintes e a elas repassadas imediatamente pela Receita Federal. Portanto, mesmo que esses recursos sejam fiscalizados pelo Tribunal de Contas da União, não se trata de recursos que integram os bens ou o patrimônio da União. Logo, a apuração desses eventuais delitos não seria de competência da Justiça Federal tendo em vista que a regra prevista no art. 109, IV, da CF/88 exige que o interesse da União seja direto e específico, não sendo suficiente o interesse genérico da coletividade: 

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; 

Assim, ausente interesse direto e específico da União: 

Compete à Justiça estadual processar e julgar fatos envolvendo entidades integrantes do denominado “Sistema S”. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

Busca e apreensão 

A jurisprudência do STF confere interpretação estrita e rígida às normas que possibilitam a realização de busca e apreensão, em especial quando direcionadas a advogados no exercício de sua profissão. Na situação em apreço, não foram observados os requisitos legais nem as prerrogativas da advocacia, com ampla deflagração de medidas que objetivaram “pescar” provas contra os advogados denunciados e possíveis novos investigados. Ressalta-se que, ao deferir a busca e apreensão, a autoridade reclamada não demonstrou a imprescindibilidade em concreto da medida para o processamento dos fatos. 

Além de violar prerrogativas da advocacia, a deflagração de amplas, inespecíficas e desarrazoadas medidas de busca e apreensão em desfavor de advogados pode evidenciar a prática de “fishing expedition”. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

Fishing expedition (muita atenção a essa terminologia!) 

Fishing expedition consiste em “uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que ‘lança’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidências sobre a prática de futuros crimes. Como consequência, não pode ser aceita no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de malferimento das balizas de um processo penal democrático de índole Constitucional.” (MELO E SILVA, Philipe Benoni. Fishing Expedition: a pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. Disponível em: http://jota.info/artigos/fishing-expedition-21012017). Nas palavras do Min. Gilmar Mendes, a prática da fishing expedition consiste em “investigações genéricas para buscar elementos incriminatórios aleatoriamente, sem qualquer embasamento prévio” (HC 163461). Assim, as fishing expeditions são “investigações meramente especulativas ou randômicas, de caráter exploratório, também conhecidas como diligências de prospecção, simplesmente vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro” (Min. Celso de Mello, RE 1055941/SP). Na doutrina alemã, Bernd Schunemann chama de “efeito hidra”, consistente na busca permanentemente ampliada (estendida) e com isso invasiva, com a finalidade de alcançar vestígios de fatos que inclusive se desconhece. (SCHÜNEMANN, Bernd. La Reforma del Proceso Penal. Madrid: Dykinson, 2005, p. 33, citado por ROSA, Alexandre Morais da; MENDES, Tiago Bunning. Limites para evitar o fishing expedition: análise da decisão do Min. Celso de Mello no Inq. 4.831/DF. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/limites-para-evitar-o-fishing-expedition-analise-da-decisao/) 

Houve uma ampla realização de medidas de busca e apreensão depois de formalizada a denúncia, caracterizando indevida prática de fishing probatório 

Na espécie, a medida de investigação prévia foi executada depois de ser formalizada a denúncia contra os advogados, em evidente inversão processual. Com efeito, a ampla realização de medidas de busca e apreensão depois da formalização da denúncia, que pressupõe a colheita de um lastro probatório mínimo e o encerramento da fase investigatória, indica o objetivo de expandir a acusação, em indevida prática de fishing probatório. 

Extrai-se do art. 394 e seguintes do CPP que a produção probatória após o oferecimento da denúncia deve ocorrer em juízo, com as garantias do contraditório e da ampla defesa. STF. 2ª Turma. Rcl 43479/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2021 (Info 1025). 

Conclusão 

Com base nesses e em outros entendimentos, a 2ª Turma do STF, por maioria, conheceu da reclamação e, no mérito, por unanimidade, julgou-a improcedente. Na sequência, em votação majoritária, o colegiado concedeu ordem de habeas corpus, de ofício, para decretar a incompetência absoluta da Justiça Federal, determinar a nulidade de todos os atos decisórios proferidos pelo juízo da 7ª Vara da Seção Judiciária do Rio de Janeiro e remeter os autos à Justiça comum do estado do Rio de Janeiro, a quem competirá processar, julgar o feito e aferir eventuais especificidades quanto à remessa de parte da investigação à Justiça Federal do Distrito Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos do voto do ministro Gilmar Mendes (relator). Ficou vencido o ministro Edson Fachin.


Nenhum comentário:

Postar um comentário